sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Sagrada Família

«Somos como uma família»
Joan Capdevilla

«Michael, a única coisa que interessa é a família»
Vito Corleone
 

O futebol não é só um desporto de massas e de gigantismo. Também é um desporto de subtilezas.

Ouvimos um suplente trintão, campeão do Mundo em título, rico, a falar em família e ficamos derretidos. Não sabemos bem se é verdade ou se é propaganda, mas pensamos que é maravilhoso. Temos ali um conjunto de irmãos a lutar por um objectivo comum. Será que há alguém que não fique embevecido com uma ternura destas? «Espírito de equipa!», pensamos, de peito cheio.

Pois.

Mas…

A família é uma coisa muito básica, na verdade. E quando digo básica é mesmo porque está na base disto tudo. É primitivo. Qualquer antropólogo dirá que a família (ou o parentesco, como eles a definem tecnicamente) é a unidade colectiva primordial e a ligação social fundamental do ser humano enquanto animal gregário.

Se formos mais longe, a um tempo em que não se fazia sequer uma ideia do que viria a ser um antropólogo, a história da Bíblia é a história de uma família. Da mesma forma, o primeiro crime bíblico é um crime familiar – um irmão, Caim, que mata o outro, Abel. Como toda a narrativa bíblica, o fratricídio entre Abel e Caim é uma metáfora. Neste caso é uma metáfora com dois níveis.

Num primeiro nível, tenta retratar o conflito que existiu, na Mesopotâmia, entre os pastores (aqui representados por Caim), que precisavam de terras para o seu gado, e agricultores (os Abéis), a quem as roubavam – dedicando-se os pastores nómadas, depois de iniciada a vida no crime, tanto ao roubo como à pastorícia…

Num segundo nível, é a sabedoria dos antigos a avisar-nos: «Não te fies no teu irmão. Se necessário for é o primeiro a cobiçar o que é teu e a matar-te para o poder ter.»

Se olharmos para a Bíblia como deve de ser, e sem ligar aos disparates religiosos propriamente ditos, é um livro fascinante e muito educativo.

Se avançarmos alguns milhares de anos, até ao início da política, vemos que a família era magnanimemente desprezada com coisa fundamental, mas menor.

Platão era adepto do modelo de Esparta, em que os rapazes eram separados da família biológica aos seis anos e passavam a ser treinados para a guerra, vivendo em conjunto até aos 30, fazendo tudo de acordo com as necessidades de depuração da casta guerreira, desde a alimentação até à procriação com mulheres seleccionadas.

(O que vocês queriam, depois de ver o «300», era isto, não era, seus malandros? Um conjunto de guerreiros capaz de morrer no campo de batalha, treinados até ao limite, pela sua nação. Pois é, é inspirador, mas, apesar de eles dormirem todos debaixo do mesmo tecto, isso já não é bem uma família, pois não?)

Aristóteles dizia que o lar era o reino do déspota – sendo déspota a palavra grega para chefe incontestado. Era uma coisa boa, não entendam mal, déspota não tinha a conotação negativa que tem hoje, mas também era uma coisa menor. Para Aristóteles, o homem económico, o oykonomosoykos, significa casa – acabava na porta. Daí em diante é que se cumpria o verdadeiro desígnio do ser humano enquanto animal político, enquant zoon politikon, sujeito à lei da sociedade e à política, em que o homem já não era o rei entre os seus mas um igual aos outros.

Não cabe dentro de duas balizas a quantidade de livros que já se escreveram sobre o papel da família na sociedade e na política, mas eu vou directamente para o contrato social, para chamar a atenção para um ponto determinante: o que distingue o laço familiar do laço social é precisamente a ausência de contrato.

No parentesco não há contrato. Nasce-se numa família, não se escolhe a família em que se está. Ora, se há uma coisa que define o futebol, actualmente, é o contrato. Se não tem contrato é porque não é futebol – é INATEL.



Quando se fala em família no futebol é um apelo ao romantismo. À mística. Àquela força vital que, supostamente, está cá dentro e move montanhas. Uma berdadeira comoçom colectiba.

Eu, se calhar, ainda sou novinho, mas a primeira vez que ouvi falar em família no futebol tinha pronúncia do Douro Litoral.

Como se comprovaria com o decorrer dos anos, aquela família tinha muito mais de famiglia, na melhor tradição siciliana, com um padrinho a fazer de pater famílias e tudo, do que de família à antiga portuguesa.

