quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Benfica 3.0

A época de 2009/2010 do Benfica é mítica. No sentido literal do termo. Entrou, rapidamente, no âmbito do mito. Ou seja, a mente colectiva dos benfiquistas transformou-a em algo que, na verdade não foi, e aceitou essa nova versão como construtora da realidade, logo, como real. Factos foram criados, teses foram rapidamente aceites, heróis foram crismados. A época de 2009/2010, de facto, daria um grande livro, mas esse livro teria de ter dois apêndices: um que mostrasse que essa temporada foi, em termos de resultados, uma das dez melhores nos cem anos de história do Benfica e a melhor, de muito longe, em mais de 20 anos; e outro que falasse da época seguinte.
Porque a época de 2010/2011 é indispensável para perceber a de 2009/2010.
Em termos de resultados, uma foi muito boa, a outra paupérrima, e nem uma nem outra foram verdadeiras. O Benfica real de Jorge Jesus e Luis Filipe Vieira, no conjunto desses dois anos, encontra-se muito perto do meio termo: nem com cinco pontos de avanço sobre o Porto nem com vinte de atraso; nem na vitória por 1-0 sobre o Porto nem nos 0-5 das Antas, nem nas superexibições de 2010 (que nunca existiram, realce-se) nem nas cagadas de 2011 (cuja diferença para algumas vitórias do ano anterior foi, apenas, a sorte).

Se tomarmos a época de 2010 como um overload energético (devido, em grande parte, à prolongada acumulação de vontades que os quatro anos anteriores tinham provocado, e despoletado por um elemento rebelde – Jesus) e a de 2011 como um crash (um curto-circuito global, por assim dizer – para não utilizar a palavra apag~##), a temporada actual deverá trazer-nos a verdadeira dimensão do Benfica que começou a ser construído no ano 0, de Rui Costa e Quique Flores.

A ideia de todos os benfiquistas, ao longo quer da última época quer do Verão quer do início desta, é a de um regresso a 2009. Todos os dias as comparações surgem nos jornais, nos blogs, em todas as conversas de todos os cafés. A ideia é que é preciso voltar a ser tão bom como em 2009.
Pois bem, a premissa está errada, e a leitura da realidade também. Este Benfica não deve pretender ser tão bom como o de 2009 por uma razão simples: este Benfica é melhor, de facto, que o de 2009. Está a sê-lo (de longe) em termos de resultados e é-o enquanto equipa. O próprio Benfica, actualmente, é um clube muito mais forte do que era em 2009.

Novamente, em termos de resultados, se o balde água fria do Gil Vicente se pode assemelhar ao empate inicial de 2009 com o Marítimo, em casa, na primeira jornada, tudo o resto é muito melhor. O Benfica está à frente do campeonato já depois de ter ido empatar às Antas e de ir ganhar ao Nacional na Madeira. Já passou duas eliminatórias da Liga dos Campeões e tem meio caminho andado para os oitavos-de-final depois de empatar com o Manchester United.

Na prática, estes resultados são muito mais significativos que as goleadas que embalaram a equipa para o título em 2009, sobretudo por uma razão: enquanto que nas goleadas, como se veria depois, estávamos a assistir ao melhor que o Benfica tinha para oferecer até ao fim da época (era uma equipa plena de energia e em rotação máxima, explorando uma nova liberdade e uma nova dimensão futebolística que Jesus trouxera em relação a Quique), nas exibições actuais, mais sóbrias mas com resultados bastante bons (4-1 a esta Académica é melhor que 8-1 àquele Setúbal, por exemplo), temos a sensação nítida de estar a assistir a uma equipa ainda em processo de desenrolamento, uma equipa que será bem melhor do que aquilo que já mostrou, e que o será durante esta época.

Vamos agora comparar as duas equipas em termos qualitativos.
O estilo é o mesmo – exuberante, em raides, muitas vezes demasiado arriscado, com défice no controlo da bola e espaços defensivos em excesso, revelando demasiadas quebras de concentração mas, ao mesmo tempo, momentos de grande velocidade que rompem, com uma naturalidade invulgar, as defesas contrárias, uma equipa criativa, às vezes pura e simplesmente estúpida, outra brilhante.
A intensidade é diferente. Não é apenas ligeiramente inferior: é melhor. Própria de uma equipa mais experiente. E melhor.

Artur é melhor que Quim. Não é muito melhor mas é suficientemente melhor para não deixar dúvidas sobre quem é melhor. Quim é um guarda-redes de grande nível nacional. Artur é um guarda-redes de nível europeu.

Maxi é Maxi e Luisão é Luisão, mas dois anos melhores, o que se nota, sobretudo, em Luisão, que atingiu o seu estado de maturação perfeita.
Emerson é pior que Coentrão mas não necessariamente a defender.
Garay – choque e espanto! – é mais útil que David Luiz.

