sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Maquiavel não explica


Ao fim de mais de uma década como presidente, Vieira está a aprender, à força, uma verdade incontornável: no Benfica não existem monarquias, e muito menos dinastias.

Não tem a haver com mérito, nem com carácter, nem com resultados. Tem a haver com cultura. Com oito campeonatos, Vieira estaria, da mesma forma, fora de prazo.

A longevidade como presidente, aliás, só encontra justificação na situação catastrófica e única em que o Benfica se encontrava à entrada da década passada. Foi uma solução excepcional numa situação excepcional.

Foi.

Como já disse neste espaço há alguns meses, acredito que o tempo útil de Vieira ainda não acabou. Não gosto do Vieira, nunca gostei, mas não confundo a estrada da Beira com a beira da estrada. Escrevi que Vieira merecia ter dois anos com as contas saneadas, o que aconteceria (em princípio) com a assinatura de um contrato televisivo com números realistas. Apanhou a pior crise económica do país nos últimos 90 anos. Continuo a achar que o tempo ideal para Vieira seria mais um mandato. Mas há «mas».

Se Vieira estiver à espera de se perpetuar no poder quer por si próprio quer por testas de ferro, estará a cometer um erro de palmatória, que consiste, precisamente, em não conseguir perceber que o Benfica não é o Sporting – em que os líderes, por tradição, são escolhidos por uma clique de nobres (nas próximas eleições já serão escolhidos por uma claque de grunhos…) – nem é o Porto – um clube sem tradição pluralista, de implantação popular e muito territorial mas sem opinião nem contraditório.

Para muitos benfiquistas, esta propensão para a democracia é uma fraqueza. Para estes – com legirimidade para pensarem assim, acrescente-se – a forma de ganhar é encontrar um Pinto da Costa vermelho. Essa angústia por um Grande Líder explica-se com facilidade. Não é uma discussão que tenha nascido com o futebol português, entenda-se.

Em política, Nicolau Maquiavel escreveu O Príncipe, no século XVI, precisamente para tentar ensinar ao futuro príncipe de Florença que a única forma realista de governar com sucesso seria concentrando totalmente o poder na sua pessoa e assumindo uma estratégia de terror, explícito e implícito. Conhecem a frase: «Os fins justificam os meios»? É de Maquiavel.

Esta corrente realista e totalitária fez escola. Nos últimos 500 anos houve inúmeros regimes em que os seus líderes tentaram aplicar a fórmula maquiavélica, e, actualmente, o realismo é uma escola tão praticada como a idealista. O Porto, por exemplo, é, claramente, um regime maquiavélico – entenda-se que esta afirmação não tem a haver com «bons e maus», com «certo ou errado»; tem a haver com a estratégia de poder interno. O que existe no Porto, hoje, é o Príncipe, aclamado e aceite, intocável e instalado, e em seu redor uma corte de funcionários especializados e tarefas mas politicamente inúteis. Vieira tentou implantar o mesmo sistema no Benfica, mas não conseguiu concretizar a concentração do poder numa única pessoa em vitórias de guerra. De qualquer forma, como já disse, essa não é a matriz do Benfica.

A matriz do Benfica é a do idealismo. Sendo a única grande colectividade legal a funcionar num sistema realmente democrático durante o Estado Novo, conseguiu, graças a isso, não só sobreviver como exceder-se, forçando o próprio regime a aceitá-lo (ao contrário do que se diz, Salazar não era esquisito: qualquer forma de propaganda que servisse para consolidar o seu poder pessoal era válido).

A democracia tem custos elevados. Não só degenera frequentemente em demagogia, perdendo o sistema as virtudes decorrentes da democracia – renovação de valores, de estratégias, legitimidade e autoridade reforçadas pelo consentimento popular, sentimento de pertença e comprometimento com a causa reforçados, e outros – como só faz sentido no longo prazo.

A grande diferença entre a democracia e a monarquia é precisamente essa: o sucesso alcançado pela via democrática é mais estável e longevo, porque não depende tanto das pessoas mas mais do sistema, que vai renovando as pessoas (é um sistema com crises, como todos, mas com uma capacidade de regeneração superior); o sucesso alcançado pelo absolutismo é episódico, depende do carisma e da capacidade de uma pessoa, ao qual o sistema não sobrevive.

Visto de outra maneira, é como comparar um país em que a sociedade civil é forte e outro em que o Estado é tudo. Ambos têm problemas para resolver, mas no primeiro há maior diversidade de soluções quando as crises aparecem, enquanto no segundo se instala o estaticismo por falta de criatividade.

Desde que a democracia se instalou no Ocidente, sobretudo a partir do século XIX, os países democráticos ganharam vantagem cultural sobre os regimes absolutistas e autoritários. O realismo maquiavélico é, frequentemente, utilizado como forma de ganhar no momento, mas revela-se, invariavelmente, ineficaz no longo prazo. O absolutismo só tem presente, não tem futuro. O pluralismo parece não ter presente, mas só ele tem futuro.

O mais difícil, quando se tem o poder, é saber abdicar dele em favor de um bem maior.

Já aqui escrevi que o melhor serviço que Vieira poderia prestar ao Benfica seria, depois de ganhar as eleições, deixar montada uma estrutura técnica que permitisse a qualquer novo presidente mandar apenas na parte estratégica, e que permitisse manter um sistema de decisão técnica e gestão que sobrevivesse às pessoas que, pontualmente, ocupassem os lugares. Depois disso, deveria alimentar duas ou três correntes alternativas, permitindo que os sócios voltassem a ter um poder real no momento em que ele libertasse o mando, e permitindo que a escolha pudesse ser feita em pessoas minimamente preparadas e não em demagogos.

Com isto, Vieira (de quem eu não gosto) ganharia, provavelmente, o lugar como um dos três maiores presidentes na história do clube.

Mas eu sou realista.

Não é isto que vai acontecer.

O que vai acontecer é que, no fim, em vez de saber sair, Vieira (que fez um trabalho espantoso, de facto) vai ser apenas um bom presidente do Benfica forçado pelos sócios a abandonar a cadeira.

O melhor que o Benfica tem é precisamente que, quer ele queira quer não, é isto que vai acontecer.

E é por isto que o Benfica continuará a ter a vantagem funcional sobre os seus adversários à medida que os níveis de competitividade destes vão oscilando.

