sábado, 8 de outubro de 2011

'tumaticamente...

Quando o Sporting passou dezoito anos sem tocar na chincha o seu trauma mais conhecido era o do Natal. Agora já quase ninguém se lembra disso, mas na altura a coisa era de tal forma complicada que se chegou ao ponto de, no início da época, já haver quem dissesse nos jornais: «Este ano temos de Natal». E depois chegava o Natal e já iam com dez pontos de atraso. Mesmo quando o Sporting foi campeão, com o Inácio, a coisa no Natal ia muito tremida. Depois foram buscar três jogadores em Janeiro, tiveram sorte, e enganaram o Porto.

Os benfiquistas riram-se, mas depois chegou a vez deles. Das onze épocas (ou doze, já não me lembro) em que não ganharam o campeonato a maior parte ficou enterrada no Natal. E o processo era praticamente sempre o mesmo. Nas primeiras jornada havia um ou outro mau resultado, «nada de comprometedor», diziam os responsáveis – o que até podia ser verdade se, depois, nos primeiros jogos de Dezembro, não houvesse mais dois ou três atascanços seguidos que, no espaço de 15 dias, deixavam a equipa a uma distância de dez pontos de atraso, com meio campeonato para jogar. A consequência era uma desmoralização que levava, depois, aos esticões de quinze e vinte pontos com que se chegava ao fim. E assim se criou o fantasma do Natal presente.

Nada disto acontecia por acaso, assim como não é por acaso que se diz que o futebol é um desporto de Inverno, apesar de em Portugal muito mais de metade dos jogos serem jogados a seco ou com calor.

Em Dezembro há uma convergência de dois factores de ordem física que fazem com que comece aí o «sim ou sopas» da época desportiva: por um lado a frescura física que vem da pré-temporada já acabou (até 1 de Dezembro o Benfica terá realizado 20 jogos em pouco menos de quatro meses, com alguns decisivos pelo meio); por outro, chega o frio, o vento e a chuva e a exigência física passa para o dobro de um momento para o outro. Ora, o futebol, apesar de poder parecer ser sobretudo um jogo técnico (especialmente visto pela televisão), é iminentemente um jogo de pernas, em que a capacidade física vale oitenta por cento do resultado, para não dizer mais. No futebol, tudo, dos pés ao cérebro, obedece ao pulmão.

É por isso que o Natal separa o trigo do joio, porque até ao Natal o desempenho de uma equipa é conjuntural, e daí para a frente é estrutural. Só quem tem estrutura, base, é que suporta o choque. O Inverno é a época do ano para os verdadeiros profissionais – para os que vão trabalhar mesmo quando não lhes apetece, para os que fazem sempre mais um bocadinho do que o que lhes é pedido, para os que encontram truques para disfarçar as insuficiências, para os que não perdem tempo a pensar nos problemas mas a arranjar soluções. No fundo, para os que resistem.



Há uns anos, o Toni falava nos automatismos. Ninguém levava o Toni a sério, no fundo, porque o Toni nunca foi treinador de futebol, foi um treinador do Benfica, alguém cujo único grande talento foi ter compreendido a natureza do clube e aprendido alguma coisa, empiricamente, com todos os grandes treinadores com quem trabalhou. Os automatismos, para o Toni, eram como o Santo Gral. Para um adepto vulgar, os automatismos eram uma treta.

O que é um automatismo e porque é que o Toni adormecia a pensar neles? Porque o Toni, como todos os jogadores de alta competição, sabia que, a partir de certo ponto de um jogo e de uma época, nomeadamente nos momentos de maior pressão, a condição normal de quem está dentro do campo com uma bola à frente é de aflição. Um homem fica à rasca. Está cansado, não consegue pensar como deve de ser, tem à frente onze tipos igualmente à rasca, à volta 50 mil tipos que se estão a cagar para o facto de ele estar à rasca, e não só tem de enfiar aquela porcaria numa baliza que está a cinquenta metros de distância como tem de impedir que os outros lho façam a ele. O único verdadeiro papel de um treinador de futebol é ensinar aos jogadores uma saída para essas situações. O resto é folclore, chicletes e penteados.
O futebol é muito lindo, apaixonante, sensacional, mas, para um jogador de alta competição, é, acima de tudo, o medo e a forma de lidar com ele.

Um automatismo é uma coisa que uma equipa aprendeu a fazer sem pensar. É um desenrascanço. Uma pequena rotina de corrida e passe que lhe permite libertar um jogador e dar-lhe dez metros de liberdade condicional e dois décimos de segundo para pensar. É o suficiente para aliviar a pressão. Quando uma equipa consegue encadear uma série de pequenas rotinas o efeito multiplica-se, com uma perversidade adicional: não só a equipa que as faz se liberta da pressão como, ao fazê-lo, coloca sob maior pressão a equipa adversária. Se esta não tiver os seus próprios mecanismos de desenrascanço, está feita.