Sim, o carisma de David Luiz foi fundamental na conquista do título. Ele era alma e catalisador. Sim, David Luiz é um portento físico, e um defesa-central de nível mundial, cuja audácia o transforma num jogador de várias dimensões. Numa equipa sem passado, sem nada a perder, sem responsabilidades, uma personalidade liberal (quase libertina) como a de David Luiz caíu que nem uma luva.
Na equipa seguinte David Luiz facilmente se tornou dispensável. Já não fazia diferença, dada a alteração da dinâmica colectiva.

O lado negativo de David Luiz é menos debatido, mas eu faço as honras: era errático, muito faltoso, perdia demasiadas bolas, colocava a equipa em risco demasiadas vezes e, em muitas delas, só uma boa dose de sorte misturada com a sua impressionante capacidade física salvou o Benfica de perder.

Para defesa-central de uma grande equipa, prefiro Garay. É mais inteligente a jogar, tem uma cultura de passe (e passa muito bem), defende melhor, aposta menos na superioridade física que no posicionamento, não inventa apesar de atacar muito bem e é mais sólido. Não tem tanto potencial como David Luiz? Não sei o que é isso do potencial. Sei que o David Luiz passa metade do tempo no banco do Chelsea. O potencial é bom nas equipas pequenas. Em equipas grandes querem-se jogadores que joguem bem e que joguem agora.
«Ah, mas ele pode vir a…». «Pode vir» não existe. Num Benfica, num Chelsea, num Real, num Porto, quem não pode agora sai de cima.

Javi Garcia é melhor jogador hoje do que era há dois anos – inclusivamente aprendeu a dar porrada sem dar tanto nas vistas, o que é importante porque a porrada é uma parte fundamental do jogo. Uma equipa sem jogadores que gostem de dar porrada não tem hipótese nenhuma de ganhar absolutamente nada. Aliás, se noto alguma coisa que falte no Benfica é mais um ou dois que gostem de afiambrar.

Witsel, que é diferente de Ramires – menos rápido sobre a bola, menos sólido a defender, menos pulmão, mais versátil, mais criativo – teria grandes hipóteses de jogar na equipa de 2009.

Aimar assumiu um estatuto de líder que o torna mais fiável e já não apenas um desequilibrador técnico, mas alguém em quem a equipa se apoia táctica e mentalmente.

Di María tinha uma velocidade e uma agressividade que Gaitán não tem, esticava o jogo mais quinze metros, que Gaitán não estica, mas o Di Maria que vemos hoje no Real não é o Di Maria do Benfica. É um jogador mais adulto, tacticamente muito mais completo, mentalmente mais sólido. Gaitán passa melhor, remata melhor, marca mais e mais importantes golos, assiste, defende tão mal como Di Maria defendia, não é tão rasgador, mas, se eu tivesse de escolher entre este Gaitán e o Di Maria de há dois anos, escolheria Gaitán. É uma opinião controversa, tal como a de Garay. No fim da época faremos contas.

Cardozo está, actualmente, melhor jogador que em 2009. Aos poucos, mais do que conquistado, tem domesticado os benfiquistas. Estes já perceberam que Cardozo só vai até um certo ponto e habituaram-se a isso. Há muitos avançados no mundo melhores que Cardozo, mas Cardozo tornou-se aceitável. Continuo a dizer que uma equipa como o Benfica tem de ter um ponta-de-lança melhor que ele (ou Nuno Gomes…) se quiser ser grande na Europa, mas isso não escamoteia o progresso de Cardozo. Está mais experiente, mais calmo, mais convencido do seu valor. O Cardozo de 2009 nunca marcaria aquele golo ao United.

E chegamos ao ponto-chave: Saviola.
O ponto de crescimento da equipa actual do Benfica passa por Saviola. Continuo a dizer que Saviola é, em qualidade pura, o melhor jogador do Benfica. É o elemento que faz os golos nos grandes jogos, que sai da caixa, que pensa de forma diferente – e mais rápida. Ainda está por se saber o que conseguirá fazer o melhor Saviola actual com o melhor Gaitán. São os dois jogadores de classe extra do Benfica no ataque – Aimar é, para mim, apenas um bom médio ofensivo. Mas atenção, não confundamos as coisas: Saviola é o único jogador do Benfica actual de verdadeira classe mundial.

Há muita gente nova que nunca viu o melhor Saviola porque isso aconteceu há dez anos (ele chegou ao Barcelona muito novo). Nunca vimos o melhor Saviola no Benfica, e nunca veremos, mas o melhor Saviola era um jogador de top-10. O melhor Saviola jogaria no Barcelona actual e em qualquer das melhores equipas inglesas. O melhor Saviola é tão bom que 60 por cento desse melhor, em meia época, mais 30 por cento dele, na outra metade, foram suficientes para dar um título a um Benfica que nem sequer tinha a melhor equipa do campeonato.