Afinal, como todos compreenderão, aprovar um prejuízo de 12,5 milhões de euros não é mais que uma irresponsabilidade – uma irresponsabilidade que, em noventa por e oito por cento dos casos no futebol português, passa, mas que um sistema democrático tem muito mais facilidade em reconhecer e corrigir do que um Estado papal, em que toda a autoridade está no papa, e em que ir forçar a demissão do papa equivale a demolir a catedral.

domingo, 23 de setembro de 2012

Para lá do Xistra


Aos 19 minutos da primeira parte do jogo de Coimbra, por falta de futebol que ver, decidi contar quantas vezes é que o Benfica conseguia passar bem a bola. Não fui buscar papel nem caneta, porque sabia, à partida, que não ia ser preciso.

Quantas vezes é o que o Benfica conseguia progredir a passar a bola pelo menos três vezes no meio-campo do adversário – ou seja, quantas vezes é que, no momento de receber o terceiro passe, a bola estava à frente (nem que fosse um metro) do ponto em que o primeiro passe tivesse sido feito.

Não sei se a conclusão vai chocar alguém. É possível, porque a maior parte das estatísticas do futebol são contra-intuitivas. Mas o total foi um. Uma vez.

Em 25 minutos de futebol a equipa de futebol do Benfica conseguiu fazer avançar a bola, em três passes, no meio-campo de ataque, uma vez. A bola avançou cerca de cinco metros e, quando o Bruno César a recebeu, estava na faixa lateral a meio desse meio-campo. Ou seja, a cerca de 50 metros da baliza. Todas as outras vezes em que o Benfica chegou perto da área da Académica foi através de jogadas fortuitas, individuais ou de erros dos adversários.

O Benfica do Jesus não sabe jogar futebol. Com ou sem postes, com ou sem Witsels, com ou sem Xistras, com ou sem Champions, com ou sem Pintos da Costa, o Benfica não sabe jogar à bola.

Não é de agora que não o sabe. Nem é de agora que nem sequer tenta. Lembro-me que desisti de esperar que o Benfica do Jesus começasse a jogar futebol em Dezembro do ano passado. Perdi a paciência. Deixei de esperar algo mais desta equipa e deste treinador, mesmo com a possibilidade de se ganhar o campeonato. E desde então não voltei a esperar nada. Não há milagres.

É por não esperar nada deste Benfica que passei ao futebol americano e só voltei ao jogo, por acaso, no momento em que o Cardozo ia marcar o penálti – e é por não esperar nada que não alterei uma vírgula do que já tinha escrito depois da bola entrar na baliza.

 

O que é mais irónico é que a situação em que o Benfica está – a de equipa desfalcada, sem favoritismo, e aparentemente sem rei nem roque – é a que, historicamente, mais favorece. A «política do operário» que o Vieira foi obrigado a comunicar («vamos ter de vender mais…») é a que levou o Benfica a ganhar mais na sua história.

Só um louco é que poderia dar, neste momento, favoritismo a outra equipa que não a do Porto. O próprio Jesus, ao dizer que o Benfica é «um dos principais candidatos», desceu, claramente, à Terra – ou seja, ao sítio onde está o Sporting.

Com um Benfica à moda antiga, colectivo, humilde, de trabalho, eu ousaria dizer que os temos mesmo onde os queríamos. Mas este Benfica já não é à moda antiga.

Neste Benfica moderno, das vedetas, a primeira opção é correr com a bola e só depois passar. Pensa-se primeiro na solução individual, e só depois no colectivo. Aceita-se a sorte do jogo com relativa benevolência. Os salários estão em dia, afinal. Para se receber basta ir aos treinos. Talvez muitos benfiquistas não saibam mas, no tempo do Fernando Martins, os jogadores ganhavam mais em prémios de jogo que em ordenados. Esse malandro. Era um autêntico negreiro…

Uma equipa com cultura colectiva e de vitória supera com relativa facilidade a troca de um ou dois jogadores, a troca de um sistema táctico por outro, mesmo que a qualidade individual caia consideravelmente.

Uma equipa que baseia o seu valor nos valores individuais, não.

Faltam 25 minutos para o jogo de Coimbra acabar. Está 1-1.

E não mudo uma vírgula.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

«The Day After«


O primeiro jogo pós-apocalíptico da equipa do Benfica, em «Celtic» (como diria o Jorge Cadete) foi uma boa proveta para o que será a época. Não no sentido de deixar boas ou más indicações mas no de mostrar como vai jogar a equipa do Benfica.

 

(Antes de mais, uma nota para esta equipa do Celtic, menos que medíocre, fraquíssima, arriscaria mesmo dizer que a mais fraca da Liga dos Campeões, e que vem, uma vez mais, confirmar que os escoceses deveriam ganhar o prémio para «o futebol mais incompetente do Mundo». Com o dinheiro que os escoceses têm, o clima de verdade desportiva, a paixão dos adeptos e a proximidade da Premier League, arrisco dizer que Portugal estaria no top-3 do futebol europeu de clubes. Voltando ao Benfica…)

 

A única hipótese minimamente credível desta esquartejada equipa do Benfica não se imolar em chamas por altura do Natal e alcançar um sucesso mínimo no final da época (passar a fase de grupos da Champions e acabar em segundo no campeonato) consiste em:

- jogar em toque de bola, e manter a bola o máximo de tempo possível e o mais afastada possível do seu meio-campo, evitando que um conjunto de jogadores que não sabe defender tenha de defender – só há dois jogadores do Benfica que sabem defender (Luisão e Garay). Se estão a pensar em Maxi, está errado. Maxi defende mal. As grandes jogadas defensivas de Maxi são, na verdade, jogadas em esforço, que ele ganha porque é um lutador, e ganha-se em esforço, não em técnica defensiva. Tem é muita capacidade para se esforçar, e engana bem.

- marcar muitos golos, pelo menos dois por jogo – que compensem a inevitável falha defensiva que, 90 por cento das vezes, vai aparecer – e fazê-lo recorrendo a um ataque de mobilidade extrema, em que quase não se perceba quem joga onde.

