sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Jogar o football (II)

Em Maio do ano passado estive em Londres durante quatro dias. Num deles, meti-me num comboio e fui visitar Cambridge, que fica uns 80 quilómetros a Norte. Organizei o meu roteiro, a universidade, as pedras do costume, claro, mas um dos locais que me despertou, previamente, mais curiosidade foi Parker’s Piece. «O sítio onde se começou a passar a bola», estava escrito.



«O sítio onde se começou a passar a bola». Pode haver alguma coisa mais simples do que isto?

Aparentemente, sim.

Reza a tradição que foi em Cambridge, e mais exactamente em Parker’s Piece, que se deixou de jogar com as mãos e que se proibiram as placagens. As Regras de Cambridge terão sido decisivas na evolução do rugby para o football. Mas foi a invenção do passe, creditada aos Cambridge XI, que realmente ficou para a história da bola. Ao inventarem o passe, os alunos universitários que jogavam o football começaram a racionalizar e a sistematizar o jogo. Até aí, o football era uma correria, igual à que podemos ver quando assistimos a um grupo de miúdos de seis ou sete anos a jogar no recreio, com tudo a chutar a bola para a frente e todos a irem atrás dela aos trambolhões. Com o passe, passou-se (passe a redundância) a dividir o campo em áreas específicas, cada uma ocupada por um jogador. A vantagem tecnológica que daí adveio deve ter sido de tal forma humilhante para os adversários que ao fim de pouco tempo já toda a gente abdicava do inocente prazer de andar a correr atrás da bola para não passar a vergonha de ser goleado. Estava inaugurada a geo-estratégia no futebol. E ainda dizem que na escola não se aprende nada…



E lá fui eu para Parker’s Piece, coxo (porque na véspera tinha feito o disparate de andar pelo menos 20 quilómetros a pé em Londres, incluindo os 3 ou 4 para ir ver o estádio do Chelsea), à espera de encontrar esse lugar de iluminação, que me revelaria os segredos mais profundos do futebol, à espera de encontrar alguém a fazer aquilo que eu faria, mesmo coxo, se tivesse alguém com quem o fazer: jogar futebol, orgulhosamente, sobre a relva onde o futebol foi inventado.



O que é Parkers’s Piece? Um descampado numa cidade com 50 mil universitários. Um relvado com o tamanho de quatro ou cinco campos de futebol, boa parte do qual, na altura, estava fechado para reimplantação da relva, cheio de buracos, com papéis de chocolate e sacos de batatas fritas espalhados pelo chão e bastante lama, por causa dos concertos. Havia alguns casais na marmelada, tipos a atirar o disco voador aos cães e, lá bem ao fundo, uma criancinha  a dar uns pontapés numa bola com o pai.

Foi com um considerável desapontamento que percebi que, para os ingleses, aquilo não é solo sagrado. Para os ingleses, aquilo é apenas um relvado.



Mas depois entendi. «E porque não? Porque é que não devia ser assim tão simples?»

O que é o futebol? O futebol é um jogo de paixões, de milhões, de massas, de adoração, veneração. Digam-me vocês o que é o futebol, cada um saberá por si.

Mas eu digo-vos o que é o football. O football é uma coisa que se faz ao domingo.

O futebol é um jogo dos ingleses, e temos de compreender isso. É todo ele inglês. Nós só o jogamos. Adaptamo-lo às nossas realidades, adulteramo-lo, jogamos qualquer coisa parecida com aquilo, mas não é bem aquilo. Nós jogamos futebol. Os ingleses, como diziam no tempo dos nossos bisavós, jogam o football.



Tenho para mim que o que nos fascina no futebol são três coisas bastante elementares, à medida da nossa ignorância natural: a simplicidade, a dificuldade e o equilíbrio. Acrescentaria a estas três a simbologia da bola, o fascínio que as esferas sempre provocaram sobre o homem, mas aí já estaria a entrar num campo esotérico, alquímico, que não cabe aqui.



