quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Jogar o football (I)

Na Rússia, o desporto mais popular entre os claquistas de futebol é o basebol. Entre eles vendem-se mais tacos de basebol que bolas de futebol. Mas também se vendem mais tacos de basebol que luvas de basebol. Cinco vezes mais, para ser exacto.

O desporto preferido dos claquistas russos não é o basebol, na verdade: é caçar imigrantes do Cáucaso. Dezenas de imigrantes das Repúblicas do Sul (Ossétia, Inguchétia, Chechénia…) foram assassinados nos pogroms dos extremistas ligados ao futebol russo durante a última década, mas quando três deles responderam à letra e mataram um claquista de um clube russo, ao funeral compareceu o próprio Vladimir Putin, para prometer que o Estado reforçaria as leis da imigração e o controlo sobre os imigrantes.

As claques russas, de índole ultra-nacionalista, algumas mesmo neo-nazis, são uma espécie de braço armado popular do regime de Putin, e têm os respectivos privilégios por parte do novo czar democrático.



No Egipto, ao que dizia hoje, na TSF, um professor universitário, é difícil, no interior de um estádio, distinguir entre um claquista e um talhante, tal a quantidade de facas que levam. Entre os principais grupos da revolução egípcia – e repare-se aqui que uma revolução se distingue, entre outros factores, precisamente porque não é um episódio mas um processo, que se prolonga no tempo depois da revolta armada propriamente dita, até haver um novo regime instituído e não apenas proclamado – estão as claques dos dois maiores clube do Cairo, o Zamalek e o Al Ahly. Combateram em conjunto na Praça Tahrir, há um ano, e são, hoje, defensores da revolução. É já consensual que os confrontos de ontem se inserem nesse contexto revolucionário.



A cada episódio como o que ocorreu ontem em Port Said repetem os editores dos nossos jornais, como virgens chocadas e inocentes, a ladainha do costume: «Isto é não é futebol!».



Errado.

Isto é futebol.



Na Bélgica as claques de futebol foram as primeiras, há uns anos, a tornar visíveis as fracturas entre valões e flamencos que está prestes a partir a federação política em duas partes.

Em França, o Marselha e os seus adeptos assumem a despesa do Sul contra o centralismo de Paris, e das etnias muçulmanas, que têm uma comunidade imensa na cidade, contra a política falhada de integração do Estado.

Em Itália, a luta interna entre as duas equipas romanas alimenta-se, tanto quanto da rivalidade desportiva, do extremismo fascista que orienta a Lázio contra os estrangeiros, os negros e os outros italianos, democráticos.

Em Portugal, a bandeira da descentralização contra Lisboa foi empunhada por Pedroto e Pinto da Costa para justificar uma unificação em redor do Futebol Clube do Porto, que, ganhando 20 dos 38 campeonatos disputados depois do 25 de Abril, pode ser considerado, justamente, como o verdadeiro clube do novo regime – aquele que melhor aproveitou as condições políticas (desagregação da autoridade do Estado, do sistema policial e judicial, descentralização económica e política para a autarquias, entre outras) para potenciar o êxito desportivo.

No Estado Novo, o Benfica tinha sido o maior reduto do republicanismo democrático, antes de, como já como vencedor da Taça Latina e campeão europeu, ser absorvido pela propaganda salazarista, que se apoderou do sucesso do Benfica na Europa para proveito da sua política imperialista. Os encarnados – nome permitido pela censura para que não se escrevesse vermelhos (republicanos e comunistas), que era o que, de facto, a maioria dos benfiquistas era – associavam-se em cooperativas para fazer o seu estádio e organizavam eleições democráticas para eleger os seus dirigentes. Era o clube das classes baixas lisboetas, real habitat da esquerda e extrema-esquerda portuguesas, e dentro dele coabitavam tanto socialistas, como sindicalistas, como maçons. Luis Carlos de Faria Leal, por exemplo, oficial do exército e presidente do Sport Benfica, antes da fusão com o Sport Lisboa, mais tarde envolvido num golpe militar contra o Estado Novo, exilado na Bélgica e convidado, em 1954, a regressar pontualmente a Portugal para descerrar a lápide de inauguração do Estádio da Luz. É só um exemplo entre dezenas de encarnados que resistiram, até ao limite do possível, à assimilação da glória benfiquista pelo regime de Oliveira Salazar.

Em Espanha, o Barcelona é o definitivo bastião do nacionalismo catalão, como foi, no tempo de Franco, um bastião do republicanismo revolucionário, pagando caro por isso, inclusivamente com dirigentes assassinados.

