quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Porsche

«(…) a Jesus foi oferecido um Porsche, faltando saber se terá mãos para tão elevada cilindrada.»

Fernando Guerra, em A Bola de 16 de Agosto de 2011

Fernando Guerra não tem grandes cuidados (apenas as defesas deontológicas mais elementares) a disfarçar o seu benfiquismo. Tem, sim, mais cuidado em geri-lo. Encontrou trabalho e um posto de chefia num jornal que definiu, há bastante tempo, a proximidade ao Benfica como pilar estratégico empresarial e ele, Guerra, é uma das pedra-chave nesse plano de longo prazo, funcionando como opinion-maker ao serviço do clube, trabalhando como veio de ligação entre a estratégia de comunicação do Benfica e o público, alimentando-se, e ao seu jornal, do Benfica e ao mesmo tempo alimentando o Benfica com o seu jornal. Não é, evidentemente, um caso único; pelo contrário, pertence a um tipo de jornalismo que, neste momento, nos jornais, é o mais difundido, de supremacia dos clubes em relação ao quarto poder, que tem muito menos poder do que aquilo que julga que tem, precisamente porque desistiu de ser soberano e se entregou aos interesses dos clubes. No Record, no Jogo, na Renascença, na TSF, na RTP, na SIC, mas sobretudo nos jornais diários, há muitos Guerras, uns em cargos internos mais importantes, outros menos.

Hoje, dia em que o Benfica defronta e em que, na minha opinião, vencerá o Twente, quero falar do Porsche.

O Benfica é um estudo de caso no futebol mundial. A proximidade e a falta de cultura, não só futebolística como desportiva e, até, geral, não permite aos adeptos portugueses, como aos seus jornalistas, compreendê-lo. O que torna o Benfica especial não é apenas ser um grande clube – existem dezenas de grandes clubes no mundo. O que o torna especial é a sua natureza mística, que muitos tentam interpretar, alguns tentam roubar e quase ninguém consegue compreender. Todos os jogadores que representam o Benfica, todos os treinadores, todos os dirigentes, são apanhados na dinâmica voraz dessa natureza mística, que supera em muito o que eles têm capacidade de assimilar, e vêem-se afogados ou salvos por ela, sem perceberem o que os rodeava e como isso aconteceu. Qualquer jogador, e qualquer técnico. O caso de Trapattoni, que Fernando Guerra aponta como tendo recebido um FIAT 600 para comparar os seus resultados com os de Jesus, é exemplar. Com a pior equipa a jamais ter ganho um campeonato pelo Benfica, triunfou, contudo. Nem ele nem ninguém sabem como, apesar dos Guerras pensarem que sim – falam de trabalho e manha como se Trapatoni tivesse jogado para o empate se a isso não fosse obrigado.

Não vou tratar dessa natureza mística. Dava um livro.

Também não vou falar do treinador do Benfica, porque disso falarei mais tarde – entre hoje e amanhã, depois da vitória do Benfica, porque acho que as críticas devem ser feitas após as vitórias, e não após as derrotas, que as fazem parecer irracionais.

Mas vou falar do Porsche. Ou seja, daquilo que, na sua boa vontade profissional, Guerra entende ser um conjunto de jogadores topo de gama.

Começando pelos que jogam mais:

Luisão – Terceiro central da selecção brasileira até há alguns meses, e não ficou pior jogador depois disso, pelo contrário. Atingiu o seu ponto máximo como futebolista. É o mais fiável central a jogar em Portugal, o que não faz dele um jogador fora-de-série nem o torna impermeável (como todos os centrais grandes, depende muito do meio-campo para não ser apanhado em velocidade pelos lançamentos para os avançados) mas o torna indispensável. É o melhor jogador do Benfica. Numa escala de 1 a 100, sendo 1 o pior jogador na alta competição a nível europeu e 100 o melhor jogador do mundo na sua posição: 84.

Maxi Pereira – Titular da selecção uruguaia, não está, provavelmente, entre os vinte melhores do mundo. Adaptou-se muito bem ao Benfica e está a jogar praticamente no limite. É um jogador seguro e resistente, falta-lhe velocidade e jogo de cabeça. Não é por ele que o Benfica não chegará mais longe. Valor internacional: 74.