No Europa Mediterrânica a família continua a ser uma instituição incontornável. E a coisa vai parecendo dar sinais de dar resultado.

Pensemos na Sagrada Família. Não é a do Gaudí, a outra – a do Puyol, do Xavi, do Cesc, do Leo, que cresceu toda em La Masía, fraternalmente, como os espartanos mas em bonzinhos. Porque é que nos inspira como inspira? Tanto como pela forma como joga, pelo que torna possível jogarem como jogam: o facto de se conhecerem tão, de estarem tão familiarizados uns com os outros que é como se fossem um só cérebro, uma só vontade, um só organismo. Lindo.

O que é que fez o Real Madrid? Contratou os melhores mercenários que o dinheiro pode comprar, com o condottieri máximo à cabeça, Giuseppe Mourinho, il speciale. Ainda está por se saber se o mestre lusitano descobrirá a parte incompleta do monumento catalão.



No Norte da Europa, onde não se liga patavina a isso da família – é meter os marmanjos na rua assim que for possível e deixá-los andar – o futebol traduz essa cultura. A coisa é mais técnica e menos passional. É mais profissional que emocional. Um contrato (porque se entende a vontade individual autónoma de forma mais pragmática e mais nobre) vale mais que o sentimento.

Não quer dizer que um latino não possa ser mais profissional que um germânico, mas as matrizes originais são diferentes.



Aqui, chegamos à sensibilidade pessoal. O que é que é melhor: família ou contrato?



Eu, por mim, assumo que um dos meus sonhos é ver o Benfica ganhar a Liga dos Campeões e, no fim, ouvir um jogador a dizer: «Fizemos o nosso trabalho e jogámos bem. Não é uma das equipas co elhor ambiente em que já joguei, não se pode dizer que seja um ambiente familiar, aliás, há aqui dois ou três tipos com quem eu nunca sequer falei, mas é do interesse de todos que as coisas funcionem e é para isso que trabalhamos. O ambiente no seio da equipa é estritamente profissional»



Irmãos? Irmãos é giro. Mas, se querem mesmo saber, no que toca a batalhas, eu prefiro mercenários, sobretudo se tiver dinheiro para lhes pagar. «Nunca chames um amador para fazer um trabalho profissional.»

Sou o único a achar mais praticável ter um conjunto de 23 jogadores unidos por um interesse material comum do que estar dependente da sorte de haver uma química perfeita entre 23 indivíduos egocêntricos para conseguirmos ter uma equipa de futebol a funcionar? Sem querer armar-me em Passos Coelho, isso cheira a pieguice. Ou uma Choraminguice.



Eu amo a minha família, mas a família é uma coisa caseira. Os clãs não saem da sua terra. Não é pela familiaridade que se cresce – é quando se sai de casa.



Amigos, amigos, negócios à parte. Porque, quando assim é, basta trocar de mercenários. É tudo mais fácil. Escusamos de meter ao barulho os Tribunais de Menores, o litígio de cônjuges, os psicólogos para curar as disfuncionalidades  e aquelas coisas escabrosas que todas as famílias, directa ou indirectamente, tão bem conhecem, sob o risco de não conseguirmos ter uma equipa de futebol capaz de jogar à bola…

3 comentários:

  1. Inacreditável: segundo a Bwin havia cerca de 25 por cento de hipóteses do Braga marcar 2 golos na primeira parte, e não conseguiu.
    Isto só pode ser o sistema, não me lixem.
    Ainda o fim-de-semana nem começou e já perdi 3 milhões de kartos

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  2. Essa conversa da "ah e tal, família.." do Capdevilla é mais velha que o cagar da ameixa. É daquele tipo de comentários politicamente correctos que existem no futebol às centenas e que pouco ou nada valem de tão cliché que são. Mas a malta enternece-se toda com estas coisas. Porquê, é que eu não sei. Ainda por cima essa conversa veio de um espanhol-campeão-do-mundo (é mesmo assim, uma só palavra) que está no banco porque a titular joga um brasileiro que é de longe o pior jogador do 11 mais utilizado. Das duas três, ou a definição de família mudou entretanto, ou o Capdevilla é um gajo acomodado, ou aquilo é só conversa.

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  3. Acabo de ver um grande golo do Rodrigo depois de uma grande jogada do Benfica.Estou sozinho e tenho que desabafar.Golão!

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