quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O campeonato que Roberto já não ganhou

Comecei a tomar algumas notas sobre aquilo que ontem disse que ia escrever e, quando dei por isso, tinha aqui matéria para uma edição especial da National Geographic. Então dei uma de Professor-Manuel-Sérgio-aconselha-Jorge-Jesus sob mim próprio e disse-me: «Hugo, tens de ser sensato. As pessoas precisam de dormir à noite.» Ouvi a voz da minha consciência e conclui que o melhor seria dividir a segunda parte do meu devaneio em dois ou três segmentos. Dessa forma torna-se menos maçudo e temos (tenho eu, pelo menos…) duas ou três vezes mais prazer.

Ontem, o Xirico deixou um comentário a falar de banho de realidade. Achei interessante, por isso hoje vou falar um bocado sobre ilusões, mitos e realidade.

Os mitos não são uma invenção contemporânea. Muito pelo contrário. O Homem sempre procurou uma narrativa que o fizesse acreditar que estava protegido pela Fortuna. No fundo, acho que é porque o Homem percebe a sua verdadeira fragilidade, a quase irrelevância do seu esforço no desenrolar do destino, e precisa de se sentir especial.
Não vamos mais longe: o slogan que o Porto escolheu para vender bilhetes este ano foi: «Este é o nosso destino». Vamos ver que destino é esse daqui por três ou quatro anos…

Os mitos têm sempre uma parte de verdade e outra de ilusão.

A figura da loba que aparece no emblema do Roma, por exemplo, vem da lenda da fundação da cidade. Diz essa lenda que Rómulo e Remo foram encontrados e amamentados por uma loba, e que, mais tarde, vieram a fundar Roma.
É verdade e é mentira.
Essa história, encomendada pelo imperador Augusto setecentos anos depois da fundação (faz lembrar a laracha da fundação do «Foot-ball Club de Chá do Porto»…), dourou bastante uma pílula que era bem mais difícil de engolir. Rómulo e Remo foram criados por uma «loba», é verdade, mas essa «loba» era, na verdade, uma vulgar prostituta. Na altura, na região, as prostitutas eram tratadas por «lobas», e as casas de putas como «lupanários», ou «casa das lobas». (Vou-me abster de fazer mais comentários a Pinto da Costa…)
Rómulo e Remo eram, na verdade, dois bandidos sanguinários, que se rodearam de uma corja de assassinos, atacaram e saquearam em bando as cidades rodeantes, inclusivé roubando-lhes as mulheres, até se tornarem na mais importante cidade do Lácio.

Quando a verdade não nos convém, mudamo-la. Já diziam os romanos: «Vae victis». Ai dos vencidos! A História é escrita pelos vencedores, quer seja um clube de futebol quer seja o mais poderoso império que já existiu sobre a Terra.

(Num parêntesis, também convém pensar neste aspecto quando se pretende que o Benfica lute com o Porto dentro de um código de honra e decência enquanto, do outro lado, se anda a angariar putas para árbitros. Isso é lindo. Eu apoio. A nobreza é fascinante. Mas apenas se se ganhar. Porque se se perder, quem ganha escreve a História. E o nobre cavaleiro rapidamente se transforma em pobre idiota as olhos de quem a lê. Isto levar-nos-ia longe. Fica para outro dia.)


Eis um mito benfiquista recente:
«Artur Jorge começou a desgraça benfiquista ao destruir uma equipa campeã.»
A verdade mítica: o Benfica tinha sido campeão e Artur Jorge mudou quase tudo, em alguns casos contratando jogadores sem categoria.
A outra verdade: o Benfica já estava em decadência acelerada, ganhou o título sem saber como, beneficiando de uma série de factores conjunturais, incluindo o jogo mais extraordinário na história do clube, e Artur Jorge fez o que tinha de ser feito, tendo sido prejudicado quer pela terrível dinâmica de autodestruição que estava instalada no clube quer por vários episódios de grande azar.

A equipa do Benfica que ganhou o campeonato de 1993/94, treinada pelo afável Toni e com jogadores como Mozer, Isaías, Rui Águas, Vitor Paneira, Schwarz, João Pinto e Rui Costa, era um naufrágio iminente ambulante. Praticamente todos os jogos dessa época foram um exercício de sadomasoquismo, em que as deficiências defensivas e a desorganização ofensiva eram tantas que parecia impossível chegar-se ao fim sem se perder.
Incrivelmente, o Benfica chegou ao jogo da antepenúltima jornada (salvo erro…), em Alvalade, contra o Sporting (de Figo, Peixe, Paulo Sousa e Pacheco, estes roubados no Verão anterior ao Benfica) a precisar de um empate para ser campeão.
A história deste jogo, apenas, também dava um livro. É o jogo dos 6-3, com o hat-trick do João Pinto, depois do Benfica ter estado a perder duas vezes só na primeira parte.