 

Qualquer outra conversa é falácia. Estou a escrever no decorrer do jogo, com o resultado em 0-0, e, antecipando já a conversa da «pressão alta» do Jesus, afirmo que a «pressão alta só vai dar alguma coisa em meia-dúzia de jogos, com equipatão fracas como as do Celtic e fora de casa. Uma equipa que veja este jogo «em Celtic», que saiba jogar só um bocadinho e que tenha a oportunidade de preparar o jogo vai ter avenidas abertas em transição, e vamos voltar a assistir a algo que já víamos antes, mas agora em maior quantidade: os defesas do Benfica a apanharem com os avançados lançados direitos a eles, tentado tapar um buraco para deixarem outro aberto onde entrará o jogador seguinte, até ao remate.

Para pressionar alto é preciso ter jogadores que, mesmo não defendendo bem, sejam consistentes durante o jogo e como equipa – em contrapartida o Benfica tem Aimar, Gaitán, Salvio, Carlos Martins, desconfio que Enzo Pérez…

A «pressão alta» do Benfica vai falhar rotundamente, e daqui a cinco ou seis jogos, os jogadores do Benfica, pressionados pelos maus resultados, vão perceber que não é na defesa que vão ganhar jogos, mas no ataque, e que a única hipótese que têm é deixando de jogar com a displicência a que estão habituados – deixando de precisar de chegar 10 vezes à área contrária para ter de fazer um golo.

Se uma equipa de alta competição, sobretudo nos grandes jogos, vive e morre da eficácia ofensiva, esta ainda mais. Para poder competir com as outras, terá de ser muito mais eficaz que as outras.

 

Dito isto, tenho de avisar os meus consócios benfiquistas de que a colocação de uma fasquia de exigência elevada, para este Benfica, é um acto de potencial suicídio anímico e mental. Como é evidente, em termos de resultados imediatos (leia-se nesta época) este Benfica está tanto à beira do milagre como à beira do desastre.

 

Quanto ao resultado de hoje (aos 65 minutos está 0-0), devo dizer que, depois de ver jogar o Celtic no fim-de-semana passado e hoje, estou convencido de que a equipa que não lhes conseguir tirar os seis pontos será a equipa a ficar em terceiro no grupo.

 

(Olha, 2-1 para o Spartak em Barcelona…)

sábado, 15 de setembro de 2012

O dízimo


Nos seus tempos áureos, de República expansionista, as legiões romanas impunham um código de conduta em batalha que as diferenciava de todos os seus adversários. De um legionário romano esperava-se que entregasse a vida pelos seus camaradas sem hesitar. Como ninguém é um adepto natural de entregar a própria vida sem hesitações, havia acções motivadoras. Uma delas era a da dizimação.

Dizimar vem de dízimo, que significa um décimo, e a regra era simples. A unidade colectiva básica da legião romana era a decúria, um conjunto de dez legionários, que por sua vez formavam uma centúria, um conjunto de dez decúrias. Sempre que os comandantes das decúrias ou das centúrias – decurião ou centurião – consideravam que o comportamento das suas tropas tinha sido particularmente cobarde ou embaraçoso em batalha, mesmo em caso de vitória, alinhavam as decúrias, sorteavam um legionário e, ali mesmo, mandavam-no avançar e, diante de todos, cortavam-lhe a cabeça. No caso de uma centúria, executavam, sumária e arbitrariamente, dez soldados.

As decúrias eram, assim, dizimadas.

Este tipo de disciplina brutal permitiu que um exército originalmente de bandidos e saqueadores, em inferioridade numérica perante praticamente todos os seus inimigos, se transformasse no maior império do seu tempo.

Eu gostaria de dizer que a equipa do Benfica se encontra dizimada após o castigo imposto ao Luisão, mas não posso, porque a esta disciplina falta um elemento fundamental: a autodeterminação. Não foi o Benfica que decidiu dizimar-se. O Benfica preferia não se dizimar. Para o Benfica é mais importante ter o Luisão durante dois meses do que ter disciplina interna. O que é mau, na minha opinião, nem é isso: é 98 por cento dos benfiquistas – incluindo os que vêm aqui ao blog – concordarem com essa posição.

Eu gosto do Luisão, acho que o Luisão teve um mau momento na Alemanha, que não reflecte a sua postura em campo, e acho que o árbitro jamais se teria fingido de morto se o jogador a abalroá-lo fosse do Fortuna de Dusselford – o que me leva a acreditar nisto é o sistemático preconceito dos árbitros do Norte da Europa, especialmente alemães, em relação aos pretos da Europa (nós, os gregos, os turcos e afins).

Dito isto, o que teria ficado gravado no ADN do Benfica, a seguir ao incidente, teria sido uma suspensão imediata do Luisão, unilateral, por parte do Benfica, e um pedido de julgamento sumário ao jogador.

Culturalmente, é quase impossível a uma Direcção de um clube português tomar uma medida destas. Para o povo, teria sido inaceitável. Dir-se-ia que os jogadores tinham de jogar até contra a própria Direcção, que esta estava a dar tiros nos pés, que tinha entregue o ouro ao bandido, etc, etc. Em parte, tudo isto é verdade. O Benfica estaria a dizimar-se.  Mas a dizimação, quando é bem executada, pode transformar-se numa arma poderosa.

A disciplina – que eu considero como a capacidade autónoma de concentrar a energia nas acções necessárias ao sucesso – é o ponto fraco das equipas portuguesas (para não ir mais longe e dizer que é o ponto fraco da sociedade portuguesa).

Mesmo a melhor cultura futebolística portuguesa dos últimos 30 anos, a do Porto, é disciplinarmente fraca, ainda que relativamente forte em relação à dos outros. Quando eu vejo os jogadores do Porto a discutirem com os árbitros, a fazer faltas desnecessárias, quando vejo os treinadores a ar graxa ao cágado e a mistificar o que é vulgar, quando vejo a Direcção do Porto a ir contra o próprio jogo para não perder pontos, a dar a volta à lei para ganhar vantagem, não vejo o que os outros vêem. Não vejo demonstrações de força. Vejo um ponto fraco.

Mais: vejo o ponto fraco.

É por ali. É aquele o calcanhar de Aquiles.

E é-o não só porque é uma debilidade, mas porque é uma debilidade que não pode se corrigida. A cultura de vitória do Porto assenta num ponto básico: não dar o flanco. Fechar as alas e ir contra tudo e contra todos. Defender os seus até para lá do racional. Se o Luisão fosse do Porto, a Direcção do Porto faria tanto ou mais para evitar o castigo do que o que a do Benfica fez. (Aliás, pode-se mesmo dizer que o comportamento da Direcção do Benfica se baseou numa premissa: «Em Portugal, a equipa que ganha faz isto. Portanto, se queremos ganhar, também temos de fazer isto, porque deve ser o que se faz quando se quer ganhar.»)

