sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Juniores

O Sporting é o principal clube formador do futebol português. Os três melhores jogadores do futebol português dos últimos 30 anos foram formados, desde os iniciados, no Sporting – por ordem cronológica (inversa à ordem qualitativa, por sinal) Paulo Futre, Luis Figo e Cristiano Ronaldo.

Curiosamente, ou talvez não, dos três apenas Luís Figo começou e concluiu o seu processo formativo no clube. Futre foi para o Porto com 20 anos e Ronaldo para o United com 18.
O mais significativo, contudo, é que nenhum destes três jogadores se encaixa na matriz do jogador formado no Sporting. Os três têm personalidades atípicas – em boa verdade, são atípicas não só em relação ao Sporting mas também em relação ao futebol português, e até ao futebol de uma maneira geral.

Estes três jogadores foram, durante um período da sua época, os melhores do Mundo.
Sim, Futre também. Não esqueçamos que Futre (este Futre que os mais novos só conhecem da rábula do chinês e dos anúncios do Meo) só não ganhou a Bola de Ouro porque, enquanto jogava no Atlético de Madrid, conquistando nada mais que Taças do Rei, e numa selecção que não jogava fases finais de coisa nenhuma, sem máquina política e mediática atrás, Ruud Gullit jogava no Milão, com companheiros como Van Basten, Rijkaard, Baresi, Donadoni ou Maldini, onde ganhou a Taça dos Campeões Europeus, e na selecção holandesa também campeã da Europa. Em termos de qualidade pura, assumo-o: Futre estava para Gullit como Messi está para Ronaldo. Digo mais, à parte de Maradona (que acabou mais ou menos por essa altura), Paulo Futre foi, durante dois ou três anos seguidos, como Figo, o melhor jogador a actuar na Europa.

Futre, Figo e Ronaldo foram os melhores do mundo por causa das suas personalidades.

Futre era louco de extroversão, um carácter histriónico que o fazia ignorar qualquer regra de segurança. Tem de se ver Futre a atacar um defesa para se saber o que é agressividade ofensiva. Não me lembro de voltar a ver outro igual. Na relação técnica-velocidade-agressividade o jogador mais completo que já vi jogar.

Figo era um maníaco do trabalho. Talvez poucos saibam, mas, em iniciado, Figo era igual a dezenas de outros miúdos. Tinha mais jeito que os normais, mas menos que os fora-de-série. Tudo o que Figo conseguiu, do físico à finta, foi arrancado ao trabalho. Com essa confiança infinita no seu esforço tornou-se no mais perfeito médio-ofensivo dos tempos modernos. Menos talentoso que Zidane mas mais completo, mais forte, melhor tacticamente, até mais inteligente. Só o instinto natural era inferior. O facto de ser português, e não francês, inglês ou brasileiro não impediu o seu reconhecimento, mas limitou-o consideravelmente. Figo foi melhor do que o que os prémios que recebeu possam indicar. Colocar Beckham, por exemplo, no mesmo campeonato de Figo, como se colocou, só se justifica quando o futebol éentendido como 50 por cento de folclore e 50 por cento de jogo.

Ronaldo é uma espécie de up-grade de Futre depois de se incorporar a mentalidade de Figo com os benefícios do treino moderno. Fisicamente e em termos de versatilidade ninguém tem memória de um jogador assim, capaz de marcar cinquenta golos por ano a jogar a partir da linha lateral, capaz de correr mais que qualquer defesa, de ganhar uma bola de cabeça a qualquer central, de marcar livres, de fazer centros com ambos os pés de qualquer ponto do ataque, de rematar de qualquer forma, de ler o jogo e jogar mais depressa do que qualquer companheiro - e de fazer tudo isto em equipas diferentes, não nos esqueçamos. Ronaldo é uma máquina, mas começa por o ser dentro da cabeça.

O Sporting «deu» estes três jogadores ao Mundo, mas nenhum destes três jogadores representa, realmente, a formação, porque a verdade e que são três excepções num universo de dezenas de jogadores de matriz diferente.

No jogo de Copenhaga a Selecção jogou com sete jogadores formados, de facto, no Sporting: Rui Patrício, João Moutinho, Carlos Martins, Veloso, Quaresma, Nani e Ronaldo. Sete em catorze utilizados, cinco titulares em onze.
O Porto tinha dois – Bruno Alves e Postiga – e o Benfica um, João Pereira.

Vamos mais longe. Nos convocados para o último Mundial havia 5 jogadores formados no Sporting, mais do que qualquer outro clube, e não foram Moutinho e Quaresma.
No último Europeu tinha sete. No Mundial 2006 outros sete, e também não foram Moutinho e Quaresma.

Isto é um problema para Portugal por uma razão simples: o jogador à Sporting é um jogador macio. Tem sempre muita técnica (até os defesas), geralmente tem grande inteligência táctica, normalmente é disciplinado, sem se ligar muito ao físico (pode ter ou não ter, é relativamente indiferente, o que muda é o lugar onde é posto a jogar) mas, de forma geral, é macio. Convive perfeitamente bem com a derrota. Não está disposto a atravessar-se à frente de uma avalanche para não voltar a perder.

