domingo, 30 de outubro de 2011

A técnica e a arte

Há poucos bons treinadores de futebol. A esmagadora maioria é sofrível – geralmente vivendo à conta da carreira como jogador, outras vezes aproveitando a facilidade de seduzir as pessoas que, não tendo jogado, discernem mal entre o que é importante e o que é inútil no futebol. Um exemplo claro deste tipo de treinadores é o de Quique Flores.

Um bom treinador consegue levar uma equipa a jogar muito perto do que seria a soma do valor individual dos seus jogadores. Um Gaitán a jogar a 80 por cento mais um Cardozo a jogar a 90 por cento mais um Matic a jogar a 90 por cento e os outros todos dariam um Benfica a jogar a 90 por cento daquilo que poderia como equipa.
Tirar um rendimento próximo do máximo dos jogadores e conseguir conjugar esse conjunto de rendimentos individuais de forma a tornar a equipa competitiva – difícil de enfrentar pelos adversários – é um apanágio dos bons treinadores.

Considero o Jorge Jesus um bom treinador. Aliás, tendo em conta o momento histórico do Benfica e do futebol português – um clube obrigado a ganhar a tentar reconstruir uma identidade num ambiente desfavorável de quase hegemonia de um adversário – haveria muito poucos treinadores capazes de substituir o Jesus com melhores resultados.
Um treinador jovem, bem falante, com boa imprensa, politicamente correcto, burguês, demasiado flexível em relação aos jogadores, aos dirigentes e aos adeptos, no Benfica actual, falharia, por mais conhecimentos técnicos que tivesse. O Benfica actual requer liderança. Não tem de ser liderança de qualidade, mas tem de ser liderança forte, ainda que egocêntrica. Digo mais: além do Jesus, o único treinador do mundo (entre os possíveis, claro) que vejo com perfil para treinar o Benfica é o Manuel José – e não quero saber se tem 70, 80 ou 90 anos.

Não considero o Jesus um grande treinador porque vejo uma diferença fundamental entre um bom treinador e um grande treinador: um grande treinador é aquele que consegue fazer com que o valor da equipa, em campo, seja superior ao resultado da soma das partes.
Ser um bom treinador é uma técnica. Ser um grande treinador é uma arte.

Nem sempre um grande treinador faz este milagre da multiplicação. É preciso um ambiente propício. Mourinho não conseguiria, jamais, no Benfica o que conseguiu fazer no Porto. Capello não conseguirá fazer com a selecção inglesa o que fez no Milan, por exemplo. Duvido que Guardiola venha a conseguir fora do Barcelona o que conseguiu em Barcelona – aliás, não sei se Guardiola já fez o suficiente para ser considerado um grande treinador (só o saberemos quando virmos o que faz o Barcelona depois de ele sair).

Há quem diga que as grandes equipas fazem os grandes treinadores. Não concordo. Acho que as boas equipas fazem os bons treinadores, isso é verdade. Mas só um grande treinador transforma uma boa equipa numa grande equipa.
Não sou dos que acha que uma equipa começa e acaba na capacidade do treinador, pelo contrário, acho que uma boa equipa nem sequer precisa, necessariamente, de um bom treinador para ser boa. Mas admito que só a existência uma individualidade que leve uma equipa a comportar-se como uma unidade orgânica capaz de se superar permite que essa equipa se torne grande.

Uma grande equipa pensa em conjunto, age em conjunto, compreende os momentos de jogo e a forma dos seus companheiros o pensarem em cada um desses momentos, tem uma fluência natural que está acima da mecânica, que se situa na parte intuitiva. Podem chamar-lhe química, se quiserem. Um grande treinador é o que consegue influenciar realmente essa química, juntar os ingredientes, fazer arte com um conjunto de onze atletas altamente competitivos e egocêntricos.

O Benfica não é nem será, com Jesus, uma grande equipa. Não consegue pensar em conjunto. Continua a ter jogadores a ler momentos diferentes no jogo. Uns pensam que é para guardar, para jogar para ali, para fazer assim, outros pensam que é para atacar, para fazer assado, etc. São as pequenas coisas? Evidentemente que são. São sempre as pequenas coisas que distinguem o bom do óptimo, e na maior parte das vezes elas são tão pequenas que não encontram ninguém apto a reconhecê-las.