Se a Direcção do Porto fosse contra essa cultura estaria a destrui-la, pela base. Não pode. Não sabe como. Quando se ganha, conserva-se o que se tem. Não se altera nada. Até porque, quando se altera, é quase inevitável perder-se.

O ponto fraco do Porto é e vai continuar a ser a disciplina. Tem muita, mas não tem obrigatoriamente a suficiente.

Quando Benfica ou Sporting conseguirem ser, realmente, diferentes (normalmente o que se passa quando se diz que tem de se ser diferente é que se quer fazer igual, mas com mais ou menos intensidade) no aspecto da disciplina, terão encontrado a brecha na armadura.

Mas não é, nem de perto nem de longe, fácil. É preciso ir contra tudo o que está instituído. Geralmente, os acessos de disciplina não duram mais que dois ou três jogos quentinhos. Ao terceiro já há vapor a sair pelas orelhas, asneiras a sair pela boca, árbitros insultados, adversários agredidos, faltas distribuídas a rodos. Para cultivar a disciplina é preciso muita força de vontade. Para a perder, basta um acesso de fraqueza. É como ser alcoólico ou toxicodependente. Podemos estar três anos sem tocar em álcool, mas se bebermos um copo o mais provável é não conseguirmos parar e, ao fim de uma ou duas semanas, já nem nos lembrarmos dos tempos em que estávamos sóbrios.

Quais são as probabilidades de uma Direcção de um clube português castigar o seu capitão e jogador fundamental unilateralmente para cultivar a disciplina? Realisticamente, quando é a própria Direcção a fomentar a mensagem de que os árbitros são corruptos e de que «nos roubaram o campeonato», nenhumas. É demasiado difícil. Seria preciso haver pessoas excepcionais à frente do clube (talvez seja uma boa oportunidade para irem ver a história do Félix, nos anos 60, aquele que muitos consideravam que viria a ser o melhor central português de todos os tempos).

Se eu fosse eleito presidente do Benfica, hoje, faria quatro coisas antes de todas as outras:

- como já disse antes, juntava toda a gente que trabalha com a equipa na sala de vídeo e passava o filme dos 5-0 nas Antas, em 2010;

- dizia apenas isto: «Vamos trabalhar» - porque o líder lidera pelo exemplo, e pelas acções, não pelas palavras, e o que o Benfica viesse a ser seria pelo que eu fizesse, não pelo que eu dissesse – deixaria de ser um clube de conversa e passaria a ser um clube de prática, sem desculpas;

- distribuía uma circular interna a dizer o seguinte: «Qualquer questão relativa a arbitragens que venha a ser levantada, em público ou em privado, tem de ser respondida da mesma forma, por jogadores,técnicos e todos os outros profissionais de futebol do Benfica: ‘Não falo de árbitros’. A sanção é uma multa de metade do ordenado.»

- rodeava-me de pessoas melhores do que eu, que me lembrassem do meu sentido e me mostrassem a minha fraqueza sempre que eu me sentisse compelido a ir contra o meu próprio código.

Em Portugal, as pessoas consideram que o segredo para vitória está nos árbitros. E têm razão. Mas enganam-se numa coisa. O segredo não está no controlo negativo dos árbitros. Está no controlo positivo. Não é mandar neles para tirar força aos outros – é usá-los, como elemento adverso, para ganhar força.

A equipa que primeiro descobrir isso e que consigam disciplinar-se (se e quando alguma o conseguir) será, provavelmente, a próxima força do futebol português.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O Canal do Porto


Ontem à noite estava a fazer zapping e, sem querer, a televisão ficou no Porto Canal durante cinco minutos. Foi o suficiente para acontecerem três grandes momentos televisivos.

 

O primeiro foi eu ter percebido que o Porto anal tem, de longe, as mulheres mais giras e mais boas da televisão portuguesa. Assim, sem mais nem menos, apareceram três princesas que põem as matrafonas dos telejornais dos canais generalistas com as malas à porta de casa e um bilhete para o autocarro.

Sinto-me tentado a dizer que, se se tirasse o som, o Porto Canal seria o melhor canal da televisão portuguesa, mas não posso, porque aquele cantarzinho das meninas ainda as torna melhores.

Confirmo uma ideia que já tinha: no Porto estão as melhores mulheres de Portugal.

Vou voltar ao Porto Canal. Basta ignorar o que elas dizem.

(E se acham que este comentário não foi suficientemente sexista, acrescento que, na minha escala de importância, os Jogos Paralímpicos são uma espécie de desporto feminino, mas para pior: é uma forma de fazer as pessoas sentirem-se melhor, de uma maneira geral e, a menos que as mulheres usem mini-saia ou calções justos, não tem interesse nenhum.

Se houver aí alguma mulher, ao engano, pode enviar o comentário de repulsa e nojo utilizando o espaço legalmente reservado.)

 

O segundo foi quando apareceu a notícia de que o Pinto da Costa tinha sido operado, entre a notícia de que os professores podiam trocar de colocação com outros professores para ficarem mais perto de casa e a notícia do homem que matou a mulher em Ílhavo, ou na Cedofeita, ou lá onde foi.

Acho que, para um portista, nos últimos dias, só havia uma notícia pior do que «Hulk foi vendido»: «Pinto da Costa foi operado ao coração».

Note-se que só hoje é que se soube que foi ao coração, o que ainda dá mais relevo à intenção de fazer de conta que nada aconteceu, como se o velho tivesse ido tirar uma verruga das costas.

O que tornou aquele momento num grande momento televisivo foi perceber-se o pânico que gerou e o desespero em retirar importância à notícia – isto, note-se, quando, pelo que nos dizem, não há nenhuma razão para preocupação. Afinal, há pessoas que vivem com duplos e triplos by-passes durante mais de vinte anos.

O que foi bom não foi o velho estar a morrer – foi sentir o terror nas alminhas.

 

O terceiro grande momento televisivo não foi ontem à noite, não se passou no Porto Canal e nem sequer foi um momento televisivo, mas como fica aqui bem, porque é para cascar, vamos fazer de conta que sim.