Para se ter uma ideia do circo que era essa equipa do Benfica, basta lembrar que começou a época com três empates, um deles nas Antas, por 3-3, que foi nessa temporada que houve o jogo dos 4-4 em Leverkussen, que foram às meias-finais da Taça das Taças e que, depois de ganharem ao Sporting, ainda deram umas valentes baldas, tendo inclusivamente perdido o último jogo do campeonato, da consagração, na Luz, com o Guimarães, por 1-0.

Essa equipa do Benfica era um desastre de sucesso. Só foi campeã porque o Tomislav Ivic enterrou o Porto nas primeiras dez jornadas e porque o Sousa Cintra despediu o Bobby Robson para contratar o Queirós e, quando deu por ela, já estava a correr atrás do prejuízo. Quer Porto quer, sobretudo, Sporting, jogavam enormidades mais que o Benfica que, no entanto, não perdeu nenhum jogo nos confrontos directos e foi levando o barco aos trambolhões.
Durante a época de 2009/2010 só me lembrava dessa equipa do Toni. Parecia uma viagem no tempo. Em qualquer um dos casos, o Benfica não soube como as coisas correram tão bem. Mas em ambos os casos apressou-se a dourar a pílula.
A consequência dessa mistificação da realidade foi uma decadência abrupta.

No primeiro caso a treta do tipo que «destruiu uma equipa campeã» levou a que se andasse mais de dez anos a fugir para a frente, a fingir que o problema era esse, com Vales e outras coisas terríveis pelo meio, a pior fase da história do Benfica, que nem o título do Trapatoni conseguiu resolver por uma razão muito simples: porque, quer num caso quer no outro, a equipa não jogava nada e limitou-se a aproveitar os restos, não tendo uma base sólida de futuro. Enquanto isso, o Porto fez um penta, mais um tetra e mais qualquer coisa, o Sporting ganhou dois campeonatos e até o Boavista molhou a sopa.

No segundo caso… bom, ia a dizer que no segundo caso resultou apenas numa época de profunda desilusão, mas já estou a contar que o Benfica seja campeão este ano, quando isso (apesar do meu convencimento) estar longe de ser seguro. Ninguém nos diz que o Benfica não possa estar mais três, cinco, dez anos sem voltar a ganhar o campeonato. Acho difícil, mas impossível não é.

Os mitos têm este problema: não se limitam a dourar a realidade, condicionam-na. Para o bem e para o mal. Por um lado, no curto/médio prazo, dão confiança, por outro escondem problemas que, mais tarde ou mais cedo (às vezes nos piores momentos), acabam por vir ao de cima.
Tudo isto vem desaguar na mais recente mistificação benfiquista: Roberto.

O mito: «Roberto entregou o campeonato ao Porto nas quatro primeiras jornadas depois de uma época perfeita.»

A verdade do mito: Roberto foi um desastre, em termos técnicos, e teve a maior parte das responsabilidades nas derrotas que ditaram o afastamento prematuro da luta pelo título.
A outra verdade: com Bento, Preud’homme ou Artur os resultados no final da época teriam sido os mesmos. A equipa entrou em descompressão, pagando a factura de uma época a jogar acima das suas capacidades reais, em esforço físico e anímico constante, e o Porto, que já era melhor na época anterior, apareceu ainda mais forte. As hipóteses do Benfica ganharem aquele campeonato, com ou sem Roberto, eram de zero por cento. Só havia um campeão possível em 2010/2011, como se veio a demonstrar.

Posto isto, o twist, como dizem os americanos: o jogador-chave na próxima conquista do campeonato, para mim, é… Roberto.
O sucesso que o Benfica vai experimentar nos próximos anos não começou em Roberto, começou bem antes disso, mas, pela minha parte, vai sempre haver um lugar especial na história do Benfica para Roberto. Por duas razões:

- Primeiro, porque a contratação de Roberto demonstrou a agressividade que um clube aspirante ao domínio deve ter.
O Benfica tinha um guarda-redes consensual – português, barato, experiente, da casa e, sobretudo, (que palavra terrível…!) suficiente.
Ora, quando se quer ser o melhor, ser suficiente não chega.
O que fez o Benfica? Gastou mais dinheiro do que algum vez tinha gasto num único jogador, comprando um guarda-redes desconhecido e inexperiente, que entrou logo sob pressão por estar a roubar o lugar a um homem que tinha acabado de ser campeão.
Para piorar. O guarda-redes é visto, tradicionalmente, como o elo mais fraco da equipa, alguém que não importa muito.
Teoricamente, o Benfica arriscou muito, demasiado, numa recompensa insignificante.
Na prática, a coisa correu mal, porque o jogador, simplesmente, falhou.
A longo prazo, fica uma filosofia, que se reflecte também nas outras contratações: ousar tentar, ousar ganhar. Esta é a filosofia dos campeões. Um campeão não se satisfaz com o suficiente, mesmo que para isso tenha de ir contra o politicamente correcto, contra o senso comum ou contra a opinião pública. É por isso que só há um campeão: porque um campeão é especial. É diferente. É único. Tem a capacidade de acreditar e de ousar mais que os outros. E note-se que ser campeão, neste contexto, não é o mesmo que apenas dar um pontapé numa pedra e encontrar lá em debaixo um campeonato.