Com Jesus, o Benfica será sempre uma equipa dependente das circunstâncias – da possibilidade de encontrar uma equipa superior num momento mais eficaz, por exemplo, ou de um jogo traiçoeiro, como foram os do Olhanense ou do Beira-Mar.
Quanto melhores jogadores Jesus tiver, melhor será a sua equipa. É pouco provável que ele estrague a sopa. É um bom treinador e sabe tirar um bom rendimento dos jogadores. Mas que ninguém espere que algum dia o Benfica de Jesus venha a voar. Disso ele não é capaz. Se fosse já tinha tido tempo para o mostrar.

8 comentários:

  1. Hugo,

    Já vi que o jogo de ontem te deixou irritado :). Isto é uma opinião definitiva?
    A minha pergunta tem um sentido - eu tenho visto a equipa crescer enquanto tal, algo em relação ao qual já tinha perdido a esperança. Continuo a não morrer de amores pelo JJ, embora já me tenha resignado à expectativa de o ter no Benfica por muitos anos, até porque não se vislumbram alternativas por aí além. Por isso confesso que tenho a esperança de que mais crescimento seja possível.

    Por outro lado, acho que a defesa é o ponto mais débil. Emerson é menos do que vulgar, Maxi pouco mais que mediano. Entre os dois, ontem, podiam ter enterrado o jogo. Nenhuma grande equipa tem uma defesa com estes tipos (e nem desgosto do Maxi).

    Já agora, só para ter uma ideia do referencial, quando falas em grande equipa, qual é o referencial? Algum exemplo nacional ou estrangeito?

    Abraço

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  2. Não concordo, nem discordo. A definição de uma e outra está correcta, mas eu acho que toda a gente aprende até morrer, os que têm vontade e ambição para o fazer, claro está, e penso que JJ está ainda a aprender porque tem vontade disso. E a grandeza, assim como a capacidade de liderança, aprende-se, ninguém nasce com ela.

    Agora só uma pergunta, Sir Alex Ferguson é um grande treinador ou apenas um bom treinador? E desde quando ele começou a ser uma coisa ou outra?

    Abraço

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  3. Nunca consegui considerar Alex Ferguson um grande treinador de futebol. Olho para Ferguson como um bom treinador que teve a oportunidade de trabalhar durante muito tempo num clube com grandes recursos e num ambiente específico em que o treinador é naturalmente protegido. Em vinte e tal anos no United, Ferguson teve a oportunidade de contratar muitos grandes jogadores e de fazer algumas equipas muito boas, mas nunca, realmente, de facto, uma grande equipa. É a minha opinião. É, obviamente, subjectivo e discutível. Mas entre Ferguson e Jesus, no Benfica, não duvidem de que preferia Jesus. Tem menos mundo mas é mais treinador (Sacrilégio, certo?).

    O Jesus continua no processo de adaptação ao futebol de alta exigência e a um clube de dimensão europeia. À medida que se vai adaptando mais cómodo fica e mais facilmente aprende a aproveitar os jogadores. O Jesus está, «apenas» (porque não é pouco) a aproximar casa vez mais os jogadores do limite das suas potencialidades. Neste processo há uma parte importante que pertence tem de vir da própria cultura do clube. Demora anos a cultivar um verdadeiro espírito ganhador que, depois, passe para os jogadores. E não admite férias.

    O Barcelona actual é, sem dúvida, uma grande equipa, quer pela qualidade quer pela longevidade. O único caso de que me lembro de outra equipa com o mesmo impacto durante tanto tempo é o do Milan de Sacchi e Capello, nos anos 90.
    Há casos de equipas excepcionais com menor amplitude e impacto – reparem que não me refiro obrigatoriamente a títulos. Nem sempre as grandes equipas ganham, e por vezes até perdem nos jogos que não podem perder. Por exemplo, o Chelsea de Mourinho foi, na minha opinião, uma grande equipa, superior à soma dos seus talentos individuais, apesar de não ter ganho a Champions League. Assim como a sua equipa do Porto, feita de raiz por ele, e a do Inter. Ser campeão da Europa com o Wesley Snejder como MVP é um verdadeiro portento. Quem é o Wesley Snejder? O vigésimo melhor médio da Europa? Acho que Mourinho está a construir uma grande equipa do Real, apesar de o facto de coexistir com a do Barcelona lhe tolher significativamente as hipóteses de êxito.

