sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Enganar o Porto

A superioridade técnica (pela boa escolha de jogadores), física (pela mesma razão e pelo bom trabalho nos treinos) e psicológica (pela confiança acumulada que os bons resultados acarretam) que o Porto tem sobre todas as outras equipas portuguesas, assim como o facto de as equipas do Porto serem construídas para competir no campeonato português, faz com que seja apenas por acidente que o Porto não ganha. Que tenha sido apenas o ano passado que tenha ficado uma época inteira sem perder é que é de espantar. Outras vezes passou muito perto.

Quais são as condições para acontecerem esses acidentes? Considerando apenas os jogos com pressão competitiva, ou seja, descartando aqueles jogos em que o resultado já não conta para nada, normalmente porque o Porto já leva mais de dez pontos de avanço sobre os outros, são as seguintes:

- no caso das equipas muito inferiores, o momento dos golos é muito importante. Marcar um golo nos primeiros vinte minutos pouco ou nada significa porque, normalmente, a diferença que o Porto tem para as outras equipas é de três ou quatro golos, o que lhe falta é a motivação ou a concentração para os aplicar.

- uma noite de muito azar para o Porto. Às vezes acontece. Lembro-me de uma derrota por 1-0, há muitos anos, nas Antas velhas, com o Famalicão (no final do jogo o repórter Paulo Martins foi agredido em directo por um adepto do Porto), em que o Porto rematou umas 30 vezes à baliza e podia rematar mais 30 que não conseguiria marcar. Normalmente o Porto tem um ou dois jogos destes por ano. Há dois anos foi com o Belenenses. No ano passado não houve nenhum.

- um árbitro de Marte, ou do Benfica. Ambos são raríssimos. A questão dos árbitros é muito mais fácil do que parece. A prejudicar deliberada e premeditadamente o Porto não há. Às vezes há árbitros que pertencem, ocasional ou sistematicamente, à facção vermelha e que, vendo a oportunidade no jogo (e apenas pelo seguro) tentam subtrair um ou outro pontinho ao Porto. Mas, regra geral, como é pouco seguro que o resultado vá mesmo ser negativo no fim, protegem-se. Os outros, os que estão a meio da carreira profissional ou a começar na primeira categoria, protegem-se sempre e, por isso, em caso de dúvida, têm poucas dúvidas em decidir a favor do Porto. De vez em quando enganam-se, ou esquecem-se, e às vezes dá bronca: o Porto empata, vem para os jornais e vinga-se nos bastidores, a seu tempo.

A questão dos árbitros é relativamente fácil. Há cerca de trinta anos a coisa estava relativamente equilibrada. Pinto da Costa, João Rocha e Fernando Martins tinham um poder de influência semelhante. Com a saída de João Rocha e, posteriormente de Fernando Martins, a coisa desequilibrou-se. Passou a ser Pinto da Costa contra Gaspar Ramos, que, pelo Benfica, manteve, durante algum tempo (mais ou menos cinco anos), algum do poder acumulado do Benfica entre os árbitros, mas já em perda. Pinto da Costa ganhou, primeiro, uma dianteira curta, mas construiu sobre ela. Os anos do desequilíbrio foram os primeiros da década de 90, com o treinador brasileiro Carlos Alberto Silva. O Porto foi bicampeão mas, sobretudo, cimentou a base do domínio total sobre a arbitragem para os vinte anos seguintes. Eram os tempos de José Silvano, José Guímaro, Carlos Calheiros, Martins dos Santos e muitos outros. O Benfica, do seu lado, tinha figuras secundárias como João Mesquita, de Braga, e poucos mais. O Porto teve uma jogada de poder decisiva ao passar a controlar, através da Associação de Futebol do Porto, a presidência do Conselho de Arbitragem da Federação (Lourenço Pinto, o advogado de Pinto da Costa, foi presidente do CA durante vários anos), controlando a classificação e, logo, as promoções, descidas e subidas ao escalão internacional dos árbitros. A corrupção deixou de ser apenas uma questão casuística e passou a ser, de facto um «sistema», como Dias da Cunha bem o adjectivou. O grande poder do Porto passou a ser não só o de pagar a árbitros como o de controlar quanto dinheiro recebiam e o que lhes aconteceria em termos de carreira.

O Benfica, envolvido em lutas internas, foi engolido, como o Sporting já tinha sido antes. A sua resistência ocorria em situações pontuais, de nítido benefício, mas claramente insuficiente para equilibrar uma luta decidida á partida. Criou-se um ciclo vicioso, em que o sistema alimenta o sistema até que o sistema já não precisa de ser mais alimentado porque se alimenta a si próprio. Quem entra sabe como as coisas funcionam, onde está o perigo, onde esta a recompensa, e como as coisas têm de funcionar para que todos fiquem na paz do senhor. Os bons árbitros, com capacidade para singrar, sentindo que não têm quem os proteja – e o caso do Apito Dourado foi o culminar da impunidade, uma vez que, na prática, as consequências para o órgão vital do polvo (o Porto, o único clube que realmente prosperou com o sistema, uma vez que o Boavista sempre foi um projecto pessoal e temporário dos Valentins) foram nulas – protegem-se a eles próprios, sabendo que um erro realmente importante provocará inevitáveis represálias (como na máfia, no futebol português a vendetta é segura, e o mais eficaz processo de coerção). Os outros, fazem pela vida. Nem é pelas prostitutas ou pelas viagens ao Brasil, é só para poderem ficar na primeira categoria.

Não há grandes segredos no sistema. Como se disse, ele alimenta-se a si próprio, porque as pessoas olham para a realidade e percebem onde está a força e onde está a fraqueza. A entrada em cena de Luis Filipe Vieira provocou um início de golpe de estado que, apesar do «campeonato do Veiga», roubadíssimo (mas ao Sporting…), e do de 2010 (em que o Porto cometeu hara-kiri nas primeiras dez jornadas e o Benfica apareceu com uma força que ninguém esperava, muito menos Pinto da Costa, depois de ter sido terceiro na época anterior), ainda não deu em nada. O poder, até ver, mantém-se intocado. Já não é tão opressivo porque se entranhou, culturalmente, no futebol português e as coisas estão mais ou menos bem oleadas. Tal como o Porto conseguiu construir, com vitórias muitas vezes baseadas mais na força dos árbitros que na capacidade real dos jogadores, uma equipa sólida, também conseguiu conquistar alguns dos melhores árbitros. Duarte Gomes, Pedro Proença e um ou outro são relativamente imparciais. Olegário Benquerença, Carlos Xistra, Artur Soares Dias, Rui Costa e muitos outros, pertencem à esfera portista. O Benfica tem, ainda, nomes relativamente secundários, como João Ferreira, e vai, através da pressão e da tentativa de controlo de alguns órgãos dirigentes, tentando equilibrar as coisas. O Sporting, definitivamente, não tem ninguém, e foi por ter perdido o comboio há muito tempo que também nunca mais foi campeão. A última vez em que o conseguiu foi quando, coincidindo com anos maus do Porto, recebeu essa benesse. Foram os anos em que Roquette e Dias da Cunha, depois de terem gritado pelo 25 de Abril no futebol português, passaram a ir jantar ao Porto com Pinto da Costa de forma a urdirem uma aliança contra João Vale e Azevedo. Ganharam dois campeonatos e, depois disso, chouriço.

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