O futebol é estupidamente simples. As regras são simples, a ideia é simples, é tudo tão básico que se torna apreensível à primeira até para um miúdo africano de 6 anos. «Temos de enfiar a bola ali e não podemos usar as mãos». Está feito o football. Quanto mais complicamos, mais estragamos. O fim-de-semana passado na Liga portuguesa é o exemplo acabado de como se pode transformar o futebol num exercício de pura boçalidade. Temos dois candidatos a campeão a jogar com duas equipas que subiram de divisão. Num, a equipa que subiu de divisão obriga o candidato a aplicar-se ao máximo para dar a volta ao resultado, levando-o a festejar aquele triunfo como se tivesse conquistado um troféu. Noutro, a equipa que subiu provoca a primeira derrota do candidato em quase 60 jogos e fá-lo por 3-1. O que aconteceu nesses dois dias, em termos futebolísticos, foi simplesmente extraordinário. E o que é que nós passámos, todos, literalmente, os dias seguintes a discutir? O fora-de-jogo que não foi fora-de-jogo, o penálti que não foi penálti, o cartão que não foi cartão, a fruta para dormir, o café com leite, o calabote, a restauração da independência, a utilidade do dedo polegar na evolução da espécie, o raio que o parta. O fim-de-semana que passou foi óptimo tanto para Benfica como para Porto. Falou-se muito dos seus direitos e da sua importância. Mas o que eles ganharam foi roubado ao futebol.

O futebol também é extremamente difícil de jogar. Mais de noventa por cento do futebol é erro, e para se conseguir dominar um por cento que seja é preciso uma reunião de treino, aptidões físicas e e disponibilidade mental que faz com que o futebol seja, na verdade, o desporto com bola mais difícil de jogar no mundo. Não é coincidência que, apesar de estes dois factores parecerem contraditórios, ele seja também o mais popular. As pessoas gostam de ver a dificuldade. É por isso que se inventou o offside. Sem a lei do fora-de-jogo haveria simplicidade e haveria equilíbrio, continuaria a exigir perícia dominar a bola num campo aberto com oposição, mas seria muito menos difícil marcar golos. O campo abriria muito, haveria muito espaço, o jogo tornar-se-ia deslassado, a pressão menor, haveria muito mais golos, e tudo isto, que à primeira vista tornaria o jogo mais interessante, com mais «espectáculo», como se diz, na verdade só o tornaria muito menos interessante. Seria demasiado fácil. O que torna o futebol atractivo não é a técnica – o que o torna atractivo é a técnica debaixo de pressão.

Costumo ler as crónicas de um jornalista desportivo americano que era o típico yankee em relação ao futebol. Até há uns anos, era: «Deviam fazer isto, deviam fazer aquilo, deviam meter mais golos, deviam meter menos jogadores, descontos de tempo, vídeos, e acabar com o fora-de-jogo, e isto, e aquilo». E em algumas coisas tem razão. Mas agora apaixonou-se pela Premier League, e diz porquê: «Não há nenhum espectáculo desportivo do mundo com maior grau de competitividade e exigência, física, técnica e estratégica, do que o futebol europeu de alto nível.» Exigência é o sinónimo de dificuldade. O facto de toda a gente gostar de ver a influência da sorte e do azar em qualquer actividade humana é outro que joga a favor do futebol. É suposto o futebol ser extremamente difícil, e é suposto continuar a ser um jogo de azar.

Finalmente, o equilíbrio, que decorrer das duas condições anteriores. Um jogo de futebol em que não existe um equilíbrio de forças suficiente para manter a incerteza do resultado deixa de ser um jogo de futebol e torna-se numa pasta, num exercício burocrático. Já não é jogo, é agenda.



É na protecção destes três princípios fundamentais que reside a missão da Inglaterra.



Porque é que ainda hoje a FIFA aceita que um pequeno grupo de velhos britânicos, o International Board, decida quais são as regras do jogo, quando poderia perfeitamente dizer que não, que agora o futebol já não era inglês mas um bem do mundo? Porque a FIFA, no fundo, como todos nós, sabe que só os britânicos entendem a essência profunda deste jogo, e que só eles o podem proteger como ele deve ser protegido de maneira a não degenerar completamente.

