segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A criatura

Hulk é um futebolista fantástico. Qualquer análise que não acabe nesta conclusão é porque começou enviesada pela clubite. É o melhor futebolista a actuar em Portugal, quer pela qualidade técnica e física quer pela competitividade, não tenho dúvidas, e o maior mérito na dimensão futebolística que ele atingiu pertence ao Porto. O Porto trabalha bem os seus jogadores e, geralmente, quando eles não pegam é porque ou não querem trabalhar ou querem trabalhar numa perspectiva de pôr a equipa a trabalhar para eles em vez do contrário.
O maior mérito do Porto é a sua capacidade de trabalho desportivo. O trabalho anti-desportivo, que existe, é posterior. (E enquanto os adeptos dos outros clubes não compreenderem perfeitamente esta distinção continuarão a ser presas em vez de serem predadores).

A filosofia colectivista e unitária que sustenta a cultura desportiva do Porto tem um elemento primordial: a abdicação de uma parte importante do ego, por cada jogador, a favor do colectivo. O sacrifício de uma parte da sua individualidade a bem do que é melhor para a equipa.

Porque é que o cabelo amarelo do Hulk suscitou estranheza (além do óbvio mau gosto)? Porque é uma expressão de individualidade invulgar no Porto. O Porto inventou o cinzentismo no futebol português. Criou a imagem do futebolista inexpressivo, totalmente concentrado no jogo, ausente do que existe em seu redor, um homem de cassete pronta para os jornalistas, o micro-management da comunicação, tudo a bem de uma imagem espartana da equipa, de uma máquina de guerra, preparada para tudo. É uma forma de cultura, baseada mais numa ideia de defesa da cidade que de ataque, de conquista. É por isto que o Porto tem tanta dificuldade em ganhar glamour. O Porto alcançou resultados mas não a admiração que deveria ter alcançado como consequência natural desses resultados. Estamos a falar de um clube de província português, sem recursos, que, graças a um processo espontâneo de construção de sucesso, se torna numa espécie de gigante dos pequenos da Europa. Qualquer adepto europeu de futebol deveria estar apto a reconhecer o brilhantismo dos seus feitos. No entanto, o Porto não tem glamour. Porquê? Porque a cultura do Porto é uma cultura de supressão de personalidade, e são as personalidades, não as vitórias militares, que conquistam as pessoas.

Ainda hoje, se perguntarem aos adeptos mais velhos do Porto quais são os jogadores que eles mais admiram eles vão, quase sempre, buscar jogadores antigos, de tempos em que o Porto pouco ganhava, mas que tinham um carisma que os diferenciava. Assim como hoje, se perguntarem aos mais jovens, eles não ligam o clube à imagem de um ou mais jogadores mas à identidade colectiva – à equipa. Sim, o Deco, o Falcão, etc, mas todos eles secundários da ideia da equipa. Até o adepto vulgar se vê compelido a falar do colectivo quando tem de defender o seu clubismo. É um discurso monocórdico que homogeneizou o clube.

Tão importante como ganhar, para se conquistar corações, é a graça com que se perde. Para haver ligação emotiva tem de haver humanidade. A essência do ser humano é o erro, o disparate. Quem não vacila são as máquinas. Quem é que quer saber de uma máquina?


É curioso como o Porto teve de criar uma cultura contra-natura ao ambiente em que está inserido para ter sucesso. O Porto-cidade é a verdadeira cidade liberal de Portugal. É uma terra de alegria, de espontaneidade, de vivacidade, de profunda liberdade, de personalidade e de carisma. O Porto-clube é uma realidade obscura, fria, negativa, opressora, fechada, lítica. Não digo que seja certo ou errado – pelos resultados dir-se-ia que é assim que tem de ser – só digo que é o que é. Aliás, esta é uma filosofia que tem feito escola nos outros dois clubes grandes portugueses. Gerou-se a ideia de que, para se ser um campeão, tem de se ser feio, porco e mau. Enquanto não aparecer um conjunto de personalidades livres que consigam ganhar com continuidade não haverá razões para se pensar o contrário. Até ver, isto não é para quem ri, é para quem aguenta.

Qual foi o último espírito livre a singrar no Futebol Clube do Porto? Alguém cuja primeira imagem, aos olhos do público, seja um sorriso, alguém que gere uma empatia natural, que se sinta que está fora de uma unidade militarizada? Não me lembro.
O colectivismo é a fórmula de sucesso do Porto, mas também é a sua fronteira. Para crescer, verdadeiramente, para extravasar a sua dimensão provinciana, o Porto terá de se render, progressivamente, aos indivíduos.

