domingo, 25 de dezembro de 2011

O Jorge

Ontem escrevi sobre o que pode fazer do Jesus um bom treinador para o Benfica. Hoje vou escrever sobre o que pode prejudicar o Jesus.


O que vou escrever hoje pode parecer incoerente com o que escrevi ontem. Mas é porque, no fundo, é a parte má daquilo que faz a parte boa do Jesus. Nem tudo é completamente preto, nem tudo é completamente branco. Uma moeda tem sempre duas faces e não deixa de ser uma moeda por causa disso.

Há médicos que fumam e morrem de cancro nos pulmões. Há verdadeiros génios que sofrem de alcoolismo (que é uma doença) e que se autodestroem. Uma pessoa inteligente não está a salvo de fazer coisas estúpidas, bem pelo contrário. Um artista vulgar não está impedido de fazer uma obra de arte eterna.

O que valoriza o Jorge Jesus, como qualquer pessoa, é a capacidade de fazer as suas características penderem para o positivo e não para o negativo. É ser mais Jesus que Jorge. Por exemplo, se é verdade que o Jesus tem colhões também é verdade que…



1 – …o Jorge é «o melhor condutor do mundo»

Talvez o pessoal mais novo não se lembre desta frase, mas quando se começou a fazer as campanhas para prevenir a condução sob os efeitos do álcool havia um anúncio que dizia isto. Era um tipo completamente bezano que era «o melhor condutor do mundo» e que se espetava na segunda curva.

O Jorge embebeda-se facilmente consigo próprio.

Quando o Jorge diz que os treinadores portugueses são os melhores do mundo o que ele quer dizer, realmente, é isto: «Eu sou o melhor treinador português a seguir ao Mourinho, e mesmo ao Mourinho, se fosse preciso, com os jogadores que ele tem, enganava-o. Se os treinadores portugueses são os melhores do mundo e eu sou o melhor treinador português então eu sou o melhor treinador do mundo.»

O Jorge vai a Barcelona e vê o Cruyff a treinar porque acha que o Cruyff é o maior. Aprende, convence-se de que agora é que sabe tudo o que já está inventado e, no fim, pensa: «Anjinho do caraças. A jogar assim dava-te uma volta que até te esquecias.»

Isto, em si, não tem nada de mal. Quando se tem colhões a sério tem-se muito poucas dúvidas de si próprio, e daí a pensar-se que se é o melhor condutor do mundo é um pulinho. O problema é que entre pensar-se que se é o melhor condutor do mundo e começar-se a fazer do próprio umbigo o Poço da Morte da Feira Popular é outro pulinho.

A época passada é o exemplo claro de como o Jorge entra facilmente numa espiral egocêntrica. Não percebeu as condições especiais em que tinha ganho o título na primeira época. Não percebeu os seus próprios erros (mesmo que os tivesse percebido jamais os reconheceria em público, porque o Jorge não dá parte de fraco, mas o problema não foi esse, foi mesmo não os ter reconhecido). Pensou que era o melhor condutor do mundo porque, assim que lhe puseram um Ferrari nas mãos (um Ferrari com pneus carecas, problemas no carburador e o depósito quase vazio, entenda-se, para não haver exageros…), chegou em primeiro à meta. De repente já não só era o principal candidato ao título, mesmo perdendo quatro jogadores nucleares do onze, como podia ganhar a Champions. Correu bem…

Não tenho dúvidas de que o Jorge aprendeu uma lição, mas não nos enganemos: o Jorge é um veterano de guerra, acha que ninguém tem nada para lhe ensinar, que ele é que tem para aprender e é quando e como quer, e não é fácil (para não dizer que é impossível) para uma pessoa com estas características mudar a sua forma de ser e de estar. Aprender, ele até aprendeu, mas não mudou. Sabe mais um bocadinho, mas no fundo é a mesma pessoa, e vai continuar a cometer os mesmos erros – não aquele especificamente, porque é esperto, mas os mesmos, se me faço entender.

Esta época a coisa começou mais sóbria, mas já se percebeu que o melhor condutor do mundo vem a caminho, juntamente com a sua equipa «quase perfeita». No ano passado foi apanhado na curva pelo Adjunto. Este ano, se não houver quem lhe atire um balde de água fria sobre a bela cabeleira, ou se não levar um beliscão do Zenit, por exemplo, nada nos diz que o Adjunto do Adjunto não o volte a enganar.

Aqueles pequenos momentos das conferências de imprensa em que o Jorge faz o sorriso de pato-bravo e diz qualquer coisa do género «eles pensavam que me vinham aqui enganar naquela situação mas eu já estava à espera e enganei-os» são reveladores. Na maior parte das vezes toda a gente sabia o mesmo que o Jorge, mas o Jorge pensa que ele é que descobriu a pólvora. E depois age como tal.