Em todas, literalmente todas as decisões que o IB toma, há um princípio que, para o resto do mundo, é perfeitamente irracional: para o International Board não só no futebol há um lugar instituído para o erro como há espaço para o arrependimento. Quando falo em arrependimento falo em aprendizagem individual e íntima. Ao manterem as regras do jogo simples, ambíguas e muito latas, ao abrirem o critério, ao libertarem o jogo de excessos de leis, de racionalizações e de jurisprudências, ao proporcionarem espaço para a liberdade individual, o que os britânicos estão a fazer não é a serem negligentes ou descuidados – o que eles estão a fazer é a dar espaço ao futebol para que, através dele, o homem, o individuo (seja jogador, treinador, dirigente ou simples observador), possa, por vontade própria, se assim o quiser, ser o melhor de si próprio, em vez do pior, e sê-lo porque quer, não porque alguém, ou porque eles (o tão tipicamente nosso eles) o obriga ou porque assim está instituído.

É essa a verdadeira essência do futebol. Uma oportunidade.

É esse espaço para o melhor que há em cada homem, por escolha própria, é essa vertente profundamente educativa, como se o futebol, mais de cento e cinquenta anos depois, continuasse a ser um hobby de jovens estudantes universitários, que faz com que aqueles que já ganharam tudo no futebol, como José Mourinho ou Cristiano Ronaldo, queiram voltar à sua origem, como que para se repurificarem. Porque é essa pureza, religiosamente guardada pela Football Association dentro de um cofre ético, que não se pode comprar, e que, por isso, não pode ser corrompida.

No dia em que a International Board e a Football Association sucumbirem à voracidade degenerescente com que o terceiro mundo futebolístico olha para o futebol, então o futebol será, definitivamente, um desporto da rua, cairá completamente nas mãos das massas, será, talvez, mais popular do que nunca – até entre os yankees, que não percebem que um jogo que acabe 1-0 pode ser um jogo fabuloso – e proporcionará alegrias em série, dinheiro em catadupa, democracia, muita democracia, democracia total, mas também terá dado um passo decisivo na sua destruição. Porque quando o futebol falhar, ao primeiro rebate numa parede que se encontra sempre, em todas as coisas que fazemos, vamos querer recuar aonde recuamos sempre quando sentimos que fomos longe de mais, vamos querer encontrar um princípio de onde recomeçar, vamos onde vamos sempre (à Inglaterra) – e quando lá chegarmos perceberemos que o football já não existe.

Isto não é um discurso elitista, nem aristocrático. Eu sou um democrata – que remédio tenho eu, se ainda não se inventou uma forma política melhor que a democracia – e não tenho qualquer pretensão em resistir à força das massas. A massa é e será, à medida que a população mundial cresce e se informa, o mais importante elemento social e político à face da Terra. Mas é bom que se perceba que a democracia nunca existiu. E quando digo nunca é mesmo nunca.



Em tudo isto, há romantismo. Sem dúvida. Mas quem não é ao menos um pouco romântico não gosta verdadeiramente de futebol. Como quem não acredita em heróis não gosta de desporto.



O facto de a Inglaterra ser vista como a nação mais tradicionalista e conservadora da Europa leva-nos, frequentemente, a esquecer que foi em Inglaterra que se inventou o liberalismo – liberalismo que podemos definir, grosso modo, como a aplicação da liberdade natural à economia e à política.



A mesma federação que rejeitou a participação em competições internacionais de futebol até à década de 50 por considerar que os estrangeiros estavam a corromper o jogo que os ingleses tinha inventado (a FA, entenda-se) foi também a primeira a admitir o profissionalismo dos jogadores como consequência lógica da evolução do jogo de hobby a actividade económica de massas.

Os mais novos não podem saber disto, mas eu lembro-me perfeitamente de, já adolescente anos 80 e 90), ver jogos de futebol ingleses em que não havia cartões e não era permitida mais que uma substituição. O jogador advertido era chamado pelo árbitro, que anotava o seu nome no livrinho (daí a expressão booked) e, em caso de ser expulso, limitava-se a chamá-lo e a apontar em direcção às cabines, mandando-lhe que se retirasse. Já quanto os suplentes, havia jogos em que só se equipava um.

Pois a federação que levou tão longe estas tradições foi a mesma a abrir, já nos anos 90, o capital dos clubes a accionistas estrangeiros, dando a personalidades tão ambíguas como Elton John, Mohamed Al Fayed, Roman Abramovich, à nova remessa de americanos, no United e no Liverpool, ou até ao actual xeque Mansour do City, o mais rico de todos, a oportunidade de possuírem a maioria financeira nas suas principais instituições futebolísticas.

