quarta-feira, 14 de março de 2012

A Quadratura do esférico (II)

O factor Titanic



O naufrágio do Titanic pode ser lido de muitas e muito interessantes maneiras.

Que não há empresa grande demais para falhar, por exemplo. (E se pensou que o «too big to fail» tinha ficado pelo Titanic aí estão a Goldman-Sachs e a maior crise financeira de sempre a provarem o contrário…)

Ou que, se na morte somos todos iguais, mesmo num naufrágio no meio do Atlântico Norte há uns mais iguais que outros – os pobres, que eram a maioria a bordo, morreram praticamente todos e os que se safaram eram maioritariamente ricos.

Mas há uma lição especialmente útil para o nosso caso: se pusermos 3 mil pessoas num barco, em mar alto, e o barco começar a afundar, ricos e pobres transformam-se em meros seres humanos, mortais e egoístas, e o que se parecia com uma ordem social aceite por todos e regrada por comportamentos éticos consensuais rapidamente se transforma num salve-se quem puder. Instala-se o caos.



Para um clube de futebol português, descer da primeira para a segunda divisão assemelha-se perigosamente a um naufrágio de dimensões incontroláveis. Não é apenas uma questão desportiva – aliás, a questão desportiva é a menor. É uma questão de sobrevivência económica, e usar a palavra «sobrevivência» não fica fora de contexto. Quantos clubes considerados históricos e importantes no tecido futebolístico português já não se extinguiram ou passaram, na prática, à irrelevância, por descerem de divisão? Há muitos casos, fáceis de identificar, e a última ameaça (a maior de todas) é precisamente a do Belenenses, de facto o quarto maior clube português em termos históricos, que está em risco de cair para a II B e de desaparecer. Basta-lhe ter de vender o Estádio para pagar as dívidas e acaba em dez anos.

Todos os dirigentes dos clubes pequenos sabem desse potencial de extinção que enfrentam no caso de descida de divisão.



A importância económica de uma descida, já para não ir à vertente desportiva, é tal que torna o ambiente propício ao «salve-se quem puder». Num ambiente pútrido como é o do futebol português, esse «salve-se quem puder» pode assumir contornos escabrosos.

Para terem o direito de estar na I Liga – e, na maior parte das vezes, sem outro real objectivo que não esse, apenas o estar, sem ter sequer a ambição ou a possibilidade de jogar na Europa, o que também se pode revelar desastroso – os clubes que lutam para não descer (70 por cento da I Liga) e os que lutam para subir (50 por cento da II Liga) estão dispostos a tudo.

Prometem o que têm e o que não têm, não pagam salários para pagarem prémios de jogo ou para não pagarem de todo, endividam-se, vendem tudo o que podem e enveredam por todo o tipo de comportamento anti-ético, desde o mero anti-jogo, em campo, à pura e dura corrupção, fora dele.

Não tenho dúvida absolutamente nenhuma de que, se o fruto proibido do sistema de corrupção e tráfico de influências encabeçado pelo Porto e Boavista nos anos 90 e 2000 era o título nacional, a seiva que o mantinha viçoso era a luta pela permanência ou pela subida à I Divisão. Os pequenos clubes alimentaram esse sistema, e entranharam-se nele de tal forma que, a certo ponto, ninguém ganhava nada em sair e aceitava as suas regras como única forma de alcançar objectivos desportivos. No livro do Marinho Neves, por exemplo, fica bem explícita a peregrinação que os dirigentes dos pequenos clubes tinham de fazer ao clube nocturno do Reinaldo Teles para pedirem batatinhas ou para tratarem das suas negociatas.

A inexistência de descidas e subidas não implicaria, directamente, o fim da corrupção – em todos os jogos há quem prefira fazer batota, seja o que for que esteja em jogo – mas seria um forte factor de desmobilização, simplesmente porque a principal motivação para subverter ilicitamente as regras desapareceria.

Estou firmemente convencido de que poucas coisas contribuiriam mais para a quase erradicação da corrupção no futebol português do que o fim (ou a reforma) do sistema de subidas e descidas de divisão. E se formos a Espanha, por exemplo, para não seguirmos por aí fora até Itália, vemos que a envolvente é precisamente igual.

Aponto a importância sobredimensionada da permanência na I Liga para a vida de um clube português como o principal factor de corrupção, da crise económica instalada e da perversão do espírito de lealdade do jogo no futebol em Portugal. Mais do que a cultura desportiva ou a exiguidade do território, que são, admissivelmente, também favoráveis ao desenvolvimento de um espírito de clandestinidade e apadrinhamentos.