Há uns dias, no Record, a propósito de uma peça sobre o Fernando ir para o Inter de Milão, pela vigésima-quinta vez (acho que foi sobre o Fernando, mas, se não, era um dos outros brasileiros), li que um dos empresários do jogador é o genro do Pinto da Costa.

Às vezes, até os jornalistas avençados do Porto sentem a urgência de dizer qualquer coisinha fora dos parâmetros estabelecidos – julgo que será para não se esquecerem que, um dia, muito antes de se tornarem mulas ao serviço da causa, sonharam ser jornalistas – e descaem-se.

Eu repito: um dos empresários do Fernando é o genro do Pinto da Costa.

Talvez isto não diga nada a muita gente que também tenha o genro ou um primo ou um afilhado a dar uma ajuda no negócio, mas a mim diz.

A direcção do Porto, uma associação criminosa com fins lucrativos – a direcção, não o Porto – perdeu completamente o pudor. A cosa tornou-se tão nostra que até o pai da mulher do padrinho recebe uma parte de um jogador para garantir a reforma. Na direcção do Porto, o termo «família» ganha uma dimensão completamente diferente.

É fácil de perceber porque é que o presidente do Zenit diz que só pagou 40 milhões pelo Hulk quando a transferência terá sido de 60 milhões. Por um lado, porque é um negócio da Rússia – o dinheiro não é do clube, nem é da Gazprom, nem é do Estado, não é de ninguém ao certo, nem é realmente dinheiro, mas sim qualquer coisa de valor indefinido que, antes de ser utilizada, tem de ser lavada várias vezes, passando por vários canais secundários. Ora, como eu já disse atrás, o Canal do Porto tem grandes potencialidades. Eu diria mesmo que, atendendo ao volume de 500 milhões de euros que por ele já passou em dez anos (ver Record), não há nenhum Canal no Mundo que se lhe compare – nem o canal do Panamá, nem o do Suez, nem o da Mancha (porque o do Porto é imaculado, segundo a Justiça portuguesa), nem tão pouco o de Gibraltar, mesmo com um dos maiores off-shores do mundo ali à beira. Perto dos «milhões da treta» do Hulk (ou do Falcão, ou do Cissoko), os «milhões da treta» do Roberto (que são mesmo da treta) parecem uma multa por estacionamento em segunda fila.

Para lavar guita, não há como o Canal do Porto – algo que os russos foram rápidos a descobrir no tempo do Maniche e do Nuno Espírito Santo, e que italianos, franceses, ingleses, romenos, gregos, argentinos, mexicanos ou brasileiros, nos dois sentidos, têm vindo a aprender com crescente interesse.

O problema do Canal do Porto é precisamente o seu volume. É tanta gente a comer, do Araújo da fruta («empresário» do Cissoko) ao pai da Fernanda, dos Guímaros dos quinhentinhos aos Azevedos dos pacotinhos, que, um dia, quando o caudal diminuir, quando a navegação mudar de rota, os adeptos portistas vão descobrir, para seu grande choque, que o clube, que antes ganhava tudo, já não ganha assim tanto, que está mais pobre do que antes (como Portugal depois do ouro do Brasil), que não se vendem camisolas suficientes, que a torneira do São Martinho de Penafiel também deixou de pingar, e que, entretanto, os Anteros, as Fernandas, os Reinaldos, têm todos fortuna no Luxemburgo e grandes mansões em João Pessoa.

Nesse dia, não há bypass que nos safe.

 

P.S. – Outra grande notícia: hoje começa a NFL. Entre jogos em directo, jogos gravados, trabalho e aulas, o tempo que me sobra para ver futebol português, até Fevereiro, é para aí de 90 minutos por semana. O que vai ser óptimo, dadas as minhas expectativas elevadíssimas para esta época. Quando eu voltar a ver futebol com atenção o Matic, o Carlos Martins, o Aimar, o André Almeida, o André Gomes, o Bruno César e o Enzo Pérez já terão salvo o Natal, já me terão demonstrado que, afinal, o Jesus é um génio, e que a abordagem da Direcção do Benfica ao mercado de Verão foi prudente, inteligente e, porque não dizê-lo, brilhante. Na minha opinião, sempre que há uma possibilidade, mesmo que ténue, de se chegar à última semana de um período de transferências que dura dois meses com a possibilidade de destruir a coluna vertebral de uma equipa para o resto da época, sem ter sequer o tempo ou a possibilidade de reconstruir uma ou duas vértebras, essa oportunidade tem de ser explorada e aproveitada até ao limite. O contrário seria estúpido. Porque o equilíbrio de uma equipa de futebol de alta competição é uma coisa demasiado delicada para ser tratada com bom-senso, planeamento e inteligência, obviamente.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

À Xerife


Se perguntarem a 100 benfiquistas de hoje qual foi o melhor central que viram jogar no Benfica, estes vão responder, quase todos, Ricardo Gomes, Mozer ou Humberto Coelho. Para o meu pai, que tem quase 70 anos, não há dúvida nenhuma: «Germano» (depois contava-me outra vez, com o mesmo espanto como se a estivesse a ver em câmara lenta pela centésima vez, a história da jogada em que o Germano salvou um golo em cima da linha, numa eliminatória da Taça dos Campeões, de cabeça, para canto, por cima da barra, depois de um chapéu ao guarda-redes, como se estivesse a cortar uma bola num treino. E até faria o barulhinho: «Tic...»)

Eu, que não vi jogar o Germano (mas acredito no meu pai), tenho outra resposta: Carlos Gamarra, o Xerife. Chegou ao Benfica num Verão em que o clube já tinha salários em atraso, jogou meio campeonato, não fez nenhuma falta, não viu nenhum cartão amarelo, e no Inverno foi-se embora por uma pipa de massa.

E se tivesse de dizer o segundo, também seria fácil: Aldair. Chegou miúdo, jogou uma época e foi para o Roma, por um batelão de liras.

Poucos diriam estes nomes, porque não fizeram história (o Aldair ainda foi campeão, salvo erro), mas em termos de qualidade estavam acima de todos os outros. Tal como o Witsel.

Ao contrário de Javi, a saída de Witsel não me comove, nem me impressiona, minimamente.