Como quando diz: «É um jogador que eu já conheço desde os infantis, e tal…» O Jorge conhece os jogadores como à palma das suas mãos, mas às vezes (e mesmo considerando que nunca se sabe bem se um jogador se vai adaptar ao clube ou não) mete com cada argolada que até dói, sobretudo ao tesoureiro.

Refira-se que não me impressiona como o Jorge fala (até é bem benfiquista…), só tenho algum medo de como o Jorge pensa.



2 – O Jorge é cá da terra

Quem fez o Jorge, como treinador, foi este Vietname que é o futebol português, e ainda está por se saber se o Jorge algum dia conseguirá ganhar alguma batalha fora da selva.

Ontem escrevi que o Jesus pensa em grande, mas isso é no sentido de ele acreditar que não há Golias que lhe ganhe. O Jorge, até ver, é um bom David, é verdade, mas não sabemos se algum dia conseguirá ser mais do que isso.

Digo isto porque o Jorge é esperto, mas não me parece especialmente inteligente. É um tipo óptimo para a guerrilha, para a milícia, mas é altamente duvidoso que consiga passar a general numa guerra maior. Falta-lhe mundo mas, sobretudo, falta-lhe capacidade de perspectiva. Visão de longo alcance. O Jorge é bom para ganhar aqui e agora, como eu escrevi ontem, mas como é que a coisa corre se não o conseguir?

O estilo que o Jorge adopta em Portugal é o mesmo do Mourinho, e o mesmo do Villas-Boas: atrevidos, com bocas foleiras, pernas à cobói, pastilha elástica de boca aberta, conversas de saloon. É o estilo messias-marialva que o pagode tanto admira e que pensa que é a única forma de se ser treinador de futebol, uma espécie de Rei do Gado, de chicote na mão, tipo Cajuda, Manuel José, Jaime Pacheco, e outros artistas da mesma cepa que, no fundo, só conseguem treinar em países de terceiro mundo porque assim que vão parar a um ambiente mais sofisticado – basta chegar a um Ossassuna ou a um Maiorca – têm de amochar e perdem a aura que lhes dão por cá.

 Mas, quando saíram de Portugal, Mourinho e Villas-Boas, que são inteligentes, adaptaram-se. Mudaram o chip. Um com melhores resultados do que o outro, é certo, mas dentro do mesmo tom. Teria Jesus a inteligência suficiente para se adaptar a um futebol e a uma realidade completamente diferente da que conhece há trinta anos?

Por exemplo: em Portugal (no Benfica e em qualquer outro clube) o Jorge é dez vezes melhor treinador que o Koeman, por várias razões que têm mais a ver com o país que com o treinador em si. Mas, na Europa, se considerássemos que ambos tinham a mesma idade, a quem é que daríamos a hipótese de chegar mais longe? Qual é o que tem as características e o estilo mais compatível com o futebol de elite, que se joga pelos futebolistas de elite, na Inglaterra, Alemanha, Espanha? Como diria o outro, «n’um sei não»…

É possível ser-se um grande treinador se não se conseguir ir além do horizonte curto? Saber como ganhar agora é bom, é óptimo - mas é curto. E depois acaba. E quando acaba o que é que sobra?

No fundo, a questão que se coloca é esta: o que é que o Benfica quer ser?

O Benfica quer ser o maior clube português? Nesse caso não precisa de mais que do Jesus, pelo menos para já. Se lhe der as armas, e se não lhe entregar os mapas todos para a mão, só alguns, e não o obrigar a pensar muito, o Jesus ganha a guerra.

O Benfica quer ser um clube de elite? Se for assim, será possível estar entre a elite – e não apenas aparecer lá uma vez por década – com um treinador de trazer por casa?

O Jesus tem dificuldade, no início de cada época, em ver para lá de Dezembro. Como é que conseguiria ver para lá dos Pirinéus sem perder o oxigénio?

O Jorge gasta as pedras todas com o primeiro Golias que lhe aparece à frente, e manda-o abaixo. Depois, quando lhe aparece o irmão do Golias, atira-lhe com a funda e fica a olhar para ele, sem saber o que fazer, à espera de ser esmagado, ou à procura de um buraco onde se enfiar.



3 – O Jorge não sabe treinar. (iôô…)

Pois. Choque e espanto. O Jorge não sabe treinar.

Deixei a bomboca para o fim.

Nunca vi um treino do Jorge. Vi do Trapattoni, do Heynckes, do Eriksson, do Toni, de muita gente, porque gosto de ver treinos, mas ir ao Seixal ver um treino, sinceramente, é coisa que não me passa pela cabeça, e quando não é lá também não tenho tempo. Mas não preciso de ver nenhum treino do Jesus para saber que os treinos dele não são tão bons com ele pensa que são.