A grande questão que se levanta na equipa do Benfica é se terá um Saviola melhor (que não o melhor Saviola) e, se sim, quando. As indicações são positivas: teve banco, merecidamente; está em fim de contrato; tem uma equipa em dinâmica crescente; e teve um grande jogo na última jornada.

Matic é incomparavelmente melhor que Ailton – mas de nem sequer pertencerem ao mesmo campeonato –, Ruben Amorim  é melhor que César Peixoto – tem meio cérebro e um pulmão a mais –, Bruno César é melhor que Carlos Martins e o melhor elogio que se pode fazer a Nolito é que ninguém se lembra que Enzo Pérez está lesionado.

Nolito está a ser para o Benfica 3.0 de Jesus o que Saviola foi para o Benfica 1.0: o factor surpresa, um coelho tirado da cartola, que joga de forma diferente dos outros, alguém que o tecido defensivo das equipas adversárias não consegue envolver, porque rasga pelo sítio que parece bem cosido, e que, por essa razão – por ter de ser defendido de forma diferente dos outros – marca tantos golos. Nolito é um ponta-de-lança a jogar na linha, muito à maneira de David Villa no Barça ou de Ronaldo no Real Madrid.

Falta o quê? Para já, em termos individuais, um defesa esquerdo como deve de ser e alguém que tire minutos reais das pernas de Maxi – cuja tendência, à medida que a época avance, é entrar em défice físico acentuado, o que se torna particularmente problemático num defesa lateral que, já por si, não é propriamente um portento físico. Um central que não permita a Jardel entrar na equipa por tuta e meia. Um verdadeiro extremo-direito (será Pérez?). Uma alternativa finalizadora (será Rodrigo?).

Dito isto, convém relativizar: o facto de o Benfica ter, neste momento, melhor equipa que no ano em que foi campeão, não faz dela, qualitativamente, nenhum Porsche. O que disse nessa altura em relação aos jogadores do Benfica mantenho em 90 por cento.

Se alguém me surpreendeu? Cardozo evoluiu quando eu já não esperava que evoluísse. Artur é melhor do que eu pensava. Bruno César não será, efectivamente, descartado com facilidade, pois adquriu grande utilidade. Em relação ao resto, ninguém. A época do Benfica está a ser o que eu esperava que fosse, e continuo a acreditar que o Benfica será campeão. Hoje essa ideia é mais facilmente aceitável do que era há dois meses, e daqui a dois meses será ainda mais.
Nada disto invalida que, se não evoluir bastante na sua forma colectiva de jogar, o Benfica continue a ser, até ver, uma equipa de trazer por casa, sem dimensão europeia.

Para amanhã fica o que mudou em termos colectivos, algumas falsas ideias que se criaram com a euforia após a conquista do campeonato de 2010 e o que penso que espera o Benfica até ao final do ano.

2 comentários:

  1. De vez em quando é bom levarmos um banho de realidade e começar a ser mais humildes.

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  2. Interessantissima análise, Hugo, com a qualidade habitual. Claramente esta é a melhor equipa desde que JJ chegou ao Benfica e é-o, particularmente, nessa dimensão - a da equipa. Parece menos explosiva, mas parece mais experiente, mais segura de si própria e, concordo, ainda aquém do que esse próprio processo de crescimento pode trazer.

    A minha preocupação maior, enquanto adepto fiel, são precisamente os laterais. Maxi é um tipo honesto, raçudo, dá o que tem, embora seja apenas um defesa mediano. O principal problema é que é único, não há outro e vai, certamente, acusar o ter de jogar sempre.
    Emerson tem servido, não tem comprometido defensivamente, mas não tem nada de comparável, em dimensão futebolística com Coentrão. O ponto de contacto com Maxi é o mesmo - parece ser único, dada a repetida ausência de Capdevilla.

    Esperemos, desejemos, que o jogo com o Paços possa ser o renascer de Saviola. Daria uma dimensão diferente ao futebol ofensivo do Benfica e foi, em minha opinião, o grande ausente do Benfica 2.0.

    Como parte do processo de crescimento da equipa, gostaria de ver o que têm para oferecer Rodrigo, Nelsón Oliveira, Enzo Perez, até Cap. Para além do próprio crescimento colectivo, podem, espero, trazer contributos diferentes à equipa. Gostaria que JJ fosse capaz de os incorporar, porque cada um deles pode trazer coisas que a equipa não tem.

    Quero deixar o meu comentário final para Artur. Quando me apercebi, lá para o final da época, que o Braga não o estava a segurar, pareceu-me a melhor aposta para o Benfica. Alguém que conhecia o campeonato português, garantia um nível de desempenho bastante bom, sem novas apostas descabeladas em alguém que desconhecesse a realidade do Benfica e a pressão do lugar. Estava longe de imaginar que o resultado pudesse ser tão bom. Artur é bastante melhor que Quim. Tem dado contributos importantissimos. Assim continue.

    Aguarda-se a crónica de amanhã com expectativa redobrada.

    Abraço

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