Na Escócia a questão vai ainda mais fundo, desce um patamar e entra no campo religioso, com os dois clubes de Glasgow, Celtic e Rangers, a manterem acesa a fogueira das clivagens religiosas que estiveram na origem das grandes revoltas políticas na história das ilhas britânicas.



Isto não é futebol?

É claro que isto é futebol.

Eu estudo política e adoro futebol. Quando olho para o futebol vejo política em tudo, porque o futebol é política. O futebol não é senão política. Acho que é difícil encontrar-se um post, destes quase 150 que já escrevi, em que não haja política, precisamente por causa disso. E não há nada mais fácil de explicar.

Política é tudo o que envolve a constituição, a aquisição e a manutenção do poder. É fácil de identificar o momento em que o futebol se tornou, definitivamente, um factor político: foi em 1934, quando Mussolini, o inventor da política de massas que mudou o mundo no início do século XX, percebeu que as massas gostavam estupidamente de bola, e fez do Campeonato do Mundo um evento propagandístico. Daí para a frente, o futebol, como evento de massas, seria fenómeno de poder. Seria político.



O futebol é menos importante que a política, que é menos importante que a religião, a mais resistente forma de poder. É essa a ordem. E os três estão encadeados.



Quando se fala em «nação benfiquista» e em «nação portista», está-se, sem se saber, a dizer uma verdade mais funda do que se julga. Pensa-se em «nação» como uma unidade cultural, mas, sendo-o, não o é apenas. Ao falar-se em nações está-se, na verdade, a ir ao busílis da questão. Porque «nação», tal como ela tem vindo a ser definida pelos cientistas sociais, é um grupo étnico que se distingue dos outros pelas aspirações políticas à soberania. O que distingue uma etnia (que existe aos milhares) de uma nação (que existe apenas às dezenas) é que, enquanto uma etnia é um grupo de pessoas com características culturais distintivas, uma nação é uma etnia com pretensões políticas, ou seja, um grupo vasto de indivíduos que pretende sustentar na sua individualidade cultural o direito à auto-determinação e que coloca esse direito à soberania ao mesmo nível de qualquer outro direito político de qualquer outro grupo no mundo.

Se alguém pensa que Benfica, Porto ou Sporting não estão muito mais perto de serem considerados uma nação do que uma colectividade desportiva é porque vive no século XIX. E quem fala nestes três fala em qualquer grande clube do mundo.



O que as nossas virgens querem dizer com «isto não é futebol» quando vêem a política «imiscuir-se» no desporto, como eles dizem, não é isso. Porque, no fundo, eles sabem que o futebol é, todo ele, um fenómeno social e, consequentemente, político. O que eles querem dizer, na verdade, é: «Isto não é o football

Porque só há um país no mundo em que o futebol não é política. Não porque não tenha, como em todos os outros, política lá dentro, mas porque, nele, o futebol está acima da política, e não abaixo dela.



Esse país é a Inglaterra.





Por razões que se vão tornar perceptíveis nos próximos três dias (complexidade, dimensão, falta de tempo, sobretudo), vou ter de dividir este post em duas, ou três, partes, e acabo a primeira aqui.

É possível que uma parte de vós não se interesse muito por este tipo de questões, mas a mim apaixonam-me, e quando vejo política e futebol cruzarem-se tão violentamente como cruzaram ontem em Port Said, e as interpretações do que sucedeu ficarem tão pela rama, não consigo ligar patavina ao Yannick, ao Iturbe ou a uma falência técnica que é o segredo de polichinelo mais mal guardado na história do desporto nacional.

Mas também digo o seguinte: no fim deste três posts, começando em Port Said e passando por Cambridge, passando da política para a economia, vamos chegar aqui ao nosso cantinho, e falar da grande revolução futebolística que pode estar (e eu acredito que está) a acontecer debaixo dos nossos narizes sem que nos tenhamos ainda plenamente apercebido disso. E aí sim, julgo eu, poderemos falar de off-shores, de falências e de campeonatos com outro tipo de oportunidade. Porque está mesmo tudo ligado.



Penso que, no fim, não vão dar o tempo por mal empregue.

Os Floribelos podem esperar.

8 comentários:

  1. Excelente o post, Hugo. Aguardo com expectativa o resto da análise, até porque há movimentos recentes que fazem prever que a realidade dos clubes, em termos económicos, se vai tornar ainda mais restritiva.

    Abraço.

