segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Coitadinho

 A quem é que se ganha, quando se ganha ao Porto?

O que é que se derrota?

Por que é que ganhar ao Porto é tão importante antes do jogo começar e se torna tão pouco importante depois do jogo acabar?

Dito por outras palavras, por que é que se tem tanto a perder quando se joga com o Porto e tão pouco a ganhar?

O que é que o Porto representa? Quais são os valores que saem enaltecidos quando a sua equipa triunfa em campo (quando é campeã, porque é isso que ser campeão significa)?

Numa primeira fase do pós-25 de Abril é relativamente fácil de compreender. Num país atrasado, centralizado e provinciano, um clube em representação da província quis provar que era capaz de fazer o que os outros – nomeadamente o Benfica, que por essa altura já tinha extravasado a dimensão portuguesa – eram capazes de fazer.

O sucesso do Porto, nessa primeira era do anti-macrocefalismo, foi total. Não apenas ganhou uma Taça dos Campeões Europeus a um adversário prestigiado como o fez recorrendo a um conjunto de jogadores que representavam, na grande maioria, a própria gente do Porto e da região circundante. À afirmação internacional do Porto-clube correspondeu a afirmação internacional do Porto-cidade, uma ideia que esteve na própria génese da ideologia pintista quando se apoderou do poder no clube, em meados da década de 70.

Entretanto, no início dos 80, a democracia foi instituída, de facto, com o advento do Tribunal Constitucional (em 1983), o país aderiu à CEE, mudou e, no final dos anos 90 e do cavaquismo, já pouco restava do Portugal salazarista. A subalternização do Porto-cidade e do Norte em relação a Lisboa, em termos económicos e sociais, sobrevivia apenas como um mito (um mito ainda hoje guardado com zelo por alguma da sua gente, mas ainda assim só um mito, como se pode constatar pelo facto da esmagadora maioria dos deputados à Assembleia da República e dos próprios governantes não serem de Lisboa) e o Porto-clube, aproveitando a emancipação política do Norte, a proliferação de clubes na região e a instrumentalização das Associações do Porto, de Braga e de Aveiro, já se tinha apoderado das instituições do futebol e secado pela raiz a concorrência, queimando, no processo, tudo o que não podia aproveitar.

Depois da afirmação, assistiu-se ao esplendor do portismo e, ao mesmo tempo, à decadência do futebol português, da qual só se começaria a sair quando, por acaso, um certo futebolista belga de pouca expressão, Jean-Marc Bosman, decidiu levar o próprio futebol a tribunal e, ganhando, o lançou à força para o liberalismo de mercado em que vive actualmente. Por causa disso os melhores jogadores portugueses tiveram acesso ao mundo e trouxeram o mundo à periferia, através da Selecção Nacional.

Durante a década de 2000, recolhendo os frutos do regime totalitário que instaurou, o Porto teve espaço para ganhar confortavelmente, incluindo na Europa, onde o acaso histórico entre o «evento José Mourinho» e a própria lei das probabilidades («até um relógio parado está certo duas vezes ao dia», ou seja, se jogares vinte vezes a Taça dos Campeões há de chegar um dia em que todos os outros também a perdem) coincidiram e resultaram num segundo êxito cujo único efeito estrutural foi o de permitir um encaixe financeiro, em prémios e vendas de jogadores, que permitiu uma década de gastos excessivos para a dimensão económica real do clube.

Foi por essa altura, ainda com a hegemonia bem viva, que se começou a tornar clara a futilidade da glória portista.

O ressurgimento do Benfica, a partir de meados da primeira década do século XXI, deu ao Porto uma segunda vida. Foi a fruta e café com leite dos novos dias – um pequeno-almoço de campeões.

O Porto de hoje é, obviamente, um projecto decadente. Vê-se nos resultados desportivos, incomparavelmente piores do que há vinte anos, nos resultados económicos, ao nível do pior que já existiu na história do clube, e nos comportamentos, como se comprova pela inenarrável figura do seu Diretor de Comunicação.

É impossível não comparar os dois principais clubes portugueses e poder-se-ia argumentar que a futilidade da glória é comum a todos. Talvez futilidade não seja a palavra certa. Seria preferível inconsequência. Ganhar para quê?