O que permite a uma equipa jogar a alto nível – a alto nível há SEMPRE pressão – não é o talento, são os automatismos. O talento permite-lhe ganhar a outras equipas igualmente mecanizadas. Mas sem os automatismos não há sequer a oportunidade de atingir o nível em que o talento decide o resultado. Antes de chegar lá a equipa perde o controlo de si própria.
É por esta razão que equipas de alto nível não só se mantêm ao mesmo nível alto durante muito tempo como, ao longo dele, mesmo ganhando, o seu jogo se torna rotineiro, quase maçudo, a gasóleo, sem grandes erros nem grandes rasgos, mas com resultados.

Equipas como o United, o Porto, o Barcelona, um Lyon e alguns outros distinguem-se, mais que pela capacidade de refulgirem permanentemente em campo, de muito raramente descerem de um certo patamar técnico, físico e de concentração, o que lhes permite resistir quando os outros sucumbem à pressão. Resistir é o primeiro passo. O segundo é, depois, jogar com o talento. É por essa razão que, geralmente, as finais da Liga dos Campeões, ou dos Europeus e Mundiais, são uma estucha – porque o grande valor daquelas equipas são as rotinas. Durante 85, 86 minutos elas anulam as rotinas umas das outras, tentando encontrar a nesga por onde o talento e a inspiração desse dia possa decidir o resultado, geralmente por 1-0, 2-1 e pouco mais. É, também, por isso que um Messi vale dez vezes mais dinheiro que os outros – porque tem um gene de diferença que os outros não têm.

No Benfica, a questão não é tanto a existência de automatismo, pois esses automatismos já começam a existir. Aí, a questão é mais a natureza dos automatismos.
Ao contrário do Porto, onde o espaço para a liberdade criativa é muito restrita a um certo de locais do campo e a certos momentos do jogo, no Benfica Jesus apostou, desde o início, num tipo de automatismo mais arriscado, mais veloz, tão baseado no entendimento momentâneo dos jogadores que fica muito perto de não ser automatismo nenhum mas apenas uma invenção do momento.

Ao contrário do Porto, onde a ideia é «isto só pode sair desta maneira» e o resultado é sensivelmente sempre o mesmo, no Benfica a ideia é «vamos ver se isto pode sair desta maneira» e o resultado é mais imprevisível. O que não quer dizer que o Benfica já não tenha formas automáticas de inventar algum espaço para os seus jogadores. Demorou, e vai demorar, é mais tempo a interiorizar.
O 2-2 das Antas prova que não há uma fórmula prevalecente quando os automatismos atingem um certo nível de funcionamento. Os ingleses têm automatismos, como os italianos os têm e, apesar de serem estilos de jogo completamente diferentes, ambos encontram ou encontraram espaço para ganhar, à sua maneira.

O Porto optimizou os seus automatismos para atingir resultados sem ter de recorrer a grande talento. Nos últimos anos, à medida que tem ganho a capacidade de comprar mais talento, tem vindo a mudá-los lentamente, tornando o seu jogo um pouco mais aberto e mais fluído.
O Benfica começou a construir os seus mecanismos automáticos com Jesus. Antes disso era o marasmo. Ao fim de dois anos, já atingiu um nível a partir do qual não desce. Ainda é um nível mais baixo do que o do Porto. Há momentos, de maior pressão, em que a coisa ainda emperra seriamente. É mesmo assim. É por isso que é preciso tempo. Os budistas dizem que aprender é conseguir deixar de pensar antes de agir. Toni não o diria melhor.

O pensamento do Porto é mais defensivo, mais fechado. É, sem dúvida, mais seguro, mas tem menos espaço de expansão, não deixa grande margem de conquista. Por isso é que o Porto, mesmo ganhando, não tem uma equipa que, pelo seu estilo, marque uma época. O Porto vai demorar muito tempo a cair, porque está blindado da cabeça aos pés – aproveitando o que o Pinto da Costa disse, vamos mais facilmente vê-lo apodrecer aos poucos que assistir ao seu funeral. Mas também já não vai a lado nenhum. O que conseguiu é o máximo que pode conseguir. Não tem espaço suficiente para o talento. Não pensou nisso. Se calhar porque não pôde, se calhar porque não fazia sentido na altura.