A vantagem de se ter um treinador numa equipa durante dois anos e meio a caminho de três, praticamente com todos os mesmos jogadores nucleares, é que podemos ter a certeza de que o que a equipa mostra em campo é a materialização do trabalho feito ao longo dos meses – não é uma coisa aleatória, não depende da forma, é o resultado de um método de trabalho.

E o que eu vejo na equipa do Benfica é um trabalho muito saturado numa única vertente – a táctica – e sem resultados nas outras – na parte técnica, física e de jogo colectivo ofensivo.

Vamos por partes:

- o Jorge dá uma importância extrema à componente táctica do jogo. É a parte que ele acredita que decide os jogos equilibrados e é a parte que ele, como treinador, pensa que consegue controlar melhor. Quando um treinador não confia por aí além nos jogadores – e o Jesus confia pouco nos jogadores – defende-se com a táctica, para lhes reduzir a margem de erro.

O Benfica não é uma equipa fraca, tacticamente, mas a questão não é essa. A questão é que, para a importância que o treinador dá à táctica, tinha de ser muito melhor. Ao fim de dois anos e meio de trabalho táctico aturado o Benfica teria de estar muito mais evoluído do que o que está. Continua a ser uma equipa muito vulnerável ao erro, cujo sucesso depende muito mais da qualidade inata dos jogadores e da sua evolução particular e natural do que de aprenderem algo que não aprenderiam por si próprios. Quem fala tanto em táctica teria de ter uma equipa com uma cultura táctica muito superior à que tem. E já não falo de questões mais específicas, como a do claro subaproveitamento do Witsel, que é, potencialmente, o melhor jogador do Benfica, e que, quando sobe no terreno, metade das vezes acaba preso na linha lateral a dar o rabo, salvo seja, a dois defesas e a tentar sacar uma falta. (O Witsel é de tal forma superior, fisicamente e tecnicamente, à maior parte dos jogadores de meio-campo que é confrangedor vê-lo a passar um jogo inteiro a fazer o papel de tampão e a passar a bola para o lado, e garantoque até ao fim da época não vai fazer mais do que isso, porque «tacticamente» seria arriscado.)

Tacticamente o Benfica faz as mesmas coisas hoje que as que fazia ao fim de dois meses com o Jesus, apenas interpretado por jogadores diferentes. Não é uma equipa tacticamente pobre, repito, mas está estagnada.

- tecnicamente, os erros que os jogadores cometem são, igualmente, os mesmos. E não falo só de pontapés na bola. Os pontapés na bola dependem mais da condição física que de outra coisa, e quando não se sabe também não é aos 20 anos que se aprende – aos 20 anos o que cresce é o corpo, e daí tornar-se mais fácil, por se ter mais força, fazer coisas difíceis com uma bola que é pesada, em velocidade e com oposição.

Falo dos fundamentos técnicos de movimentação, de marcação, de fazer a superioridade numérica, de ir à linha para centrar, de saber fazer o dois-contra-um, de jogar a dois toques (receber/passar), de saber quando jogar a um toque, de meter a bola num jogador e não no outro, enfim, do bê-á-bá do futebol.

Tenho a certeza de que o Jorge ou não treina o suficiente, porque não quer, ou não sabe como treinar convenientemente a componente técnica do jogo.

Os grandes treinadores são os treinadores que sabem continuar a ensinar os fundamentos do jogo a jogadores altamente profissionais. Acreditem que quanto mais alto se sobe na qualidade e na exigência das equipas mais atenção os treinadores dão aos detalhes, porque o que faz a diferença nos grandes jogos, nas finais, são os fundamentos. O Barcelona anda há dois anos a massacrar o real Madrid do Mourinho porque sabe fazer diagonais. Na NBA, o Phil Jackson, o treinador com mais vitórias na história, continuava a ensinar o passe-e-corte ao Kobe Bryant quando ele se esquecia mesmo já depois de, em conjunto, ganharem 14 campeonatos. O Kareem Abdul-Jabbar, o melhor poste de sempre, foi contratado só para ensinar um poste promissor, o Andrew Binum, a mexer os pés e a posicionar-se em relação ao cesto e ao adversário. São só alguns exemplos.

Tenho a certeza de que a maior parte do tempo que o Guardiola passa a falar é a relembrar aos seus jogadores os fundamentos do jogo colectivo (bem gostava de ver um treino do Guardiola…) e a reduzir o uso das suas grandes capacidades técnicas às coisas simples que fazem o colectivo funcionar. Oiçam o Cruyff a falar e vejam bem se ele não reduz sempre as grandes questões do jogo às coisas fundamentais.

