terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Autópsia de uma derrota

Primeiro ponto: Witsel.

Não acredito que Jesus se tenha deixado levar pela treta do «temos 15 jogadores com o mesmo valor» que costuma atirar aos pacóvios, nem sequer concebo que ele pense assim. Seria demasiado básico, até para ele. O Benfica tem três ou quatro jogadores que fazem a diferença, e Witsel é um deles. É para jogar jogos como o de Guimarães que Witsel está no Benfica. Não é, de certeza, para ganhar ao Setúbal em casa. Para isso chega o David Simão.

Não sou dos que querem que o treinador faça sempre as escolhas óbvias. Por alguma razão o treinador é o treinador, e treinador que se preze tenta criar soluções em vez de aceitar fatalidades. Aceito que o Jesus se tenha convencido que, para aquele jogo, havia uma estratégia apropriada para vencer o Vitória, e que tenha escolhido a equipa de acordo com isso, mas afirmo já, sem a conhecer, que essa estratégia era uma porcaria, porque qualquer estratégia que envolva jogar sem o melhor jogador é um erro. É pura invenção, pura auto-sugestão.

Prefiro pensar – e até acredito muito mais nisso – que Witsel tenha acusado o desgaste pela acumulação de jogos. É um jogador que corre muito, tem estado sempre em actividade, possivelmente não teria mais de meio jogo de alto nível para dar e Jesus preferiu guardar esse meio jogo para o fim em vez de para o princípio. Tudo o que não seja isto é apenas o Jesus a querer ficar na fotografia. É a natureza do animal.

Mas também digo que, quando eu dizia que o Javi era insubstituível, era porque, sem o Javi, não havia a mínima hipótese de poupar alguém a meio-campo no jogo com o Zenit. O Benfica tem quatro médios centrais (Javi, Matic, Aimar e Witsel) para jogarem três. Falta um médio-centro no Benfica se, como faz Jesus, Bruno César adquire a rotina colectiva de jogar nas alas. Lesionando-se um acaba-se a possibilidade de rotatividade eficaz no meio-campo. Se Witsel ou Aimar se lesionarem o problema é o mesmo. É essa a falta que faz um polivalente como Ruben Amorim. Não é o Ruben Amorim que vai decidir um jogo sozinho, mas os minutos de Ruben Amorim na Rússia teriam sido preciosos e talvez tivessem valido pontos em Guimarães.



Segundo ponto: quem pensou que o Benfica ia chegar ao fim do campeonato sem perder sofre de uma doença comum entre os benfiquistas: irrealismo. Para que fiquemos entendidos, o que aconteceu ao Porto no ano passado acontece, literalmente, uma vez a cada 35 anos, seja com um campeonato de 12, 16, 18 ou 38 equipas.



Este jogo era um desastre anunciado para a equipa do Benfica. A única coisa que podia levar a pensar que o Benfica venceria em Guimarães era a (nossa) boa vontade.

Enumeremos apenas alguns factores:

- adversário e campo;

- ausência de Javi García;

- jogo altamente desgastante da Champions, na Rússia, na 4.ª feira;

- série de vitórias consecutivas, ausência de derrotas no campeonato e resultados muito acima da normalidade, contra as probabilidades naturais mesmo nos melhores percursos das equipas campeãs (a aproximação do final do campeonato só aumenta a força da gravidade),

a que se juntaram, já na partida:

- o péssimo relvado, favorecendo quem tinha de destruir;

- a diferença na eficácia nas situações de golo;

- o momento do golo do Vitória, já com meia-hora de jogo gasta, colocando-se numa situação de vantagem que era a última coisa de que uma equipa animicamente desgastada precisava.

Na prática, considerando que tinha acabado o período em que ainda poderia ter maior frescura física a perder por 1-0, e dado tudo isto, o Benfica vinha para a segunda parte com cerca de 5 por cento de hipóteses reais de ganhar o jogo. Um empate era, nesse momento, já um óptimo resultado.