Já o estilo do Benfica é, parece-me, mais condizente com o de um grande clube europeu. Os grandes são-no porque têm acesso ao talento. Criar um estilo de jogo automatizado em que se conte, à partida com a existência e a necessidade de talento é, na minha opinião, apenas, melhor. O Benfica nunca conseguiu renunciar ao talento. Como teve um dos melhores futebolistas de todos os tempos – apesar de ter ganho a sua primeira Taça dos Campeões sem Eusébio, e graças, sobretudo, aos automatismos, é preciso notá-lo – aprendeu a compreender o brilho das estrelas, e nunca mais lhe conseguiu fugir. Faz parte da sua natureza, de tal forma que, nos seus piores dias, a primeira solução em que pensava, mais que no colectivo, era no talento, no messianismo, no jogador «que nos vai salvar». João Pinto, Nuno Gomes, Rui Costa e outros viveram, no Benfica, esse tempo de esperança vã. Vã porque o problema não era de talento, era de mecânica. Sem automatismos, sem tempo, o talento não tem espaço para aparecer. O talento nunca faltou. A equipa sim.

Mas agora o Benfica encontrou o seu ponto de «fissão nuclear». Compreendeu a importância das rotinas sem negar, à partida, a inevitabilidade do talento. Creio que, com o tempo, se o trabalho se mantiver honesto e inteligente, o Benfica terá mais condições de seduzir as pessoas que o Porto, quer interna quer externamente. E, consequentemente, de ficar melhor com o futebol do que o Porto – um clube que, ao fim de trinta anos, transmite a ideia de ganhar «apesar» do futebol e não tanto «graças» ao futebol. É por isso, e não por mais nada, que o futebol, de uma maneira geral, não vai muito à bola com o Porto.

Esta época, como em nenhuma outra nos últimos anos (porque só agora se pode dizer que o Benfica começa a ter um estilo consolidado), vamos assistir ao confronto entre duas ideias de futebol. De que o Porto ainda é mais forte, não tenho dúvidas. De que o seu futuro é muito mais curto, também não.

Isto tudo era para dizer que chegou a altura do Benfica começar a pensar no Natal, mas pronto, talvez me tenha esticado um bocadinho... É melhor deixar para amanhã.

2 comentários:

  1. Tenho aprendido a gostar do JJ quer pela 1ªépoca,em que jogamos um futebol como há anos não se via na Luz,quer pela 2ªépoca.Na 2ªépoca percebeu-se perfeitamente que a Direcção não foi capaz de suprir a falta do Ramires,do DiMaria bem como nem sequer soube pensar em acrescentar mais valor desportivo à equipa.Penso que o JJ não teve ou não soube ter poder para influenciar o rumo dos acontecimentos.A época começou mal mas depois a equipa jogou bem ficando sempre no ar que só existiam 10,5 jogadores e que mal um se lesionasse seria o descalabro.Esta época,parece-me que o JJ se impôs(o Cap não ser nem sequer chamado,é um sinal disso)e só espero que o LFV não entre na paranóia de "quem manda aqui sou eu" e entenda,até pelos aspectos que foca no seu post,que o JJ é neste momento essencial para o crescimento futuro.Não o considero nada parvo apenas muito impulsivo.Esta época ficou por contratar mais um d.direito,d.esquerdo e mais um central já que o JJ não conta com o Miguel Victor e o Jardel é um sobressalto constante.Este é o meu sentir do futebol actual do Benfica e penso que se houver estes acrescentos ao plantel podemos confiar que iremos ser mais fortes.

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  2. Não sou um incondicional de JJ apesar de admitir que, muitas vezes, é possível que seja, até, excessivamente crítico. Acho que o Benfica da época da vitória no campeonato era muito mais equipa, sem ser perfeita, nem nada que se pareça, do que a equipa da época passada, sendo JJ o principal responsável por isso.
    Irrita-me, por exemplo, que a equipa se revele, tantas vezes, tão incapaz de controlar o jogo, mantendo a posse de bola, sem ter de atacar às cegas, ou sem fazer asneiras de risco sério para a equipa.
    Irritam-me a evidente teimosia e a óbvia deficiência do treinador no domínio dos aspectos psicológicos, que se manifesta, tantas vezes, por referências públicas manifestamente despropositadas sobre diferentes jogadores.
    Irrita-me, finalmente, uma aparente incapacidade de gerir o plantel de uma forma mais eficaz que levou, por exemplo, ao monumental estoiro físico da época passada (aqui admito algumas melhorias este ano).

    Dito isto, não me custa reconhecer que a equipa tem dados passos positivos. Até onde chegará, ainda se vai ver. O feito de monta de JJ foi a vitória no campeonato, com um futebol atraente. A verdade também é que JJ tem tido os plantéis em que o Benfica mais investiu ao longo destes anos. Nenhum treinador teve tanto quanto JJ. Um juízo definitivo, por isso, só pode ser feito depois de ver os resultados desta época e a forma como a equipa se comporta.

    Não há dúvida que com JJ o Benfica tem exibido o futebol mais emocionante que se tem visto por terras lusas, mas isso não chega...

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