O Benfica partilha da simplicidade da maioria dos grandes clubes. O que o mantém unido é o jogo em si mesmo – talvez por isso digira mal a promiscuidade, mesmo quando essa é a lei moral da época e ele acaba por a seguir. Apesar de não haver grandes jogadores sem grandes clubes, aos jogadores do Benfica é possível tornarem-se maiores do que o clube, no clube. A história do Benfica é a história da sua relação com o jogo, nas glórias e nos fracassos, e a sua maior figura, sem contestação, é um jogador de futebol. De certa forma, o Benfica só fez as pazes consigo próprio quando trouxe Eusébio de volta para junto de si. O jogo não pretende representar realmente nada para além de si mesmo, e se isto parece básico é porque é. O benfiquista não é um animal complexo.

Para o Porto, o futebol não é um fim, mas um meio. Tem uma função – a de permitir a afirmação política de qualquer coisa, que já não se percebe bem o que é. O que une o clube é a subversão, ainda que o poder seja já seu e não haja nada para subverter. Quando não há, inventa-se. Adequadamente, a maior figura da sua história, também sem contestação, é um político – Pinto da Costa.

O Benfica fez uma grande equipa europeia de futebol porque sim, e tornou-se um clube do mundo, da dimensão do jogo. O Porto fez uma grande equipa europeia de futebol para ganhar ao Benfica e, podendo chegar tão longe quanto chega o jogo, nunca conseguiu sair da província que tem na cabeça.

O Benfica fracassa quando o jogo lhe ganha. O Porto fracassa quando o Benfica lhe ganha.

E toda a gente se dá bem com essa realidade que, aparentemente, é uma vantagem para o Porto. Permite-lhe sempre partir de baixo, sem ter nada a perder; assumir a personagem do pobre diabo que joga contra a própria sorte. A figura do coitadinho nasceu para enternecer. O Porto já explorou o desgraçado que tem dentro de si até ao tutano. Mas qual é a alternativa senão continuar a alimentá-lo para poder continuar às suas costas? O «contra tudo e contra todos, dentro e fora do campo» de Sérgio Conceição, há dias, é apenas a versão actual do absurdo, do qual toda a gente, incluindo os portistas, tem consciência, mas que não pode ser abandonado, sob risco de niilismo existencial.

Dito por outras palavras, refazendo as questões com que comecei, o que é que o Porto ganha, quando ganha, se, depois de ganhar, não sai do mesmo sítio?

O que é que triunfa, quando o Porto vence?

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Benfica 3.0

Ainda é demasiado cedo para tirar conclusões sobre o novo Benfica, mas desde quando é que isso impediu alguém?

Primeiro ponto: metade da equipa que jogou na Grécia não vai ser titular em Dezembro, e até o onze que entrou hoje em Famalicão, apesar de mais próximo da realidade, está ainda longe disso. Tal como todas as equipas do mundo, mesmo aquelas que têm jogadores suficientes para fazer duas, o Benfica 3.0 vai ter um grupo de 14/15 que vão jogar quase sempre e sete ou oito que vão chegar ao fim da época sem ter apanhado o comboio. As lesões, as dinâmicas e a própria química entre os jogadores vai encarregar-se disso.

Segundo ponto: Jesus é exactamente o mesmo. Viveu, morreu, ressuscitou, mas é o mesmo. Aliás, o Vieira não o contratou para ser uma coisa diferente. É claro que tem um bocado mais de mundo – devia ser obrigatório para qualquer treinador passar pelo menos seis meses no Brasil, para saber o que é futebol no estado puro, um bocado como aqueles estagiários que passam um ano a fazer treinos da segunda divisão antes de poderem começar a trabalhar com os crescidos – mas isso, em alguém com a personalidade do Jesus, só serve para se sentir ainda mais senhor do seu nariz. Antes de sair de Portugal ele já pensava que era um génio; agora pensa que é um grande génio. É a natureza do animal. Nada a apontar.

Quanto à bola propriamente dita, também poucas novidades.

Quatro centrais, dois na defesa e dois no meio-campo, a partir pedra, como deve ser numa equipa em 4x4x2 cujo primeiro mandamento é não sofrer golos. Gabriel e Taarabt não vão ser os dois médios-centro, mas neste momento da época joga quem consegue correr mais tempo, não quem é melhor. É muito provável que Pizzi acabe a jogar no meio e não me admirava absolutamente nada se o Weigl acabasse a época a defesa. Falta um jogador para o meio-campo e isto não quer dizer que não esteja já no plantel. Quem jogar como ele quer – como o Pizzi jogou no primeiro ano a titular – vai agarrar o lugar.