Não havia um único argumento lógico que levasse a pensar que o Benfica não perderia pontos em Guimarães e, no fundo, este era o jogo que todos os benfiquistas estavam dispostos a dar de barato. Só por se aceitar, a priori, que o mais natural era perder pontos aqui, aliás, é que os efeitos da derrota, pelo que tenho visto, estão a ser tão bem assimilados. Se nos distanciarmos analiticamente, mesmo considerando que uma derrota é sempre indigesta, num cenário de conquista do título pelo Benfica a derrota de Guimarães é perfeitamente enquadrável – ao contrário, por exemplo, da derrota do Porto em Barcelos, quer pelos números, quer pelo adversário. Não é a mesma coisa ir perder por 3-1, a Barcelos, com o Gil Vicente, num jogo banal e ir perder a Guimarães, por 1-0, quatro dias depois de jogar na Rússia. Continua a haver, no percurso de um Benfica (eventualmente) campeão, um traço de normalidade que o percurso de um Porto (eventualmente) campeão já não tem. O Benfica empata em Barcelos, nas Antas e em Braga e perde em Guimarães. Nenhum destes resultados é extraordinário. O Porto empata com o Feirense em Aveiro, com o Benfica em casa, com o Olhanense fora e com o Sporting fora e perde com o Gil em Barcelos. Qualquer semelhança é pura ficção. Há dois possíveis eventos que podem, a curto prazo, roubar ao Benfica esta característica de normalidade que ainda o torna, neste momento, no principal favorito ao título:

- uma não-vitória em Coimbra, que faria o Benfica passar de «ter um mau jogo» a ter «uma quebra de forma», algo que o Porto ainda não teve, pois, sofrendo vários acidentes pontuais, ainda não teve dois maus resultados consecutivos;

- uma derrota na Luz, com o Porto, pois um campeão não perde em casa com o seu concorrente directo (a não ser que se trate do Barcelona, claro…).

Qualquer um destes dois eventos alteraria a lógica de um Benfica campeão. Ou seja, o que aconteceu em Guimarães não foi mais que a utilização da almofada de que tanto se falou, e que os benfiquistas, no fundo (incluindo a equipa e o Jesus, pelo que disse antes do jogo) já tinham debaixo do enregelado e dorido traseiro quando o jogo começou.



Tudo correu mal ao Benfica – como tudo correu mal ao Porto em Barcelos. Ressaltos, um passe com um palmo a mais ou um palmo a menos, cruzamentos ligeiramente atrasados ou adiantados, remates que batem no rabo dos defesas e voltam para trás em vez de traírem os guarda-redes, enfim, as pequenas coisas que correm bem nos dias bons e que correm mal nos dias em que têm de correr mal.

Não há nada de escandaloso nesta derrota do Benfica em Guimarães – uma equipa em boa forma, a jogar em casa e com a sorte do jogo do seu lado.

O que o Benfica não conseguiu executar em Guimarães é o que geralmente não consegue executar. Quem viu neste jogo lacunas súbitas da equipa do Benfica, lamento, mas não sabe realmente ver futebol, porque o vê ou a partir do resultado final ou a partir da camisola. E aqui incluo não só o adepto comum, como os Rui Santos ou qualquer paineleiro de verde, vermelho ou azul.

Depois do jogo e de saber o resultado, o Vítor Paneira, por exemplo, conseguiu ver coisas do arco-da-velha: o Benfica a não pressionar alto tão bem como é costume, a não conseguir trocar a bola tão bem como é costume, o Vitória a fazer o melhor jogo da época, etc, etc, etc. Treta. Treta de alto a baixo.

O Benfica não conseguiu fazer pressão alta assim como geralmente não consegue – tenta mas não consegue a não ser de vez em quando. na maior parte das vezes a equipa adversária, se conseguir meter o segundo passe, encontra o spaço para sair a jogar pelo meio. Geralmente, é suficiente para o Benfica ganhar, porque as outras equipas são fracas. Contra uma boa equipa, como o Zenit, ou num dia em que as coisas não corram tão bem, como ontem, não chega. As auto-estradas que se abriram para os contra-ataques do Vitória foram as mesmas que se abrirão, em Coimbra, para os contra-ataques da Académica, e na Luz, com o Zenit, e uma delas, eventualmente, até resultará em golo – ao contrário das do Vitória, que só marcou num ressalto de um livre.

As transposições defesa-ataque do Benfica em ataque organizado, com o Vitória a defender com onze atrás da bola e a meter pressão nas linhas de passe dos centrais para os médios, correram tão bem ou tão mal como correm sempre que uma equipa consegue fazer o que o Vitória fez. Várias equipas, na Luz, perante a mesma situação de inferioridade técnica, e adoptando a mesma estratégia defensiva, já conseguiram fazer o mesmo, mas não tiveram a sorte do jogo suficiente para evitar o golo ou conseguir uma vantagem, como o Vitória teve ontem, numa situação suficientemente proveitosa.