Com o Jorge, e a propósito da nota artística, tenho sempre a sensação de que ele passa a vida a tentar ensinar como fazer piruetas a jogadores que ainda não aprenderam a patinar. No Benfica os jogadores fazem quase tudo no tempo errado, ou de forma errada, e depois, colectivamente, a equipa ressente-se.

Isso também tem reflexos em termos físicos. O Benfica não se ressente fisicamente por correr muito, mas por falhar demais. Gasta demasiadas energias a cometer erros e a tentar corrigir esses erros. É um dado curioso, que não é muito conhecido: gastamos mais energia quando falhamos um murro do que quando acertamos um murro. Um pugilista que não consegue acertar no adversário arrisca-se seriamente a perder, mesmo perante um adversário inferior.

Não confio em treinadores que não sabem ensinar fundamentos. Servem até certo ponto, enquanto os jogadores ainda sentem que estão a aprender alguma coisa, mas depois disso não vão a lado nenhum, e são os próprios jogadores que se fartam deles e lhes perdem o respeito.

Neste ponto, os meus leitores, chocados e prontos a enfiar-me dois murros em cheio para não desperdiçarem energia, interrogam-se (e com razão): «Fo..-se., olha lá ó intelectual de vão de escada, então mas o homem é assim tão mau e já ganhou um campeonato, e dizes que ainda vai ganhar outro, e que é um treinador bom para o Benfica? Tás bêbedo ou quê?»

Mas eu explico (ou tento explicar…)

O Jorge é um especialista, um sobrevivente, e não é um mau treinador. Pelo contrário, é um treinador acima da média. As suas características, de que falei ontem, tornam-no útil num determinado contexto. O Jorge é suficientemente bom para permitir aos bons jogadores serem bons jogadores. Num clube como o Benfica, que lhe pode dar bons jogadores, com fundamentos de base relativamente desenvolvidos, é-lhe mais fácil aplicar as suas potencialidades. O Jorge consegue pegar num Di Maria subaproveitado, ou num Coentrão, ou num David Luiz, e aproveitá-los relativamente bem. O que o Jorge não consegue é ensinar a um Di Maria o que o Di Maria não sabe fazer – ou pelo menos, não consegue ensinar o suficiente. Os erros que o David Luiz e o Di Maria faziam ao fim de um mês de competição, na época do título, eram praticamente os mesmos erros que faziam sete meses depois, e em Junho, quando o Gaitán sair, cá estarei para dizer exactamente a mesma coisa em relação a ele.

O Javi Garcia, o Maxi Pereira, o Aimar, o Saviola, o Cardozo, fazem hoje o mesmo, para o mal e para o bem, que faziam em Dezembro de 2009.

Não sei ao certo se o Jorge alguma vez treinou equipas de formação, se foi adjunto ou se começou logo como treinador principal, mas desconfio que, se não começou, passou muito pouco tempo até chegar lá, à cadeira da pressão, onde desenvolveu a sua grande qualidade: a capacidade de inventar vitórias com o que tinha à frente.

Arrisco dizer que se pusessem o Jorge a treinar os juvenis do Belenenses, ao fim de seis meses ou ele se demitia ou era despedido por falta de aptidões técnicas e pedagógicas para o cargo.

O que sobra disto é a seguinte questão:

- Mas afinal o Jorge chega ou não chega?

Ao que eu respondo:

- Chegar, chega, mas depende muito do que o que os outros fazem, porque a equipa do Jorge só vai até certo ponto, e daí para a frente não é capaz. Enquanto os outros estiverem abaixo disso, chega. Se lhe passarem à frente nunca mais os vemos, porque o Jorge não tem pedalada.



Se repararem, não pequei: não disse mal de Jesus no dia de Natal. Só do Jorge. Deixo para o próximo post a questão do prazo de validade de ambos.

2 comentários:

  1. Continuação e Abraço

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  2. Pois... é díficil não concordar com os aspectos que aqui se referem. A ausência de evolução na equipa relativamente a alguns erros que persistem, a insistência em erros de casting, enfim, há um conjunto de coisas que me preocupam no Benfica, independentemente do facto de achar que não há uma alternativa para JJ neste altura.

    Não me parece que JJ seja um mestre da táctica e as fraquezas que exibe no Benfica, exibi-las-á no Porto ou noutro lado qualquer. Nesse lado, sentir-se-á, ainda mais, o melhor condutor do mundo e isso será algo a explorar.

    De qualquer modo, não sei se não estará longe a passagem pelo clube da corrupção. Esperemos que ainda ganhe muito e de forma "humilhante" para os corruptos.

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