O guarda-redes joga dez metros a frente em relação ao ano passado. Esse guarda-redes – aquele guarda-redes que joga a líbero, como o Neuer – não é o Vlachodimos, mas também não é nenhum daqueles que o Jesus gostaria de ter, simplesmente porque não há. Ou melhor, haver há, é o Svilar, mas é mais fácil o Jesus aprender a falar espanhol do que apostar num guarda-redes de 21 anos, a menos que não tenha absolutamente alternativa nenhuma.

Aposta total na defesa em linha, como deve ser com qualquer equipa que queira ser grande pelo menos desde que o Milão do Sacchi descobriu a pólvora e percebeu que era muito mais fácil jogar em 40 metros do que em 70. Mas não vai ser com o Grimaldo, porque não sabe. Aposto a minha máscara em como o Jesus deve estar mortinho para vender Grimaldo, comprar um central titularíssimo e meter o Verthongen a jogar a defesa esquerdo, para ter mais segurança defensiva e ganhar um homem nas bolas paradas. O que seria uma medida inteligente, uma vez que se matariam vários coelhos com uma só cajadada. Jogar com extremos a defesas laterais não é para todos, sobretudo para quem perde demasiadas bolas.

Potência física no ataque com Everton, Waldschmidt e Darwin – e quando falo em potência refiro-me à relação massa-velocidade, assim mesmo à doutor –, dando à equipa equilíbrio nesse aspecto, o único (além dos Soares Dias e dos gatunos informáticos) em que o Porto foi claramente superior nas últimas três épocas.

Waldschmidt não é um Jonas mas vai ter de ser. Darwin não é um Cardozo mas é muito melhor, porque com ele teremos a certeza de jogar sempre com onze. Cardozo era um rematador canhoto, Darwin é um futebolista dos pés à cabeça que só não vai marcar tantos golos pelo Benfica como Cardozo porque, ao contrário do paraguaio, daqui a um ano vai ter meia Europa atras e vai valer o mesmo que duas Ligas dos Campeões.

Sim, em Famalicão o Benfica arrasou, tal como teria arrasado na Grécia se o PAOK não tivesse tido toda a sorte do jogo – aliás, a sorte grande foi mesmo ter apanhado o primeiro jogo do Jesus: já não me lembro da última vez em que o Jesus ganhou o primeiro jogo de uma temporada.

Vai continuar a arrasar enquanto estiver a crescer, o que vai acontecer durante os próximos quatro, cinco meses. Jogar a Liga Europa vai ajudar. O Jesus é um péssimo gestor de plantéis e a Liga Europa é muito menos cruel que a Champions quando toca a fazer pagar pelos erros de casting. Depois, quando tiver de mudar o chip e passar a jogar com o estatuto que entretanto tiver ganho, não vai saber bem o que fazer e entra em perda. Mesmo assim, se não houver terremotos, jogos com intervalos de três meses e pagamentos pelo meio ou árbitros a apitar pela própria vida, deve chegar.

Nesse aspecto – na dinâmica, não na sua relação com a máfia, entenda-se – o Benfica 3.0 vai ser exactamente igual ao Benfica 1.0 e completamente oposto ao Benfica 2.0, com Vitória e Lage, que jogava sempre melhor quando dava avanço. Quando não deu, quando teve o campeonato no bolso a meio da época e precisou de gerir a vantagem, arranjou maneira de dar um tiro na cabeça com uma pistola sem balas.


terça-feira, 25 de agosto de 2020

Da arrogância

 É difícil a um clube que tenha construído a sua história sobre o espírito popular e solidário, como o Benfica, conviver com a mentalidade aristocrática de quem se sente no direito a ser reconhecido como melhor de que os outros. No entanto, é necessário que o faça, porque o tempo não avançará enquanto não o fizer.

O Benfica, que inventou a humildade no futebol português, está culturalmente parado desde 1963, precisamente o ano em que as vantagens de ser humilde já não eram suficientes para continuar a ganhar. Serviram enquanto os outros eram mais fortes – enquanto o clube prosperou, a partir da sua força comunitária, contra um rival interno mais rico e institucionalmente mais poderoso; enquanto os adversários nas finais europeias foram melhores e super-favoritos e a abordagem ao jogo podia ser feita de baixo para cima, em luta e em sacrifício, sem ser preciso assumir superioridade. Daí em diante, ser bom, ou ser melhor, não voltou a ser suficiente. Nem com a melhor equipa europeia da década de 60 o clube voltou a ganhar como antes.