Ao pintar o cabelo, ao sair do campo propositadamente amuado, o que o Hulk está a dizer a toda a gente é que já é maior do que aquilo.
É ele e mais dez, segundo o presidente. Está na selecção do Brasil, joga quando quer e como quer, ganha mais do que os outros, custou mais do que os outros, vale 100 milhões, tem os clubes todos atrás dele e, evidentemente (não esquecer este pormenor), o Porto só não foi campeão em 2010 porque ele foi alvo de uma injustiça, segundo a própria mensagem pública veiculada pelo clube. Foi só ele voltar que o Porto nunca mais perdeu. Por que razão objectiva é que Hulk não deveria pensar que está acima do clube em que joga?

Hulk não é propriamente uma personalidade radiante, mas é um indisciplinado natural – a quem o castigo aplicado após o caso o túnel da Luz, por sinal, muito ajudou.
                   (Olhando retrospectivamente, teria sido preferível para o Benfica, por exemplo, que o castigo não tivesse sido aplicado: o Porto não teria sido campeão de qualquer forma, Hulk não seria o jogador que é porque não teria grandes motivos para mudar a sua atitude negativa, o Porto não teria encontrado um álibi para essa época nem uma motivação extra para a seguinte e provavelmente, Hulk, nesta altura, já não jogaria em Portugal.)

A fase pós-castigo acalmou-o e atrasou a sua explosão de personalidade, mas ela, agora, é irreversível e o Porto não está preparado para aclimatar um jogador assim. A criatura tornou-se maior que o criador.

A manutenção de Hulk após esta época – que é muito difícil em termos económicos –, ou de qualquer outra personalidade anormal, significaria que o Porto estaria a abrir uma outra dimensão de si próprio. Até certo ponto esse crescimento é inevitável. A partir de certo ponto a única forma de crescer quando uma cultura cristaliza é inserir elementos estranhos à tradição, liberalizar os costumes e esperar pela mistura de diferenças. Não é uma ciência oculta, é o processo social histórico.

Mas o Porto não vai fazer isso. Porque há outra tendência histórica que resulta directamente da natureza humana: a que diz que quando a realidade é rica, quando há muito a perder, a disposição do homem é conservadora, e não inovadora. Quando preza o que tem, o homem tende a não querer mudar, a não trocar o que julga certo pelo incerto. E o Porto tem muito a perder. Na verdade, tem tudo a perder, pois todo o seu sucesso desportivo real foi alcançado através do actual método a que podemos chamar de estóico.

Ninguém no Porto quer realmente manter Hulk na equipa para o ano que vem. É inseguro. É um risco. As coisas funcionam bem sem Hulks, como se comprovou nos últimos vinte anos. O Porto não vai liberalizar os seus costumes. E, como tal, vai-lhe acontecer o mesmo que aconteceu a todas as civilizações que passaram a seguir um instinto conservador: vai estagnar e, posteriormente, assim que uma civilização alternativa (Benfica ou Sporting) encontrar uma forma de evolução inovadora, cair em decadência. Até à vulgaridade. Como aconteceu ao Benfica depois dos anos 70, quando o Porto, através de Pedroto, encontrou a dimensão seguinte do profissionalismo do futebol português.

4 comentários:

  1. Esta foi a melhor descrição que eu alguma vez li sobre o que é o FCP. E concordo com ela. Têm, como muito bem diz, a cultura da supressão e da homogeneização da personalidade. É uma cultura própria das ditaduras... mais duras. O que de certo modo é contra natura, já que o desporto é uma fonte de alegria, de espontaneidade e de empatia entre os humanos.

    O FCP lembra-me a antiga Alemanha Oriental, uma ditadura de robots humanos, lavados ao cérebro. E o Hulk, como representação dessa imagem, lembra-me um daqueles atletas alemães que nas competições olímpicas, inchados pelo doping e pela manipulação, iam ganhando em nome e para orgulho do regime.

    Para se conseguir um regime desta natureza dentro de uma cidade que, como muito bem diz, é liberal, espontânea de vida e de liberdade só com uma ditadura. E foi isso que conseguiram implantar dentro da cidade do Porto. Até um exército à disposição têm para manutenção "da ordem". E um ditador, papa ou padrinho, que não admite nem permite discussão.