Há inúmeras evidências dessa lacuna mental ao longo da história. Podemos começar por Futre, mas se falarmos em Litos, Mário Jorge, Carlos Xavier, Morato, Fernando Mendes, Venâncio, Peixe, Quaresma, Moutinho, Varela e tantos outros encontramos dois denominadores comuns: um é a qualidade de base; o outro é o facto de só ter sido possível ver nesses jogadores um espírito competitivo acima da média quando (e não foi em todos os casos) se viram incorporados noutros ambientes, mais agressivos e mais exigentes. Mesmo assim, em nenhum desses casos estamos a falar de uma força mental que inspire, imediatamente, um sentido de liderança. Moutinho, por exemplo, é um operário incansável, mas não está, no espírito combativo, nem perto do nível de um André, Paulinho Santos, Jorge Costa, Fernando Couto, João Pinto e muitos outros.

A melhor prova desta deficiência será, contudo, a actual equipa do Sporting. Qual foi a solução encontrada pelos responsáveis para tentar aumentar o nível de competitividade da equipa até ao patamar de Benfica e, sobretudo, Porto? Basicamente, mandar às malvas a filosofia dos «jogadores da casa» e ir buscar estrangeiros. Actualmente, a formação do Sporting tem um jogador no onze: Rui Patrício – um guarda-redes que, provavelmente, não jogaria nem no Benfica nem no Porto nem em nenhuma grande equipa do Mundo. Os outros são suplentes e pouco relevantes.

Para o Sporting, este é um momento seminal. O seu futuro como clube formador está posto em causa a partir do momento em que se determina que os seus jogadores não são suficientemente competitivos para titulares da sua própria equipa sénior. O Sporting poderá passar a formar suplentes, e com isso, gradualmente, tomar o caminho de Benfica e Porto, que pura e simplesmente deixaram de se preocupar com a formação porque é mais barato ir comprar à América do Sul.

No caso do Benfica, não confio minimamente na chamada revolução do futebol de formação. Penso que estão apenas a fazer o que o Sporting já faz há vinte anos e que os resultados serão os mesmos: teremos, no Benfica, um Paulo Sousa de geração em geração, e poucos campeões genuínos. Se querem mesmo que lhes diga, penso que o único projecto racional e realmente inteligível na formação do Benfica durante os últimos vinte anos foi o de… Vale e Azevedo, que decidiu acabar com aquilo. Os outros são, pura e simplesmente, débeis, e meras repetições de modelos já usados, contra os quais o Benfica dificilmente poderá concorrer porque também dificilmente terá acesso ao talento de base.

Quanto ao Porto, tornou-se uma «escola de transição», um clube que, mais do que formar jogadores de raiz, se especializou na fase de passagem dos jogadores a patamar de alta competição. O que o Porto aprendeu a fazer muito bem foi a pegar em jovens talentos e educá-los especificamente na entrada no futebol profissional. Tem dificuldades, contudo, em Portugal, em detectar talentos, devido à grande rede de prospecção do Sporting (o maior activo do clube, na verdade, com um nome, Aurélio Pereira, que transforma dezenas de simpatias locais em milhões para os Bettencourts) e à sua exiguidade territorial relativamente ao Benfica. Dessa forma, passou a ir buscá-los ao «terceiro mundo» – onde se incluem os outros clubes portugueses à excepção de Benfica e Sporting.

A triagem principal em relação a um jogador da formação deveria ser o seu espírito competitivo. Um futebolista não joga futebol – um futebolista compete no futebol. E quem ganha é o melhor competidor, não é o melhor jogador.

3 comentários:

  1. P.S. - Kaspov, já encontraste a nave?!

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  2. Hugo,

    Este é um post deveras interessante e, não sendo um especialista em formação de futebolistas, ainda assim há vários aspectos do artigo que justificam observações.

    Em primeiro lugar, a nota interessante e curiosa sobre a macieza dos jogadores do Sporting. Não sei se foi usada no sentido físico ou mental. Se foi no físico, talvez seja verdade, mas não sei se isso não é aplicável à maioria dos jogadores. Os "raçudos" são muito poucos. Ao Bruno Alves e ao Paulinho Santos, podíamos contrapôr o Ricardo Carvalho ou, num exemplo mais recente, o Nuno André Coelho. Isto no Porto, claro.
    Se a macieza é mental, acho que o Ronaldo não cabe na definição em minha opinião.
    Em jeito de balanço, deste item em particular, não sei se posso concordar, em definitivo, com a apreciação, porque não creio que se possa estabelecer, em definitivo, que o resultado dos nomes que indicaste não tem a ver com personalidade dos jogadores mais do que com a filosofia dos clubes.

    O outro aspecto que me parece contestável é o de ser mais barato ir buscar talento a outro lado. Esta apreciação é baseada em que números? Quanto é que custa a formação do Benfica por ano? Só com números desses se pode ter uma ideia concreta da validade da asserção.

    A competitividade é, obviamente, importante, mas tem de existir em paralelo com qualidade técnica. Também pode ser trabalhada.

    Dito isto, de todos os posts que li aqui, talvez seja este aquele que me suscita mais dúvidas, porque não estou convencido que algumas das asserções em que se parece basear sejam correctas.

    Abraço

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  3. Mas o que eu digo é precisamente que, no caso do Ronaldo ou do Figo, é a personalidade deles que faz a diferença em relação ao que é normal no clube.
    Nesse aspecto parece-me que estamos a dizer a mesma coisa.

    E refiro-me, sobretudo, à macieza mental. Se bem que a parte física também não seja prioritária no Sporting. Aliás, lembro-se de ler que o Figo, na altura do Pastilhas, só não ficou no Benfica porque era franzino, e que no Sporting ficou logo. Não posso garantir que hitória não seja mito, mas essa filosofia existiu, de facto, no Benfica, durante muito tempo.

    Abraço

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