O Benfica jogou, com o Vitória, em termos técnico-tácticos (volta Gabriel Alves, que estás perdoado...), tão bem ou tão mal como na maior parte dos outros jogos desta época. Obviamente que a disponibilidade física e mental não terá sido a mesma de quando não se faz uma viagem de ida e volta à Rússia com um jogo sobre cimento a 15 graus negativos, mas o Aimar não fez nada que não tivesse feito contra o Setúbal ou contra o Sporting, nem o Emerson fez pior que na Rússia (pelo contrário), nem o Cardozo (com a diferença óbvia de ser diferente ter cinco ocasiões num jogo e marcar uma e ter duas e não marcar nenhuma, mas isso já eu disse há muito tempo que é a questão real do Cardozo «que não perdoa»...)

Ao contrário do que se disse, o Guimarães não fez nenhum jogo fantástico, pelo contrário. Teve um jogo a seu favor, permitindo-lhe fazer o que faz melhor: meter muitos atrás e pôr os da frente a correr muito. Não teve mérito por aí além a impedir o Benfica de ter a bola, de chegar à área ou de se aproximar da baliza. Os números do jogo traduzem essa realidade. O Benfica teve a posse de bola suficiente, o domínio do meio-campo suficiente e as oportunidades suficientes. Foi o Benfica quem falhou a concretizar a vitória, não o Guimarães que acertou.

Talvez haja uma maneira de desmistificar a derrota de ontem: há alguém que possa dizer que, em Braga, onde alcançou um empate normal a 1 golo, o Benfica tenha jogado pior do que em Guimarães? É que nem pensar. Mesmo. Nem pensar. Digo mais: o Benfica jogou melhor ontem, em termos de processos, que em Braga. Só que em Braga estava mais fresco.

E quem fala no Braga fala nas Antas, em Vila da Feira e na esmagadora maioria dos campos em que já jogou este ano.



Muitas vezes esta época o Benfica já passou por entre os pingos da chuva (volto a utilizar esta expressão porque os jogos como o de ontem exemplificam bem o que quero dizer) graças à sua capacidade de marcar golos. Ontem, ao fim de 37 jogos seguidos a marcar pelo menos um golo, o Benfica expôs-se à sua própria vulnerabilidade. E choveu.

Já defendi aqui que os ataques ganham jogos e que as defesas ganham campeonatos. Reafirmo essa máxima, mas não sejamos fundamentalistas: perder por 1-0 em Guimarães não é um bom exemplo. Sofrer quatro ou cinco golos entre este jogo e os dois que se seguem, sim, seria – porque, provavelmente, isso equivaleria mesmo à perda do campeonato.

E se defendermos que manter o Vitória a zero e sacar pelo menos o pontinho do empate seria um passo importante em conquistar o título também teríamos, pelo outro lado, de presumir que uma equipa com um ataque anémico não teria conseguido marcar dois golos nas Antas, ou pelo menos um golo em todos os outros jogos do campeonato, com os vários pontos que essa facildade concretizadora já valeu.

A máxima aplicar-se-á se, marcando o ataque golos nos próximos jogos, a defesa não conseguir cumprir os serviços mínimos. A defesa (ainda) não falhou. Se falhar, por melhor que seja o ataque, o Benfica perderá o campeonato.

O que falhou foi o ataque. E isso, para este Benfica, é o menos problemático, pois acontece uma ou duas vezes por ano.



Não há, em nada disto, a tentativa de minimizar a derrota, mas de a relativizar sim. Mais do que o Guimarães, foi a situação que venceu o Benfica, ontem à noite. Uma situação para a qual o Benfica não estava estruturalmente preparado – e todos, benfiquistas ou não, facilmente concordarão neste ponto.

Se adeptos, técnicos e jogadores se convencerem de que perderam ontem porque fizeram mal o que noutras ocasiões fizeram bem, estarão enganados e a perder uma excelente oportunidade para evoluir. Se perceberem que fizeram o mesmo que fizeram noutras ocasiões, e que é isso que não é suficiente, que é preciso melhorar nas rotinas, na abordagem ao jogo e na preparação mental, então estarão certos e poderão tornar-se melhores.

Conclusões da autópsia: o defunto não está morto.

9 comentários:

  1. Aqueles que criticam o JJ são pretenciosos pois pretendem saber tanto sobre a condição física do Witsel como ele. O que é impossível. Por isso concordo com a opinião do Hugo. Ninguém sabe a condição em que o Witsel se encontrava, mas o que eu vi na 2ª parte, quando o Guimarães já estava nas lonas, foi que o Witsel nunca aguentava um jogo inteiro. O problema de jogar-se com −15º não é tanto o jogo em si, mas mais o tempo de recuperação depois de um jogo tão exigente. Deviam ter tido 7 dias.

