segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O amigo de um amigo meu

Segunda-feira é o dia impossível, mas quero só dar uma achega a uma coisa que li de relance no site do Record – não tenho tempo nem vontade para comprar o jornal em papel. É a propósito do suposto «plano do Carraça», em que está incluída a contratação de um treinador-adjunto «do Benfica» para a equipa técnica.
Quero partir desta perversidade que é considerar que os que lá estão não são «do Benfica».

A perversidade justifica-se. A animosidade que os clubes criaram com os seus treinadores a partir do momento em que os acharam descartáveis leva, de facto, a que se considere que uma equipa técnica não «é» do clube, apenas «está» no clube transitoriamente. Isto é muito mais importante do que parece.

O facto de não haver um factor de continuidade técnica numa equipa de futebol é um motivo de empobrecimento. Há uma quantidade preciosa de informação e de aprendizagem que se perde sempre que uma equipa técnica sai de um clube.
A ideia do adjunto é apenas um «remake», não é originalidade nenhuma, é o Carraça a aproveitar uma coisa que já se fez no Benfica, por exemplo, com Fernando Caiado, Peres Bandeira e, na parte final, Toni. Fernando Martins, como presidente, fez isto até ao fim.

Seria, inovador, sim, criar não um novo posto mas um departamento técnico independente da equipa técnica, de carácter permanente, e altamente qualificado, que fizesse todo o histórico dos treinos, que recolhesse relatórios específicos dos treinadores, que analisasse, de forma metódica e sistematizada, o rendimento desportivo de cada jogador e da equipa ao longo da temporada. Um departamento formado por técnicos de futebol qualificados que permitisse uma passagem detalhada de informação de uma equipa técnica para outra, que tornasse possível compreender o que é que funciona, o que é que não funciona, porquê, e como se deve fazer para funcionar.
Seria a melhor forma, por exemplo, de aproveitar a passagem de um treinadorzinho como José Mourinho pelo clube… O que é que ficou de Mourinho no Benfica? Só a nostalgia. Do seu conhecimento, não ficou nada. Com Trapatoni, com Koeman, com Heynckes, idem. E com Jesus será a mesma coisa.

O futebol não é uma ciência oculta, é uma ciência, até, bem acessível. Além do factor talento – que existe e que é importante – a maior parte do futebol é trabalho, aprendizagem e transmissão de cultura, como qualquer outra actividade humana. A base do sucesso, no futebol, é o trabalho metódico. O talento faz o resto. Há, evidentemente, treinadores mais talentosos que outros. O objectivo do Benfica deveria ser contratar treinadores para aproveitar o seu talento, e não partir do princípio que o treinador que entra deve começar a construir tudo de novo.
O responsável pela criação de identidade e pela transmissão cultural dessa identidade numa equipa de futebol não deve ser o treinador, deve ser o clube.

É, também, por esta razão, que, se eu fosse presidente do Benfica, havia duas coisas que, de certeza, o treinador não poderia escolher: jogadores e adjuntos.
Em relação aos jogadores, os treinadores saem, mas os jogadores que eles escolhem ficam, e saem muito caros, quer pelo que custam quer pelo espaço que ocupam, impedindo que outros apareçam. Isso do «modelo de jogo» do treinador é uma treta maior que o fair-play. O modelo de jogo pertence ao clube, se o treinador quer um modelo de jogo que compre ele os jogadores e faça uma equipa no quintal.

Pela mesma lógica, andar com os amigos atrás para fazer equipas técnicas é das coisas menos profissionais que existem. É, mesmo, surreal. A pior coisa que se pode dizer em abono de um profissional é: «Escolhi-o porque o conheço muito bem, é meu amigo há muitos anos e tenho confiança nele.» É passar-lhe um atestado de invalidez.
Se o treinador quer ter à sua volta «pessoas da sua confiança» que contrate ele os amigos e faça reuniões técnicas em casa. No clube devem estar os melhores jogadores, os melhores treinadores e os melhores adjuntos, e a única confiança de que o treinador precisa é a do clube.
Ainda está por determinar qual é o prejuízo de um clube por ter de contratar, para trabalhar com jogadores altamente profissionais e qualificados, técnicos de segunda ou terceira categoria, cuja única aptidão profissional excepcional conhecida é ter feito amizade com um tipo que, por sorte, subiu na vida.

No desporto profissional americano, onde essa treta da confiança e da lealdade foi posta no devido lugar há muito tempo, os técnicos são contratados pelas equipas para ocupar posições específicas, e numa perspectiva de longo prazo. Um técnico auxiliar sabe que, ao entrar no corpo técnico, terá maiores possibilidades de vir a ser o técnico principal, e não há dramas, porque o processo natural é, ao fim de alguns anos, o técnico principal sair. É o mais natural que existe.
Um bom exemplo: Phil Jackson, o treinador com mais vitórias na história da NBA, ao serviço dos Chicago Bulls e dos Los Angeles Lakers, foi adjunto dos Bulls durante vários anos antes de pegar na equipa e ganhar aí seis campeonatos, com Michael Jordan.

É vulgar um adjunto de uma equipa ser contratado para treinador principal de outra, e vice-versa. Acontece regularmente principais passarem a adjuntos de anteriores adjuntos que entretanto se tornam principais. Porque o que conta é a competência, não são as «lealdades».
Acontece assim na NBA, na NFL, no basebol, no hóquei no gelo. Acontece assim, em suma, no desporto profissional evoluído – o que não é, entenda-se, o caso do bem marialvae conservador futebol português

2 comentários:

  1. É óbvio que a continuidade é um aspecto que devia ser da maior importância. Também me parece que na fauna do futebol, essa continuidade deve ser vista por muitos como uma ameaça, em particular se falarmos de um adjunto - o primeiro candidato ao lugar do principal, se este for despedido, como acontece tantas vezes por cá.

    Acho que o melhor exemplo não só de continuidade, mas de uma filosofia de jogo que atravessa os múltiplos escalões etários, é a do Barcelona. Não é apenas a filosofia que levou o Barça onde está, mas claro que é muito importante para a integração de tanta gente formada na casa e para a não descaracterização do futebol da equipa durante períodos de tempo prolongados.

    Não sei até que ponto a filosofia de contratar apenas o treinador seria aplicável. Vejam-se os exemplos, a começar no topo - Mourinho, que tem uma entourage desde os tempos do Leiria. Não sei, por isso, se seria tão radical como aqui se propõe, mas que me parece essencial a existência de uma estrutura que assegure esta continuidade, isso é incontroverso.

    Abraço

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  2. Sinceramente,não sabia que o departamento de futebol,não tinha essa estrutura que assegure a continuidade.

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