Tal como Hulk, no Porto, Witsel, no Benfica, não estava apenas acima da categoria da sua equipa como acima do campeonato. É um jogador que não pertence a uma equipa medíocre, com um treinador vulgar, num campeonato medíocre, como é o Benfica de Jesus em Portugal – aliás, Witsel estava tão acima da equipa que resistiu, até, a um treinador que nunca teve mãozinhas para lhe tirar mais que 60 por cento do seu potencial. Ver o Witsel a jogar pelo Benfica era mais ou menos como quando vemos um adulto a jogar com miúdos: temos a sensação de que, se ele quisesse, se se libertasse do pudor, começaria a correr, atropelaria toda a gente e entraria com a bola pela baliza a dentro.

O que é que se faz a um jogador assim? Obviamente, sai-se da frente – quer se esteja a jogar com ele quer se lhe esteja a pagar o ordenado.

A mesma coisa com Hulk. Não é uma questão de fazerem ou não fazerem falta – é uma questão de pertencerem ou não pertencerem cá.

O «Benfica real» não tem nada a ver com Witsels (enquanto o «Porto real» só consegue aguentar um Hulk também desfasado, por três épocas, por um lado devido ao castigo de seis meses, que atrasou a explosão uma época, quer porque, como equipa profissional de futebol, se encontra ainda vários patamares acima do Benfica, e é-lhe mais fácil, pela exposição internacional, aclimatar jogadores superiores).

Por aqui, assunto resolvido: Witsel não «era» do Benfica, e construir uma equipa com a ilusão de ter nela um Witsel não traria nada de positivo.

Segunda questão: é bom negócio?

A resposta também é simples: digo-vos daqui a dois anos.

Como sempre, quando se está dependente do mercado, como é o caso dos clubes portugueses, a chave do sucesso não é se se pode manter ou não um jogador (porque não pode), mas sim se se vai buscar alguém melhor do que quem saíu para o seu lugar.

No caso do Witsel, a regra tem de ser distorcida. O Benfica tem 3 por cento de hipóteses (talvez dois por cento...)de ir buscar alguém melhor que Witsel. Jogadores destes aparecem uma vez por década. A questão, aqui, é onde e como o dinheiro vai ser gasto, nunca esquecendo que o negócio real do Benfica é ganhar títulos, e não ter lucro financeiro.

Witsel custou 8 milhões, salvo erro. Com 40 milhões de euros bem gastos, o Benfica, mesmo cometendo alguma Robertada (que pode sempre acontecer, legitimamente), pode, comprando cinco-vezes-três-quartos-de-Witsel (Javis, Garays, Salvios…), montar a base de uma equipa capaz de ser três ou quatro vezes campeã nos próximos dez anos.

Com 40 milhões gastos em Airtons e Kardecs para o «projecto» pessoal de preenchimento umbilical do Jesus, será um péssimo negócio.

À imagem do que aconteceu, por exemplo, com a saída de Rui Costa para a Fiorentina, e que se resume de uma forma simples: em 1994, depois de ser campeão, o Benfica vendeu Rui Costa por uma fortuna (5 milhões de euros!) de forma a pagar salários e poder reforçar a equipa. Depois de Rui Costa sair, os dirigentes lembraram-se de que o que a equipa precisava era de um «dez», de um patrão (não era, claro, mas enfim...). Passaram dez anos e gastaram três vezes esse valor, paulatinamente, a tentar encontrar o substituto de Rui Costa. Nunca o acharam nem voltaram a ganhar um campeonato até 2005. Ou seja: a longo prazo, se Rui Costa tivesse ficado no Benfica, como queria (queria ir para o Barcelona, para a Fiorentina, não), o Benfica não só teria poupado uma fortuna como, muito provavelmente, com o melhor jogador do campeonato, teria ganho, pelo menos, dois ou três campeonatos (nessa equipa ainda havia João Pinto, Isaías, Paneira, Rui Águas, e outros).

Por isso, em relação ao «negócio da China, daqui a dois anos eu digo qualquer coisa.
 
(Mas que ando com medo, ando - sobretudo ao sentir os tiques de novo-riquismo que por ali andam, como o de ir buscar um internacional holandês por 8 milhões «para o ir adaptando» quando se tem um Gaitán fora dos convocados...)

«Há tipos com sorte»...


«No longo prazo, estaremos todos mortos», disse um economista. É verdade. Quer falemos num sentido literal quer o façamos num sentido figurativo. Tudo passa – nomeadamente as pessoas. Mas é igualmente verdadeiro que alguma coisa fica, sempre. No caso da bola, o que fica é os clubes.

No longo prazo, há quatro etapas consecutivas para se ter sucesso.

A primeira é dar muita importância ao que se faz, mesmo que seja um hóbi (geralmente é um hóbi), ao ponto de se querer trabalhar nele, por prazer.

A segunda é trabalhar sério – de preferência sempre.

A terceira é trabalhar bem – de preferência melhor que os outros.

A quarta é trabalhar muito – de preferência mais que os outros.

No fim disto, os que estão de fora, a ver, e não entendem bem a natureza do sucesso, dizem: «Há tipos com sorte.»

O jogo do Benfica frente ao Nacional é a negação do profissionalismo, desde a primeira etapa. Não seria frustrante se fosse um episódio, mas não é. É um estado permanente, com algumas pontuais e aparentes interrupções. Nos últimos 1000 jogos do Benfica há cerca de 950 como o de ontem. O que me leva a concluir que os restantes 50 não passaram de ilusões quase perfeitas, provavelmente resultantes da autossugestão e da negação.

É por isso que, dos últimos mil jogos, o Benfica tirou apenas dois ou três títulos esporádicos.

O resto – as fintas do Salvio, os golos do Cardozo, as mariquices do Aimar, as melgarices, os «ajustes tácticos» ao intervalo, a «liderança» – é conversa de quem usa crucifixos ao pescoço e de quem se põe de joelhos a rezar ao Caravaggio.

Qualquer cenário que envolva uma equipa casual, como a do Benfica, ganhar o campeonato a uma equipa como a do Porto, ou ganhar uma eliminatória da Champions a uma equipa como a do Manchester United, é, obviamente, um cenário esporádico, insustentável a longo prazo, e sustentável, no curto prazo, apenas por um investimento financeiro massivo e desproporcional em talento consumível.

 ...

A semana que passou consolidou a candidatura do Sporting ao título nacional.