- Segundo, porque toda a gente embarcou facilmente no mito-Roberto menos as pessoas mais importantes: os responsáveis do Benfica. Os dirigentes do Benfica, com Vieira (devidamente aconselhado, presumo) à cabeça, fizeram exactamente o que tinham a fazer: despediram Roberto (não comento o processo de transferência, comento a parte prática) e purgaram o plantel de mais de uma dezena de jogadores que, na verdade, eram dez a menos e não dez a mais; mantiveram a aposta na compra de qualidade, ainda que a um preço alto; e viraram-se para dentro, não procurando desculpas esfarrapadas nem enfiando a cabeça na areia.
A gestão do plantel, do momento e do discurso, durante o último defeso, por parte dos dirigentes do clube, foi quase perfeita. Terá falhado, apenas, a aquisição de Danilo. Tudo o resto, que me lembre, foi praticamente perfeito. A continuidade de Jesus foi o corolário dessa boa gestão.

O facto de quem manda, actualmente, no Benfica, não ser vulnerável às suas trágicas e habituais mistificações é o melhor sinal possível para o futuro do clube. O último presidente do Benfica não susceptível a mistificações foi Fernando Martins. A desgraça começou no momento da eleição do seu sucessor, João Santos, com a aleivosia do «Benfica europeu». A partir daí foi sempre a cair, até Vieira, um homem da rua, lhe pegar e, correndo o enorme desgaste de aprender enquanto navegava, o trazer ao melhor ponto dos últimos 23 anos.

Podem dizer-me que é o próprio Benfica quem alimenta algumas mistificações, ligadas a arbitragem, a conspirações, etc. Eu concordo. De facto, a gestão da opinião pública para um ganho de poder no momento leva o Benfica a inventar factos. Mas a «realpolitik», para mim, é muito mais importante que os bombos mediáticos. E enquanto, nos jornais, o Benfica alimenta o folclore, nos gabinetes e no campo, que é onde interessa, a sua atitude é diametralmente oposta, e demonstra uma leitura correctíssima da realidade.

Foi nesse pragmatismo directivo que se começou a construir aquilo que eu julgo vir a resultar na reconquista do título de campeão nacional.

4 comentários:

  1. Olá,

    A narrativa é bem montada e interessante, como de costume. Concordo em particular com a parte final, sobre a correcção do rumo assumido pela direcção do Benfica.

    Há um pormenor que merece correcção. Dizer que o Benfica gastou mais dinheiro com Roberto do que algum vez tinha gasto num único jogador é factualmente incorrecto. Pelo menos Cardozo e Simão custaram mais dinheiro (creio que à volta de 12 milhões de euros cada um).

    Atribuir a Roberto a responsabilidade pelo falhanço é um pouco um mito, também, mas na medida em que as decisões que foram tomadas como que assumiram que o mito foi a realidade, as consequências, que já são positivas, quer em termos da valia actual da equipa, quer em termos desta equipa poder continuar a ser reforçada. É curiosíssimo, por isso, o twist. Muito bom :).

    Abraço

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  2. Sobre o post,só digo que desde o principio ao fim, nos agarra e nos põe a pensar o que considero ser a grande finalidade de um texto.Agora gostaria,se possível ou quando for possível,de saber a sua opinião(que também se pode relacionar sobre mitos e realidade)do apoio do LFV ao FGomes?Será que apoiando o dito cujo,não se está a dar mais poder ao Oliveira?E isto porque considero que esta candidatura é essencialmente lançada por ele.

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  3. Dá gosto ler... S

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  4. Estive a ler vários posts de Agosto e Setembro e em alguns deles encontrei as respostas que lhe tinha posto no meu comentário anterior.Foi incrível ler retroactivamente,posts,que previam determinadas situações e compará-los com a realidade actual.Na mouche.E como não acredito em videntes,só posso concluir que para além de um excelente escriba a sua capacidade de previsão é alicerçada em muito saber e vivência.Amanhã continuarei as minhas incursões em posts antigos.Abraço.

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