E quanto maior se torna o fosso de receitas entre I e II Liga maior é o potencial do desastre.

Só neste contexto, aliás, se percebe que os clubes pequenos utilizem, primeiro, as eleições da Liga, e depois a própria continuidade do campeonato, como factores de chantagem política.

Enquanto existir o «salve-se quem puder», em Portugal, vale tudo para manter a cabeça fora de água. Sendo que tudo é tudo o que já foi inventado e tudo o que a prodigiosa criatividade lusitana ainda for capaz de inventar.



O factor Carlos Castrado



Este está ligado ao factor Titanic.



Em cerca de 80 por cento dos jogos do campeonato os jogadores jogam para não perder. E isto é dramático, para a saúde do futebol português, não tanto por os jogadores jogarem para não perder mas mais por os jogadores NÃO QUEREREM jogar para não perder. Jogam porque são industriados para isso, por tudo e todos os que o envolvem, de dirigentes a treinadores, que sabem que o único objectivo real é precisamente não descer de divisão.

Nenhum jogador joga futebol para não perder. Todos os jogadores jogam futebol para ganhar. Isso é verdade quando começam a jogar à bola na rua e continua a ser verdade quando chegam a profissionais.

Um futebolista profissional é-o, muito mais que por tentar não ser pior que os outros, porque tem uma aptidão natural para ser melhor que os outros. Qualquer pessoa que conheça o futebol sabe que os que chegam lá acima são a elite. Qualquer jogador que esteja na primeira divisão, por mais suplente que seja era, na esmagadora maioria dos casos, a estrela ou uma das estrelas das suas equipas em jovem. Era o melhor, em Ipiritanguari ou nas Caxinas.

De repente, o campeão lá da terrinha chega à I Liga portuguesa e dizem-lhe: «O importante aqui é safarmo-nos, e para isso temos é de não perder, porque não podemos descer de divisão. Quanto a ganhar, vê-se depois.» Ora, isto é uma subversão total do espírito do jogo. É a mesma coisa que dizer ao Rambo: «OK, Rambo, tu estás habituado a matar russos com esferográficas, mas aqui vamos precisar que faças um buraco, que te escondas lá dentro e que não te mexas até os russos passarem todos.»

Ora, um tipo até pode ir à tropa como os outros, mas quando começam a injectar-lhe castradores químicos nas veias o que é que o impede de acabar estendido num quarto de hotel de Nova Iorque com os tomates enfiados na boca? Um futebol em que o principal objectivo da esmagadora maioria dos clubes é arranjar esquemas para fugir à derrota até pode parecer uma coisa natural, mas é uma aberração competitiva. É suposto o campeonato português ser oficialmente um campeonato de castrados? É suposto admirarmos isso, e seguirmos isso, e termos paixão por isso? É suposto isso interessar-nos? A propósito do quê?



A ideia de que o dramatismo cénico da fuga à descida de divisão é o que torna o campeonato interessante está, para mim, como já disse, completamente errada. Porque a ideia de que «sem ser para não descer os jogadores deixam de ter motivação para jogar» também está brutalmente errada.

Dentro de um campo de futebol, como em qualquer campo desportivo, um competidor joga sempre para ganhar. Não é o medo que o move – é o desejo. Sendo que o desejo de ser admirado, de ganhar muito dinheiro, de ter muita atenção, é sempre prioritário em relação à obrigação de jogar à defesa. Um jogador livre é um jogador são. E o que faz com que os clubes grandes sejam, muitas vezes, de facto, melhores que os outros, não é os seus jogadores serem melhores – é terem a oportunidade de jogarem para ganhar e de darem largas à sua ambição natural. É a abordagem ao jogo.



Recorro novamente ao exemplo americano. Independentemente da vertente economicista que essas ligas têm, o facto de não haver descidas de divisão não rouba, de facto, competitividade à competição. Há uma cultura de competição para ganhar que, depois, alimenta o sistema e cria, por seu lado, mais cultura de competição. Evidentemente que há equipas melhores e outras mais fracas, que nem todos os jogos são competitivos (até porque são 30 equipas e jogam, no caso da NBA, por exemplo, 80 jogos em 6 meses), mas a matriz é esmagadoramente mais competitiva, e não está directamente ligada à classificação mas ao jogo em si. Claro que quem tem mais hipóteses de ganhar compete mais arduamente, e que o inverso também se aplica, mas não existe a não-competição que se supõe que existiria por não haver nada a ganhar em termos classificativos.