Porto, Benfica e Braga apanharam grupos na Champions que os vão «obrigar» a jogar tudo nessa prova, tais as possibilidades reais de apuramento para os oitavos-de-final e de acumulação de capital.

Recebeu um grupo de adversários medíocres na Liga Europa, que não vai exigir mais que os suplentes para chegar ao apuramento, precisamente na fase mais difícil do calendário.

O jogo de Olhão demonstrou que o Porto tem um grupo de jogadores tão acima, individual e colectivamente, do restante campeonato que será virtualmente impossível não vir a sentir-se previamente vencedor em muitos outros jogos. Em Olhão correu bem. Em Barcelos correu mal. Vai haver mais Barcelos. É o Porto que vai perder este campeonato, claramente, e não os outros que o vão ganhar. Mas para o ano é o Porto que o ganha outra vez, mesmo sem o Hulk.

O jogo da Luz demonstrou que o Benfica é uma equipa em desaceleração.

O jogo de Paços de Ferreira mostrou porque é que o Braga vai acabar a primeira volta com dez pontos de atraso em relação ao primeiro.

O Sporting, o único dos três grandes com 5/6 novos titulares em relação à última época, e com os restantes, à excepção do guarda-redes, a fazerem a segunda época em Portugal, é também o único de entre eles que vai fazer um campeonato em crescendo, colectivamente, e a apanhar a fase decisiva da prova nas condições físicas, técnicas e anímicas mais próximas do ideal.

Também é o único, dos três, que tem um treinador que resiste a uma derrota em casa, com o Rio Ave, à 2.ª jornada, sem ser insultado pelos adeptos. A longo prazo, vai ser suficiente. É só dar tempo para os outros se irem matando.

sábado, 1 de setembro de 2012

Javi isto em qualquer lado


O futebol é 80 por cento de senso-comum e 20 por cento do resto. Nesses outros 20 por cento encontramos aquilo que «faz a diferença» - o conhecimento científico, a inventividade, os factores intangíveis,a psicologia, a sorte.

O que se tem passado com a crescente profissionalização do futebol é que os processos se têm tornado metódicos, e universais, ou seja, a parte científica tem sido mais estudada, o que leva a que mais equipas tenham acesso a mais conhecimento, e a que se equilibrem os valores. Chegamos, então, à célebre fórmula dos «95 por cento de transpiração e 5 por cento de inspiração» como chave para o sucesso. Os 20 por cento reduzem-se ainda mais e o futebol torna-se um jogo de pormenores. Quando damos por isso, nós, os leigos, estamos a discutir as nuances técnico-tácticas provocadas pela ausência do Fernando, do Hulk, do Luisão, do Aimar, como potencialmente decisivas no resultado, por exemplo, de um jogo em que uma equipa de 100 milhões de euros defronta outra de 6 milhões.

Como é que se justifica que isso aconteça? É fácil. Quando percebem que naqueles 20 por cento se encontram, potencialmente, 80 por cento do sucesso, os clubes apostam nesses 20 por cento 80 por cento dos seus recursos. Pareto explica.

Tudo isto acaba por fazer sentido. O que sai caro, sempre, é os detalhes, os pormenores, porque é neles que se faz a diferença quando a competição é exacerbada. Se sentes que precisas de um especialista, de alguém que faça qualquer coisa que mais ninguém faz, mais facilmente gastas 50 milhões nesses especialista que 50 milhões em 10 generalistas.

Tudo isto, contudo, só faz sentido se os outros 80 por cento estiverem no lugar, caso contrário está-se a construir a casa pelo telhado.

Aquilo a que assistimos no Benfica desde a saída de Fernando Martins da presidência, basicamente, foi a um esboroamento do edifício do senso-comum. O que aconteceu foi que, estando esse edifício solidamente construído, quem chegou pensou que bastava fazer o telhado para chegar à «equipa europeia», e meteu o dinheiro todo no telhado. O que se seguiu é facilmente explicável: aos poucos, os alicerces foram-se perdendo, as derrotas foram minando as fundações e o senso-comum, fugiu-se para cima com a casa a cair pela base, e quanto mais se perdia mais se apostava nos «20 por cento» onde se pensava (e se desejava) estar a explicação e o caminho para o sucesso. E assim, o clube (antes) mais bem gerido do futebol português construiu a maior dívida desse mesmo futebol, sem obter nem sequer o retorno mínimo exigível desse investimento.

A venda de Javi Garcia é um acto responsável de gestão. Pertence ao senso-comum. É discutível se é um acto de gestão de qualidade, dadas as opções. Considerando, por exemplo, que o Anzhi terá oferecido 35 milhões por Witsel, eu tê-lo-ia vendido imediatamente para manter Javi, mas duvido, sinceramente, que o Witsel, um miúdo do rock, cheio de cosmopolitismo, quisesse ir viver para a Rússia. A verdade é que, provavelmente, os escassos 20 milhões de euros recebidos pelo Javi sejam o único negócio razoável e possível para o Benfica neste Verão, e, como tal, que tenha de ser feito.

No entanto, há algo que me preocupa profundamente neste defeso do Benfica.

Recuemos ao ponto de partida. No final da época passada, os objectivos em relação a gestão do plantel seriam, por ordem de importância (e isto é subjectivo, claro, porque é a minha opinião, mas creio que há aqui suficiente senso-comum para ser tomado como válido):

- contratar um defesa-esquerdo de bom nível internacional;

- contratar um terceiro-central de nível aproximado ao de Luisão e Garay, eventualmente capaz de fazer mais que uma posição, mas não obrigatoriamente;

- contratar um bom extremo-direito, uma vez que o único extremo de grande nível no plantel é Gaitán;

- um médio-centro para jogar (na altura falei de um Özil mais «pequenino»), capaz de fazer o que o Aimar não faz (dar presença defensiva consistente) e de fazer uma parte daquilo que ele faz (pôr a equipa a jogar) mas sem perder tantas bolas.

Nas saídas, a ideia seria vender os que não faziam tanta falta (Gaitán e Cardozo) e manter os que são fundamentais (Garay, Javi Garcia, Witsel, os três únicos jogadores do Benfica de verdadeira dimensão mundial, como eu referi neste blogue e como o mercado veio a comprovar). Além disso, despachar o Saviola que era um a menos no futebol e três a mais nas contas.