A falácia da humildade está intrincada no futebol português, sobretudo graças ao sucesso temporário que lhe trouxe, quer com o Benfica, quer, depois, com o Porto, quer, finalmente, com a Selecção Nacional. Ser humilde – ou seja, aceitar as fraquezas e fazer delas forças à base do suor – tem benefícios, mas também malefícios. Se se erguer uma cultura sobre a fraqueza, a cultura desaba a partir do momento em que o sentimento de inferioridade já não tem razão de existir. Um homem humilde pode vencer, mas só continuará a vencer se, daí em diante, deixar de aceitar apenas as suas fraquezas – se, continuando a ser humilde perante os seus próprios erros (que nunca desaparecerão), se tornar arrogante perante os outros.

O Benfica parou na humildade, e ser humilde não lhe vai dar mais do que aquilo que já deu.

Aquilo de que o Benfica precisa, desde há 60 anos, já não é de humildade. Essa tem-na inscrita no ADN. Do que o Benfica precisa é de arrogância, e voluntária.

O Benfica deve tomar uma derrota com um rival da sua igualha como uma ofensa pessoal, como uma afronta à ordem natural do universo.

Não deve ter medo da palavra vingança.

Não deve considerar a existência de iguais, apenas de inferiores.

Tem de assumir, compreender e praticar o conceito de soberania – a criação jurídico-psicológica de Jean Bodin segundo a qual a entidade soberana é aquela que não reconhece igual entre os que lhe são semelhantes nem superiores entre os que lhe são diferentes.

Acima de tudo, tem de entender tudo isto sem precisar de se esforçar para o entender.

E a única maneira de fazer isso – uma vez que a arrogância é uma característica humana – é reunir um conjunto de homens naturalmente arrogantes (ou seja, que estejam completamente convencidos de que, quando nasceram, já eram melhores do que os outros) e depois de os ter alimentar-lhes essa arrogância, em vez de a fazer parecer pecaminosa.

O Benfica só deve ser humilde perante o jogo em si mesmo, nunca perante o jogador.

O desporto industrial, que está a uma grande distância do futebol enquanto fenómeno meramente representativo que era a norma até aos anos 70, é uma selva dominada pelo orgulho, pelo egoísmo e pela vaidade. Ir contra isso permite viver confortavelmente, mas implica a fatalidade da morte sem glória. O triunfo é uma invenção do orgulho humano. Não basta existir-se, tem de se querer e assumir-se que se quer. Todo o caçador é arrogante. Todo o animal temeroso é caça.

Não é por acaso, nem é estatisticamente explicável, que uma equipa (qualquer equipa) perca dez, onze, doze finais europeias consecutivas. Quando isso acontece não há contingências mas um padrão de previsibilidade. O Benfica não perde finais europeias em sucessão por azar mas por uma incapacidade que vai além das equipas que tem, dos adversários, dos árbitros, das maldições ou do tempo que fez nesse dia. Perde-as porque não se concebe a ganhá-las. Perde-as na cabine, não em campo.

A final da Youth League contra o Real Madrid é apenas o último exemplo disso, mas sobretudo uma prova de como o síndroma do desgraçadinho não é uma questão de jogadores mas um aspecto cultural que atravessa todo o clube, do futebol ao hóquei em patins, dos seniores aos iniciados. A equipa do Benfica não era apenas superior à do Real Madrid: era muitíssimo superior. Tão superior que, quando finalmente percebeu que o era, vulgarizou o seu adversário, que tinha a base da selecção campeã da Europa na categoria. Se os jogadores do Benfica estivessem a jogar pelo Real Madrid e tivessem entrado em campo com a arrogância natural que a camisola branca injecta a quem a usa teriam ganho por quatro ou cinco a zero.

Quando o Benfica perde uma final há sempre uma sensação do fado inevitável. Quando, por consequência da sua grandeza, as ganha, fica sempre, também, a ideia de que teve a sorte do seu lado, de que ganhou como podia ter perdido. Nunca fica afirmada a sua superioridade inequívoca. Parece que ser melhor do que os outros vai contra a natureza do clube.

O benfiquista comum, que é bravo contra os fracos e envergonhado ante os fortes, vai ter de decidir se lhe basta jogar ou se quer ganhar. Precisa de dizer se quer ser águia ou lebre.