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  2. Um post que se impunha dado os acontecimentos.Tal como o Rui aguardo com expectativa o resto da análise.

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  3. Boas.
    A situação de Marselha é verdadeira mas talvez não tão intensa.A rivalidade entre as pessoas do sul e a capital é bem anterior ao próprio futebol.Desde os primordios que existem 2 tipos de lingua:Langue d´Oc mais a sul e Langue d´Oil a norte que estão na base do francês moderno.Se formos a ver,Paris tem até mais Maghrebinos (e Portugueses...) que qualquer outra cidade.Nunca poderá ser por exemplo comparado a aqui pois sempre houve regionalização;é mais uma questão de sentimento de inferioridade do PSG e seus adeptos.
    No caso Escosês tambem são rivalidades anteriores mas tirando isso é um povo bastante unido en torno da sua nacionalidade contrariamente a nós.
    Com o andar da caruagem chegará o dia em que não haverá Portugueses mas sim Portistas,Benfiquistas,Sportinguistas a viverem no mesmo país.Sabemos a quem devemos esse tipo de fundamentalismo,quem colocou e acendeu o barril de polvora.Basta uma passagem por outros blogs para ver a guerilha que existe e cada vez cresce mais.A rivalidade é normal mas quando se começa a misturar questões sociais e politicas com 2 clubes criam-se ainda mais diferenças entre as pessoas.
    Seria importante haver uma revolução futebolistica dos pequenos e democratizar o nosso futebol,até pela sua sobrevivencia (a não ser que alguem quer fazer um campeonato com 6/8 clubes).

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  4. Não concordo totalmente que no fim haverá apenas benfiquistas, portistas e sportinguistas. Como se o país Portugal, o país mais antigo da Europa e com uma história de unidade com mais de 800 anos, se dividisse assim tão facilmente.

    Para quem leu e percebeu a história de Portugal, ao longo dela sempre houve movimentos que tentaram fracturar o país. E o que aconteceu? Esses movimentos acabaram todos, mas todos mesmo, derrotados de uma forma ou outra. Até os espanhóis apanharam nas fuças. E alguns responsáveis por essa fracturas acabaram mal, quase sempre pendurados pelos gasganetes.

    Por isso, embora haja sempre uma ligação entre a política e o futebol, como com tudo, usado por aquela para atingir o poder, penso que o Benfica irá ser um dos factores de união do país, devido à crise em que nos encontramos.

    As crises da nossa história sempre levaram à união do povo português, perante a ameaça externa. E os portugueses não olham a meios para conseguir isso. Até um pacto com o diabo se necessário for. Os que tentam ou tentaram a desunião para proveito próprio, fosse ele político ou não, irão ser esmagados. Esta é a minha opinião.

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  5. Um dos melhores posts que ja li aqui.

    Luis

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  6. Este assunto é interessantissimo! Um verdadeiro deleite lê-lo. Contudo, penso que cometeste uma gralha no inico do post, pois jamais podes associar os ultra- russos ( os neo-soviéticos, se assim os podemos apelidar...) ao nazismo. É uma antítese fabulosa... Pelo menos é o que estou a dar na escola. Anseio pelo novo post!

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  7. Os ultra-nacionalistas russos são de várias tendências, sendo a neo-soviética, que referes, apenas uma delas, e uma das correntes – a mais brutal, na verdade – é a dos neo-nazis, que adoram abertamente Adolf Hitler, defendem o racismo eslavo e exibem símbolos nacional-socialistas, como a cruz suástica. Este ano, por acaso, fiz um trabalho sobre o nacionalismo russo para a faculdade e deparei-me com coisas assombrosas.
    Se tiveres estômago para isso (eu só tive para uma parte, confesso), procura «russian neo-nazis» na net e encontras imagens brutais que eles próprios lá colocam, de espancamentos a imigrantes. Em 2007 chegaram a colocar um vídeo de duas decapitações que ao princípio se julgava ser snuff mas que depois se concluiu serem verdadeiras.
    Os russos têm, neste momento, o ultra-nacionalismo mais radical e violento do mundo, e a sua influência é enorme. Dos quatro partidos com assento parlamentar apenas o Rússia Unida, do Putin, não tem deputados ligados aos grupos extremistas, e mesmo o Rússia Unida, pelo que se sabe, protege os ultras para não perder a força na rua, entre os jovens.
    É difícil descer mais baixo do que aquilo.

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  8. Brilhante! Tiro-te o chapeu, obrigado por este bocadinho.
    Um abraco
    fp

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