Tanto quanto fosse possível passar ao lado do dinheiro, era isto.

No dia 31 de Agosto, o que é que temos?

- O Melgarejo e o Luisinho a defesa-esquerdo;

- O Jardel e o Miguel Vítor, a jogar na equipa B;

- O Salvio (que pode valer a pena, por 11 milhões, se as coisas correrem bem) mas também o Ola John, o Enzo Pérez, o Rodrigo, o Nolito, o Bruno César e o Gaitán;

- O Carlos Martins (com quem, diga-se, conjuntamente com o Ruben Amorim, o Benfica provavelmente não teria perdido com a Académica ou com o Vitória de Guimarães no ano passado);

- Com o Gaitán e com o Cardozo e sem o Javi Garcia.

Não há volta a dar em relação à saída do Javi. É tão mau como parece. Se eu tivesse de escolher um jogador para não vender dos 60 que o Benfica tem escolheria o Javi, por tudo aquilo que já se disse neste blog. Nesta equipa, o javi era a injecção de carácter, agressividade, espírito competitivo, presença física, altruísmo e colectivismo que, em conjunto, pura e simplesmente, mais ninguém tem. Javi não era apenas o «pilar táctico» do onze do Jesus: foi o pilar de um projecto que antecedeu até a chegada do próprio Jesus, e sobre o qual se construíu o relativo sucesso dos últimos três anos. Javi é o que corre pelos outros, o que bate pelos outros, o que aparece onde os outros não querem estar e o que põe o cotovelo onde ele tem de ser posto. Nenhum jogador do actual plantel do Benfica está disposto a atravessar-se tanto em nome da equipa como Javi. A saída de Javi, para mim, pessoalmente, representa uma espécie de consumação do divórcio que eu tinha vindo a sentir em relação a este Benfica, porque Javi era o único jogador à Benfica (à «meu» Benfica) que eu via nesta equipa.

Devo dizer que, podendo parecer contraditório, nunca gostei do papel de Javi no Benfica do Jesus. Não acredito em acções isoladas nem em homens providenciais. Nunca gostei da filosofia «dez artistas a inventar e um mártir para dar o corpo às balas», sobretudo quando o que dá o corpo às balas é melhor que os artistas. Mas é o sistema do Jesus, e nesse sistema o Javi tinha um papel incontornável. O Benfica não é uma equipa colectiva, simplesmente tem alguns jogadores a trabalhar para o colectivo, que mantêm aquilo colado, e o Javi era o principal.

Matic ataca melhor que Javi mas não tem metade do carácter nem defende tão bem. A saída de Javi, sem a substituição por um jogador de características idênticas (e em conjunto com o enorme investimento em jogadores «técnicos»), representa uma alteração substancial no modelo de jogo do Benfica e torna-o exclusivamente ofensivo e totalmente dependente do desempenho técnico – dependente de jogadores tão inconsistentes, note-se, como Salvio, Enzo Pérez, Ola John, Gaitán, Carlos Martins, Aimar, Bruno César, Nolito ou Cardozo, já para não falar do próprio Matic.

E representa, quanto a mim, o lançar da toalha em termos desportivos, em benefício da aparente prioridade para esta época: manter a cabeça fora de água em termos financeiros, passar pela tempestade, fazer força para que os outros naufraguem e chegar ao lado de lá em condições navegáveis.

Tudo bem. Faz sentido. Aceita-se. Mas, nesse caso, onde é que entra o Ola John por 8 milhões, e o Lima por 4 milhões, e o Cardozo não vendido por 14 milhões aos 29 anos?

A minha amargura em relação a este defeso é esta, que aqui ficou escrita.

Mas, voltando à parte da casa e do telhado, qual é o meu medo?

O meu medo, ao ver os sucessivos investimentos nos «20 por cento», por vezes indo manifestamente contra o que é do senso-comum, é que se esteja a perder novamente o norte. Sim, é evidente que não se pode gastar 25 milhões de euros em avançados quando se ganha 20 milhões a vender o único médio-defensivo que se tem em 23 jogadores e quando não se tem nem um defesa-esquerdo nem um central suplente em condições. É claro que isto não faz sentido.

O Jesus é um homem dos 20 por cento. É bom para chegar a um sítio onde os 80 por cento estão construídos e ele (que não vale 20 por cento, claro, mas vale 4 ou 5, o que geralmente chega) faz a diferença. Há 3 anos Benfica não tinha os 80 por cento em ordem – ao contrário do Porto, por exemplo, que é o típico clube dos 80 por cento – mas pode dizer-se que ia a caminho, à custa de muito levar nas orelhas. Com Vieira, passou a ganhar-se quando se podia ganhar, a comprar quem se podia comprar, a apostar no razoável como base do sucesso. A certo ponto, quando se sente segurança na estrutura, faz sentido que se invista mais nos outros 20 por cento. Aliás, não faz sentido se não for assim, porque se não se apostar não se ganha.

O meu medo é que o directório Vieira-Jesus entre numa espiral de desmando, de insensatez, que leve a que, mais do que perder uma ou duas épocas à conta de caprichos, de tentativas, de pura subjectividade, se esteja a perder uma década, ou duas, outra vez, para não se ganhar nada de substantivo. Mas o ponto em que Jesus entrou no Benfica ainda não era um ponto estável, e não podemos esquecer-nos disso. O Benfica não tinha – nem tem – alicerces sólidos. Falta-lhe cultura de trabalho, de equipa, falta-lhe solidez financeira, falta-lhe alternativas de gestão, e não se pode dar ao luxo (nem nada que se pareça) de entregar a sua gestão às ideias e aos truques de um tipo esperto mas básico, com garra mas sem visão, como é Jesus.

Ao apostar tanto em detalhes, em pormenores – e sobretudo ao apostar tanto num homem que não vale, nem de longe, tanto como ele (Jesus) pensa que vale – em prejuízo do que é básico, e ao fazer dessa aposta uma coisa sistemática e não apenas pontual, Vieira pode estar a destruir, em quatro anos, o trabalho de reerguimento do clube, que lhe levou 10. Pior do que destruir a parte boa do seu trabalho, pode estar a destruir mais 20 anos na história do clube – os que passaram e os que aí vêm.

De repente, as próximas eleições, que deveriam ser um mero acto burocrático, podem passar a ser relevantes.