Garay – Suplente da selecção argentina e do Real Madrid, é um defesa de classe mundial, potencialmente melhor que Luisão. Penso que não durará muito tempo no Benfica, porque é um jogador acima da categoria actual do clube e porque o clube não tem capacidade para segurar jogadores como este. Valor internacional: 88.

Javi Garcia – É, potencialmente, um jogador de nível mundial na sua posição, de carácter forte em campo e fora dele. Tem escola e qualidade, apesar de não ser versátil. Só pode jogar numa posição a alto nível. É o melhor trinco do campeonato, e melhor seria numa equipa bem organizada. Valor internacional: 78.

Aimar – Tem qualidade mas não a suficiente para lhe dar um lugar numa equipa de topo da Europa. É inconsistente, joga a rasgos e a verdade é que raramente consegue executar no último terço do campo, ou por tomar a decisão errada ou por falhar tecnicamente. À primeira vista decide jogos a favor do Benfica, e isso é verdade. Na prática, decide muito poucas vezes para o que joga e para a importância que tem no esquema da equipa. Joga a época a 70 por cento por questões físicas. Valor internacional: 65. (Seria suficiente perguntar às equipas da Liga dos Campeões quais as que o quereriam para o onze titular. Provavelmente, nenhuma da metade de cima, para ser generoso.)

Saviola – Aos 29 anos está prematuramente no ocaso da sua carreira, o que é natural porque sofre o desgaste da mais alta competição desde os 19 anos. Fisicamente, não consegue responder à velocidade a que pensa, o que o leva sistematicamente a falhar a execução. Nenhum jogador no plantel do Benfica alguma vez esteve a um nível tão elevado como ele, eleito terceiro melhor jogador do mundo em jovem. Quando perdeu velocidade, por volta dos 24 anos, juntamente com a falta de competição por estar no banco de Barcelona e Real Madrid, perdeu o auge. Apesar disso, o Benfica só será campeão com Saviola a jogar no seu melhor actual. Estará melhor que no ano passado. Valor internacional: 74.

Cardozo – O avançado-centro do Benfica não consegue ser titular da selecção paraguaia. Se os benfiquistas não estivessem habituados a ele e se houvesse a hipótese de o ir contratar provavelmente diriam que isso não faria sentido nenhum. Apesar de marcar muitos golos, perde mais jogos do que os que ganha, quer pelo que falha quer pelo que não constrói. Não teria lugar no Porto nem em nenhum das quinze melhores equipas da Europa. Aliás, é duvidoso que possa ter lugar num Benfica que quer ser campeão, apesar de o ter sido há dois anos. Como diz Jesus, tem a arte do golo, mas os que marcou com o Twente, na Holanda, e com o Feirense, em casa, provavelmente serão dos mais importantes que vai marcar esta época, o que é pouco. É um jogador fácil de defender por uma boa equipa, o que o leva a render muito pouco nos jogos em que, realmente, um bom ponta-de-lança faz a diferença. Só se verá, de facto, o verdadeiro valor de Cardozo no dia em que outro jogador ocupar o seu lugar nesta equipa, com esta forma de jogar, de forma tão regular como ele. Acredito que não só marcará tanto como ele, devido ao fluxo ofensivo, como fará os colegas melhores jogadores.Valor internacional: 70.

Gaitán – Tem o melhor pé esquerdo que já vi depois de Maradona, e um hemisfério esquerdo do cérebro (juntamente com o direito) subdesenvolvido. É alvo das invenções de Jesus, que quer fazer dele três jogadores ao mesmo tempo, e vítima de um ponta-de-lança de quase dois metros que não sabe jogar de cabeça e é sempre mais lento a arrancar que os defesas e que o faz pensar quatro vezes antes de meter a bola na área. Com um Falcão a marcar de cabeça, e a jogar à esquerda, onde pode centrar, e bem à frente, onde possa perder bolas sem causar danos à equipa, Gaitán daria a marcar vinte golos por ano, e não exagero. Assim, faz umas maravilhas, perde dezenas de bolas a meio-campo fazendo com que a equipa seja apanhada em contra-pé e perca o controlo do jogo e, provavelmente, sairá do Benfica sem nunca ter mostrado o seu verdadeiro valor. Não joga na selecção argentina, sobretudo porque ainda mostrou muito pouco na Europa, por falta de treinador e de equipa – se calhar, também, porque não é jogador para isso... Só finge que defende, o que lhe é permitido por Jesus mas não o seria por qualquer Wenger. Quando sair para uma equipa com um treinador exigente que o obrigue a ser um jogador completo será um dos melhores do mundo. Valor internacional: 80.