    Nunca vi o Benfica, e o Aimar, tão apáticos com ontem. Não acertaram um passe, um centro, um canto, um livre. Foi patético! Foi mais o Benfica que perdeu o jogo do que o Guimarães que o ganhou.

    Reparem na condição física do CSKA hoje com o RM. Estes tiveram que jogar no máximo da sua condição para conseguirem marcar (graças a um falhanço) e no fim deixaram-se empatar. Apesar do RM ter uma condição física invejável, e técnica muito superior, no fim era o CSKA que estava por cima, mas em Madrid serão goleados. Não é por nada, mas estou muito curioso para ver como o RM e o Cristiano se portam no próximo jogo em Espanha.

    Reparem nas declarações dos Zenit que no Algarve continuam a apostar na preparação física. Eles pensam, bem, que para passar o Benfica é apostar numa superior preparação física. Que o Benfica quando chegar ao jogo já esteja cansado com o jogo do Porto. Jogam com as armas que têm. Eu faria o mesmo. E estão mesmo apostados em passar. A minha esperança é que nesse dia esteja uma vaga de calor, 25º. Aí eles amolecerão.

    Outra coisa. Já repararam que neste momento o Braga está a ser "puxado" para cima? Está a acontecer exactamente a mesma coisa que há 2 anos. "Déjà vu all over again"! Parece que têm o Braga de prevenção para impedirem o Benfica de ganhar o 33º. Como estão a ver que o Porto não consegue aguentar a pedalada do Benfica, devido a circunstâncias varias já escalpelizadas, lançam na peleja um novo jocker, não se importando com isso de ficar outra vez em 3º. São tão previsíveis... As estatísticas estão a dar-lhes a volta à cabeça.

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    1. Quanto ao calor, por isso é que eles estão a treinar no Algarve...

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    2. É verdade, mas pelo que li ficam apenas uma semana.

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  2. Concordo em relacao ao primeiro ponto, excepto aqui:

    "Prefiro pensar – e até acredito muito mais nisso – que Witsel tenha acusado o desgaste pela acumulação de jogos. É um jogador que corre muito, tem estado sempre em actividade, possivelmente não teria mais de meio jogo de alto nível para dar e Jesus preferiu guardar esse meio jogo para o fim em vez de para o princípio. Tudo o que não seja isto é apenas o Jesus a querer ficar na fotografia."

    A ser esse o caso:

    - O meio jogo, obviamente, tera de ser a primeira parte. Qualquer outra estrategia, como dizes, 'e pura invencao. Estrategias que fazem lembrar uma tactica de 4-1-1-4, ou la' o que foi aquilo...

    - Qualquer coisa 'e preferivel a jogar com o meio-campo com que JJ jogou. Tudo! Ate um Witsel literalmente com a lingua de fora.

    O resto do post nao li. Tenho a certeza que concordaria com quase tudo, mas 'e claramente secundario - isto nao quer dizer que com Witsel ganhassemos, mas sem Witsel so por puro acaso venceriamos.

    Ontem disse algo do genero (penso que ao intervalo): se eu fosse treinador do Benfica e quisesse mesmo muito que o Benfica perdesse pontos, poria so Matic e Aimar no meio-campo e deixaria Witsel no banco.

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  3. De facto, uma análise a frio, permite ultrapassar as questões levantadas por essa blogosfera fora relativamente ao meio campo de ontem. Perdemos 1-0 basicamente porque criámos menos do que o costume e, daquilo que criámos, não fomos capazes de aproveitar nada. Concordo, por isso, com a tua análise. Assim a equipa esteja capaz de ultrapassar e ganhar em Coimbra. Se não o fizer, será mau, mas não vejo qualquer razão para não ser capaz de o fazer.

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  4. LoLmanuel essa do "joker"... Tu antes de dormir confirmas sempre se o Pinto da Costa nao esta no teu armario ou debaixo da cama?

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  5. Nuno

    Se conhecesses o Manuel como eu conheço, ias "lolar" para outro lado e evitavas dizer asneiras e armar-te em engraçadinho, aliás, sem graça nenhuma.

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  6. Quando fazes a comparação entre o jogo de Braga e o de guimarães, tens que corrigir para: "o Benfica tenha jogado melhor(...)"

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  7. Certíssimo. Para que não fiquem dúvidas, o que eu digo é que em Guimarães o Benfica não jogou pior do que em Braga, em termos daquilo que sabe fazer como equipa. Simplesmente tinha mais energia e jogou mais concentrado, por razões que ficam óbvias no texto.

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