    Lembro-me de uma equipa absolutamente sensacional na sua capacidade de extravasar, colectivamente, cada um dos seus talentos. Para alguns benfiquistas, isto que vou dizer é heresia, mas o Paris Saint-Germain de Artur Jorge, com Valdo, Ricardo, Ginola e outros era uma verdadeira máquina de jogar futebol. Penso que nunca chegou a ganhar nada fora de França, mas, em campo, era uma unidade avassaladora. Acho que Artur Jorge foi um grande treinador, queimado pelo facto de, à excepção do Porto, nunca ter encontrado um ambiente propício a fazer uma equipa dominadora da Europa – na Luz encontrou mesmo o pior ambiente possível para se ser treinador. «Um circo», disse. E com razão. (Outro sacrilégio). Artur Jorge nunca treinou um grande clube europeu, possivelmente porque a sua forma de viver (foi um líder sindical, não nos esqueçamos) não se adaptava a esse tipo de função.

    Um bom treinador é aquele que permite a uma equipa ser tão boa quanto pode. Um grande treinador é o que leva uma equipa a ser melhor do que aquilo que ela é. É a minha bitola. Esta «regra» não está, obviamente, como nenhuma outra, a salvo de excepções. E em cem de nós haverá cem opiniões.

    Bom domingo.

    P.S. – Hoje é dia do Sporting encostar.

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  4. Tenho de concordar que Ferguson se fez num ambiente muito protegido. Em Portugal não teria sobrevivido aos anos em que não ganhou nada, fosse onde fosse dos grandes.

    Acho que o Benfica está, claro, longe de ser uma grande equipa, com o sentido do Barcelona actual, desse tal Chelsea, do Milan de que falas. Precisa de crescer muito e é, sem dúvida, um processo lento.

    Como disse, JJ está a aprender e este ano até eu aprendi a não o subestimar. Afinal, não há substituto para a experiência, não maior parte das vezes. Estava a escrever isto e surgiu-me o nome de AVB na cabeça. Vou aguardar para ver se o verdadeiro AVB é o deste ano (a 9 pontos do líder) ou aquele que soube aproveitar os erros alheios e a ajuda crucial da arbitragem para criar uma almofada tão confortável que lhe permitiu gerir sem stresses uma época que acabou bem positiva, desportivamente. E AVB pôde beber de uma fonte muito boa, porque experiência é conhecimento vivido por dentro, e disso teve algum, a altíssimo nível, ainda que como adjunto.

    Por isso creio que o Benfica vai crescer como equipa, mesmo com as asneiras pontuais de JJ, embora precise de reforçar a defesa e nos desse jeito ter extremos verdadeiros. Mas vamos crescer. Se vamos chegar a ser uma dessas grandes equipas, isso pode ser mais difícil. Se JJ tiver estabilidade, talvez possamos aproximar-nos, tal como talvez possa ser pedir-lhe demais...

    Bom domingo e que se confirme o encosto lagarto.

    Abraço

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  5. P.S.: queria dizer "na maior parte" e não "não maior parte".

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  6. Hugo, não tenho a certeza que Ferguson não seja um grande treinador, segundo a tua definição. Por vezes é-o, pois consegue colocar o MU a jogar mais do que a soma das suas partes. Nem sempre o faz, mas isto é um facto. E o MU nem é o clube que mais compra e mais dinheiro gasta em contratações. Por mim, na minha opinião, andará pelo meio. Fifty-Fifty.

    O MU não tem a cultura de clube, nem a cultura de equipa - esta fruto daquela - que o Barcelona tem, mas qual é o clube que o tem?

    Também prefiro o JJ ao Ferguson, mais não seja pela idade. :-))
    Um está a descer, o outro ainda a subir. Por uma questão de cultura e de educação, eu sou daquelas pessoas que acredita que pessoas motivadas fazem milagres, conseguem subir montanhas que nem sabíamos que existiam.