Os ingleses, que inventaram as subidas e as descidas de divisão de forma a que muitos clubes, e não apenas uma elite, pudessem competir e formassem um corpo democrático que fortalecesse, pela raiz popular, o futebol, foram os mesmos que inventaram os fundos financeiros fantasmas que Vale e Azevedo trouxe para Portugal e que hoje (fina ironia…) servem de Dona Branca ao Futebol Clube do Porto – e pelas ligações aos quais o clube vai ser investigado pela FIFA.

Mas também são os ingleses, note-se, quem está, também aí, na vanguarda, ao imporem as regras nas ligações a esses fundos de jogadores que serão, como se vai tornando claro, adoptadas pela própria FIFA.



Tomamos facilmente os ingleses por tolos. O facto de serem tradicionalistas e conservadores leva-nos a confundir boa-fé com credulidade, e espírito aberto com inocência. Parecem-nos fáceis de enganar. Acreditam em tudo. Vemos o que Wenger e Mourinho lá vão fazer, a diferença que há em termos de ciência, vemos o futebol continental a entrar por ali a dentro, e pensamos que eles são os atrasados e nós os adiantados, e é o contrário. Somos nós os tolos. Somos nós os assimilados, e não eles os colonizados.

Os ingleses pegaram no seu liberalismo económico e nos seus princípios profundamente democráticos e aplicaram-nos ao futebol, fazendo dele não política mas mantendo-o como jogo. O resultado é um permanente fortalecimento do futebol inglês. Um fortalecimento deles, os inteligentes, graças a nós, os espertos. Eles, os zeladores, e nós, os experimentadores.

A propósito desta natureza ambígua dos ingleses, do zelo conservador que, na verdade, se destina a proteger as mais liberais criações sociais da civilização ocidental, recomendo, para quem se interessar por estes temas, um ensaio de Michael Oakeshott, emérito pensador inglês do século XX. O texto chama-se «A Disposição Conservadora», em inglês «The Conservative Disposition», e é brilhante, vale a pena.



O facto dos ingleses terem aberto a sua economia futebolística ao estrangeiro é o mais revelador na história do futebol. A criação da Premier League e das regras financeiras colocadas ao dispor dos clubes ingleses equivale a ouvir os templários do football dizerem isto: «Já não faz sentido resistir. O nosso jogo tornou-se maior que a nossa terra. Já não é apenas uma coisa que fazemos ao domingo e que os outros copiaram. Isto já não é caseiro. Isto agora é económico. E se é económico e não é da nossa terra, é global. Não é daqui. É do mundo inteiro. Tudo bem, vamos a isso. Nós sabemos fazer isso. Afinal fomos nós que inventámos.»



A instituição da Premier League é a verdadeira chave de pedra da globalização económica do futebol.



As pessoas costumam dizer que o mal do futebol é o dinheiro. A ideia está lá, mas não é bem isso. Os ingleses já perceberam isso há mais de cem anos. O mal do futebol, a haver mal (que não há, realmente), não é o dinheiro, é a lógica económica, o que é diferente. A lógica económica é a mesma em Kinshasa, no Porto ou em Londres, havendo muito ou pouco dinheiro – havendo ou não dinheiro, porque não tem de haver dinheiro propriamente dito para haver economia (que se entende como a utilização de recursos esgotáveis para atingir determinados fins).

Não é só por se ser rico ou se ser pobre que um clube vai prosperar. É por saber ou não conviver com a lógica económica da globalização em que, queira ou não, vai estar inserido.



O romance acabou. E é por aqui que chegaremos, amanhã, finalmente, ao nosso quintal à beira-mar plantado.

4 comentários:

  1. A tua visão integrada dos assuntos fascina-me.Não te quero passar a mão pelo pelo,mas tens aí uma grande tola.Parabéns pelo post.

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  2. Aqui os comentários repetem-se - as crónicas, dia sim, dia sim, são excelentes, revelando uma capacidade de análise invulgar e uma forma absolutamente original de olhar para o futebol.

    Abraço

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  3. Epá, tu deixas sempre um gajo sem hipótese de dizer nada. Fantástico post.

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