Os americanos não são diferentes dos portugueses, nem dos suecos, nem dos malianos. Colocado dentro de um campo, com um adversário pela frente, um competidor quer ganhar, sobretudo se estiver convencido de que sabe como o fazer.

Não haver descidas de divisão não retiraria espírito competitivo aos jogadores, simplesmente inverteria a polaridade desse espírito competitivo. Deixaríamos de ter uma competição orientada para a negatividade para passrmos a ter uma competição orientada pela positiva.

E o simples facto de os adeptos perceberem que um jogo de futebol é muito mais um caso de vida que um caso de morte seria, só por si, potencialmente determinante na alteração do estado de espírito belicoso que envolve o futebol em Portugal.

É claro que continuaria a haver rivalidades doentias em Portugal, porque somos portugueses e estamos sempre zangados uns com os outros, mas a doença seria diferente. Não seria para não ser o pior – seria para ser melhor.



(continua)

7 comentários:

  1. Grande jogatana em Londres.

    E, se ninguém se lembrar de outro, estou preparado para decretar oficialmente o Fernando Torres como o maior flop da história do futebol.

    Gostei muito do Nápoles. Em termos de possível apuramento acho que o Benfica tem mais hipóteses com o Chelsea do que teria com o Nápoles. São estilos e motivações completamente diferentes. Para o Nápoles encontrar o Benfica seria uma hipótese real de chegar às meias da Champions. Para o Chelsea, o Benfica será uma espécie de APOEL. E a diferença futebolística entre as duas equipas é de um golo, e só após prolongamento.

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    1. Concordo e não concordo com essa opinião de que o Torres é o maior flop blablabla.
      Ele de facto não está na melhor forma e está em risco de nem sequer ir à seleção (com um Soldado em grande forma), mas isso deve-se sobretudo ao fator mental e não da capacidade física e técnica que todos lhe reconhecemos. É preciso primeiro recuperá-lo mentalmente, subir-lhe os índices motivacionais de forma a que a parte mental comande a parte física da melhor forma.

      Saudações benfiquistas

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  2. Também eu gostei do Nápoles.No prolongamento encostaram o Chelsea às cordas e o Chelsea foi eficaz quando foi à baliza contrária.Quanto ao Torres não sei o que se passa.Desaprendeu?O gajo era um felino na grande área e agora...nickles.O CND nunca deixará passar esta história.Os clubes sabendo que não iam descer iria ser um regabofe de clubes a fazerem favores a outros.Era a subversão total e isto analisando dentro da nossa própria cultura.

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  3. O Fernando Torres estava a precisar de passar um mês com o Mr. Myagi, do Karate Kid, para aprendera controlar a mente.

    Hoje o Sporting vai trazer uma grande vitória moral de Manchester: 1-4 é o meu palpite.

    Imaginem só o Sá Pinto a dar ânimo, «vocês são uns campeões,são os maiores, vamos fazer história, eles só têm duas pernas e dois braços», os jogadores todos malucos, possuídos pelo esforço, dedicação e glória, prontos a mover montanhas com os dentes... e depois começa o jogo, há um canto...

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  4. Desculpa-me mas...não dá para votar no Real? Tenho cá um feeling que até nos calhava bem.É que tendo em conta o estilo de jogo da nossa equipa jogar com o Barça seria o desastre total.Os Catalãs nem precisavam de se esforçar muito para recuperar a bola pois os nossos tratam disso.Chegar as 1/2 ultrapassando APOEL ou OM não me diz nada.Prefiro algo maior.: ))

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  5. (Ainda nao mudaste isso da horas...)
    Nao é fácil mudar mentalidades. E isto vale tanto para o post como para o f. Torres. Alguem consegue imaginar o feirense a vir jogar à luz com a vitoria como objectivo?!!! Actualmente, ja nas conferências eles dizem:" o pontinho já seria bom..." isto trocado em miúdos quer dizer:" eh pah, vocês é que tem de ganhar, estão com toda a pressão. Se quiserem marcar, passem pela linha de 11 jogadores que eu vou por a frente da baliza..." quanto ao f. Torres, flop ou nao, sei que nunca chegara aos calcanhares do el nino de anfied...

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  6. BOA SPORTING!!!!! 2-0, DÁ-LHE LAGARTO!!!!!

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