Esta é a espinha dorsal do Benfica. O motor do Porsche.

Em resumo:

«Eu, em forma, tinha lugar no Real Madrid (porque, para jogar, no Barcelona, tinha de ter nascido lá)» - Ninguém, o único que havia era o Coentrão, foi para lá, onde está e continuará no banco, como décimo-segundo jogador.

«Eu, em forma, jogava no Chelsea» - Garay

«Eu, em forma, jogava no Porto» - Luisão, Javi Garcia, Maxi Pereira, Gaitán

«Eu, em forma, jogava Benfica» - Cardozo, Aimar, Saviola.



Depois, há os outros:

Witsel – Se confirmar o que mostra, pode vir a ser o melhor jogador do Benfica, de longe, e até do campeonato português, quando Hulk sair e se a equipa do Benfica engrenar. Mas está, como todos os outros, à mercê da equipa. Valor internacional: 80

Emerson – É um defesa esquerdo regular. Ver falar-se dele como possível jogador da selecção brasileira é praticamente uma heresia. Valor internacional: 70.

Nolito – Jogava no Barcelona B. É um jogador útil, com aparente margem para progredir. Mas se lhe for entregue a carga ofensiva de uma equipa como o Benfica vai rapidamente vulgarizar-se. Valor internacional: 65.

Enzo Pérez – Quem disser bem ou mal dele está enganado, porque pouco ou nada o viu jogar. Eu incluído. É uma incógnita. Pelo estatuto na Argentina, valor internacional: 70.

Jara – O caso clássico do futebolista a quem a bola e a equipa atrapalham bastante. Parece capaz de fazer tudo e não é capaz de fazer nada como deve ser. Tem jogo nas pernas e nenhum jogo na cabeça – não o consegue pensar, não levanta os olhos da bola e do chão. Quer muito ser uma estrela (o que é bom) mas ainda ninguém lhe explicou como. Se encontrar um treinador preocupado com isso, em vez de estar sempre preocupado em encontrar uma táctica de mestre como se disso dependesse a sua eternidade, será um jogador excepcional. Valor internacional: 65.

Jardel – Bom para tapar buracos quando se vende um titular da selecção brasileira e despachar no Verão seguinte. Só que, no Verão seguinte, ficou. Valor internacional: 50.

Matic – Em potência, um bom jogador. Na prática, também parece que sim. Não me espantaria que se tornasse melhor que Javi García. Valor internacional: 65.

Capdevilla – Resta saber se pega ou não. Não parece que Jesus vá apostar nele. Se assim for, no Natal está em Espanha. Valor internacional: 70.

Artur – Começou o ano passado como suplente em Braga. Parece seguro. Valor internacional: 70.

Eduardo – Ainda não teve uma época de alta competição em que se dissesse: «Este ano não me lembro do Eduardo dar uma balda.» Valor internacional. 70.

Rúben Amorim – Se não se fartarem dele e ele do clube, vai passar dez anos no Benfica, porque tem inteligência para isso, e vai jogar muito, sem nunca chegar a ser titular. É um daqueles jogadores que, dentro de um clube, vale muito mais do que aquilo que, fora dele, estão dispostos a dar por ele. Valor internacional: 63.

Bruno César – Seis milhões por um suplente no Corinthians. Não quer dizer que não venha a valer. Mas Jesus, que provavelmente viu nele a descoberta do ano e convenceu o amigo Vieira a comprá-lo, vai descartá-lo tão depressa quanto o tempo que leva a dizer: «Mestre da Táctica!». Valor internacional. 52.

Este é o Porsche do Guerra. Os outros, de que não falei, ainda têm de provar que sabem vestir a camisola. Qualquer tipo de antecipação do futuro radioso de Rodrigo, Mora, Nélson Oliveira, Urreta e outros é pura boa vontade jornalística. A alto nível, ainda nenhum mostrou nada, quanto mais ser peça de motor de alta cilindrada.

Conseguir mexer na caixa de velocidades do Porsche, ou no BMW, ou até no Renault, já é outra conversa.

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