    Existem muitos testemunhos desta situação. E ai de quem vá contra a ordem estabelecida. A própria polícia e o poder judicial local estão nas suas mãos. E branqueiam-lhe os atropelos e os crimes cometidos, em nome de um ideal mais elevado. A luta contra os mouros, contra o Benfica, o símbolo do centralismo, o seu inimigo externo sobre o qual as vitórias lhes lavam as agruras da alma causadas pelas suas frustrações e pelos seus complexos de inferioridade que já duram há gerações.

    Estarei a exagerar? É possível. Mas, por outro lado, lembra-me também o regime da Máfia, uma sociedade secreta, uma ditadura dentro de um estado democrático, que sobrevive graças ao sistema da omertá. Aqui o Papa chama-se Padrinho. Tem piada que a Máfia foi criada como um sistema de protecção contra inimigos externos que assolavam as costas da Sicília. Será mera coincidência?

    Por isso, e como muito bem diz, "é baseada mais numa ideia de defesa da cidade que de ataque, de conquista."

    ResponderEliminar
  2. Na generalidade, excelente texto analítico.

    Quanto ao Hulk e seguindo na mesma direcção comparativa do Manuel,que dá como exemplo,"...um daqueles atletas alemães que nas competições olímpicas, inchados pelo doping e pela manipulação,iam ganhando em nome e para orgulho do regime.", a sua imagem lembra-me (na mesma linha de pensamento)a do monstro cinematográfico criado pelo Dr.Frankenstein que,ao perceber a sua "superior mais valia" se rebela e recusa submissão.

    Como se pode comprovar através da história da humanidade,Por muito longas sejam as ditaduras, um dia elas chegam ao fim.

    ResponderEliminar
  3. Mais um texto excelente. A caracterização do Porto é precisa e certeira.
    Como todas em as ditaduras, a única personalidade que pode brilhar é do Grande Líder e isso acontece na prática. De facto, para a massa adepta mais ignara, o ditador é o Rei Sol, a quem tudo é permitido, não só pelos adeptos, mas até pelo poder político que, regra geral o teme, e até pelo poder judicial, onde encontrou sustentáculos para resistir ao ataque que lhe foi feito no Apito Dourado.

    Como todas as ditaduras, à medida que o tempo passa, a coisa passa a justificar-se por ela própria. Na minha visão cínica, a defesa da cidade não foi mais do que um pretexto, uma ideia central, para congregar o apoio da região em torno do clube, explorando um sentimento real que existe não só no Porto, mas que no Porto é reforçado por esse carácter liberal, empreendedor, que se vê muitas vezes realmente limitado pelo centralismo lisboeta.
    Como todos os pretextos, a ideia da defesa do Porto e do Norte, já produziu os seus efeitos e perdeu importância, até pelo sucesso de Rui Rio, líder político da cidade, repetidamente vencedor eleitoral, contra a opinião do ditador. A insistência nela caiu, dada a falta de fundamento que lhe vem do "fenómeno" Rio, mas deixou de ser relevante porque o sucesso do "regime" auto-justifica-o. O regime, como todos os regimes de natureza similar, passou a ser o aspecto essencial.

    A natureza do regime, os seus métodos, a repulsa que ele provoca, não devem, no entanto, como muito bem refere o texto, deixar que se perca a noção de alguns aspectos essenciais. A capacidade de trabalho desportivo é uma delas. Por trás dessa capacidade de trabalho desportivo, há uma organização que combina profissionalismo puro e duro, com a crença messiânica nas qualidades do líder e da respectiva liderança. Os triunfos não assentam apenas na viciação do sistema, mas no uso dessa corrupção para sustentar desempenhos desportivos que seriam sempre de qualidade, mesmo que não existisse essa viciação. Aliás, não existisse essa competência desportiva, a corrupção não permitiria o sucesso desportivo continuado que tem experimentado.

    Sobre o Hulk, admitindo alguma (ok, talvez mais do qua alguma) distorsão clubística, acho-o pouco inteligente. Sempre o achei. Acho-o inconstante, capaz de coisas fantásticas (menos frequentemente) e capaz de fazer coisas completamente absurdas, como resultado da incapacidade de resistir à pressão de ter de resolver. Duvido, sinceramente, que alguém com a inconstância do Hulk, possa ser apontado como o melhor futebolista a actuar em Portugal. Eu não o acho.

    Abraço

    ResponderEliminar
  4. Chama-se a isto uma pianada a oito mãos!

    ResponderEliminar