    "O Jesus está, «apenas» (porque não é pouco) a aproximar casa vez mais os jogadores do limite das suas potencialidades".

    Mas não é exactamente isso que fazem todos os líderes competentes? Mas nós ainda não vimos o total das potencialidades do JJ. Ainda é muito cedo. Dá-lo no auge das suas potencialidades é um erro.

    Por isso não concordo quando dizes que, "O Benfica não é nem será, com Jesus, uma grande equipa. Não consegue pensar em conjunto".

    Aquilo que tu chamas, "pensar em conjunto", eu prefiro chamar "jogar com empatia". Mas isso também se aprende e se inculca num clube, ou numa empresa. Vejam o Barcelona. Logicamente que quando se muda constantemente de jogadores é mais difícil. A empatia consegue-se com tempo e com líderes empáticos e visionários. E a empatia também se aprende.

    "Se fosse já tinha tido tempo para o mostrar".

    Não concordo. O JJ ainda está em processo de formação. Pouco mais de 2 anos, que é o tempo que está no Benfica, é muito pouco. Dêem-lhe mais 3 ou 4 anos e penso que a equipa do Benfica irá atingir outro patamar, bem mais elevado. Vejam a diferença do ano passado para este.

    Mais, penso que o Benfica, sem grandes jogadores, quando comparados com as grandes equipa europeias, poder-se-á tornar numa grande equipa, pelos menos em relação à qualidade dos jogadores que tem. Chamem-me optimista inveterado. Mas prefiro ser isso a ser mais um advogado do diabo, ou "profeta da desgraça".

    Abraço


    PS. "Mourinho não conseguiria, jamais, no Benfica o que conseguiu fazer no Porto".
    Discordo totalmente. Nunca podemos dissociar as circunstâncias que o Apito Dourado tão bem mostrou, e toda a corrupção conhecida que é o "Sistema", que estava no seu auge, da carreira do Mourinho no Porto. Ignorar isso é ignorar a realidade e os factos. E deitará por terra toda e qualquer análise que se faça.
    Embora subjectiva a afirmação, o Porto nunca seria campeão sem as ajudas escandalosas que recebeu, a vários níveis e exteriores ao futebol, que aconteceram nesse ano.
    Mas, sim , concordo: Mourinho é um grande treinador.

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  7. Penso que o JJ tem aprendido o que demonstra inteligência.Eu gosto d'ele mas há aspectos que me levam ao desespero.Eu lembro-me de uma equipa belga chamada Malines,se não estou em erro,que apareceu apenas durante 1 ano e que ganharam todas as competições em que estavam inseridos,quer nacionais quer internacionais.Era uma máquina colectiva de jogar futebol com um grande guarda redes,chamado Michel Preud'homme. Ontem lá houve mais um contributo para a minha úlcera principalmente o Emerson,que"morte lenta" meu Deus,a única vez que subiu até junto da linha da baliza do Olhanense e cruzou,os defesas adversários andaram logo aos papeis.Precisamos urgentemente de um lateral esquerdo.O homem sobe até à linha do meio campo e faz sempre o mesmo passe ou para trás ou para o lado.Que nervos.Até começo a ter saudades do César Peixoto.

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  8. Lembro-me desse Malines. Era, de facto, uma equipa especial, que durou pouco tempo. Também lembro o Ajax do Cruyff, que não referi ainda há pouco - não incluir o Cruyff no top 3 dos melhores treinadores dos últimos 30 anos é uma ofensa ao futebol.

    Manuel, quando eu referi que no Porto Mourinho encontrou um ambiente propício não estava a esquecer a questão do sistema montado fora do campo, Aliás, uma grande parte da qualidade real que o Porto adquiriu ao longo dos anos resultou da acumulação de confiança que os jogadores sentiam por ganharem (como que por magia) sempre que era preciso ganhar. Ninguém me ouvirá nunca dizer que o Porto não é, além de uma escola de futebol, uma escola de corrupção. Quanto é que é de cada uma só o tempo (espero) dirá.

    Até amanhã

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