quarta-feira, 11 de abril de 2012

O que faz falta

Hoje vi o jogo do ano da Alemanha, Dortmund-Bayern, e a propósito disso houve lá algumas coisas que têm a ver com outras coisas, cá nossas, e algumas bem actuais, de que vale a pena falar. Antes de mais, não me lembro de ver uma falta. Não quer dizer que não tenha havido, mas se houve dez em cada parte é muito. Num jogo com alemães, polacos, russos, japoneses, brasileiros, argentinos, africanos, marcianos e orangotangos.

Porque é que isto é um sinónimo de profissionalismo?

Porque, ao nível de que estamos a falar (os dois primeiros classificados do campeonato alemão) uma equipa que não faz faltas é uma equipa que a) sabe defender, quer em termos posicionais, quer em termos de capacidade de antecipação, quer em termos de perceber que uma falta é apenas um alívio passageiro pois resulta, logo a seguir ou mais tarde, num esforço acrescido para o físico e para a concentração, e que b) tem estofo físico e capacidade de concentração no jogo suficientes para aguentar um ritmo elevado e constante com poucas paragens.

O factor (a) releva boa preparação táctica colectiva, que só se alcança com bom trabalho. O factor (b) só se alcança com bons métodos de treino e com dedicação dos jogadores a esse treino.

Como não percebo nada de futebol, sirvo-me destes princípios que sei que são seguros para fazer as minhas leituras do jogo, e uma das maneiras que tenho para tentar perceber se uma equipa é mesmo boa ou se só parece é a facilidade e a regularidade com que faz faltas ou como as usa como instrumento estratégico durante um jogo.

Depois de um jogo quase sem faltas, jogado sempre a abrir e com as duas equipas a atacar constantemente, nos últimos 15 minutos houve um golo, um penálti falhado, duas ou três bolas aos postes, falhanços de baliza aberta e contra-ataques no minuto 90. Houve um hino ao futebol, que acabou 1-0, entre duas equipas que, independentemente dos jogadores que venham a ter na próxima época, se encontrarão originalmente em vantagem sobre 80 por cento das equipas da Champions pelo simples facto de possuírem sobre elas uma vantagem táctica e física de base.



Segundo ponto:

Depois do golo, o treinador do Dortmund  - um tipo de boné, barba por fazer, cara de chavalo, a mastigar pastilha elástica de boca aberta, uma espécie de adepto no banco – virou-se para os adeptos e, cheio de expressividade, fez um enorme gesto circular, no peito, em redor do emblema, que me pareceu significar «campeões», mas que também poderia querer dizer «coração». Para o caso, é pouco relevante. Interessa a espontaneidade do gesto. O jogo estava a decorrer, o Dortmund poderia perfeitamente não o ganhar (aliás, esteve muito perto) mas o treinador, mesmo assim, nem pensou nisso e limitou-se a exprimir-se livremente, sem complexos. É apenas um caso de livre pensamento num futebol em que as personalidades não são castradas mas aceites e, por vezes, mesmo acarinhadas – numa sociedade que o nosso preconceito idiota toma por sinistra e opressora, note-se.

Em Portugal, se fizesse aquilo (e se o fizesse e depois perdesse, então, nem se fala) o homem ficaria marcado como idiota, como mau profissional, como um estroina indigno de treinar uma equipa de futebol. É claro que, na prática, estamos a falar do treinador campeão da Alemanha, que não pode ser um mau profissional porque qualquer treinador que ponha uma equipa a jogar daquela maneira tem de ser bom.

Em Portugal, em relação aos treinadores, temos o complexo do caudilho. Um treinador, para ser respeitado, para ser considerado bom, tem de ser intolerante, tacanho, inflexível, absoluto e, obviamente, intransigente. É coisa que deve vir do tempo do Szabo e quejandos, dos anos 30 e 40, passando pelos Guttman, Otto Glória e Pedroto que, mais tarde, fez a escola à portuguesa.

Ouvimos o Jesus a dizer «nunca expliquei uma opção a um jogador» ou o Paulo Bento a dizer «não tenho que falar com ninguém» e ficamos convencidíssimos que temos ali um grande líder, que não mostra os dentes aos jogadores.

Ouvimos treinadores estrangeiros a dizer que as suas equipas têm poucas hipóteses de ganhar um jogo, ou um campeonato, a não dizer banalidades, e ficamos em estado apoplético, siderados por não serem imediatamente repreendidos pelos seus patrões.

Tretas.

Com a liberdade cresce a responsabilidade. Parece um chavão mas é verdade.

Incrivelmente, para nós, vemos, muitas vezes, equipas inferiores em todos os sentidos do jogo baterem-se de igual para igual com as nossas (sobretudo as do Norte da Europa), quando a única dimensão em que os seus jogadores são superiores é na que fica fora do campo: na dimensão cívica, no que são como cidadãos.

A responsabilidade individual que lhes é exigida fora do campo é transposta para dentro do campo e, graças a ela, assumem o seu lugar na equipa e fazem o papel que lhes é exigido.

Quando passamos para a realidade americana esse sentimento é exacerbado. Assistimos ao cúmulo da liberdade e ao cúmulo da responsabilização. Mesmo os atletas excêntricos são os que, muitas vezes, são os primeiros a assumir a responsabilidade em campo. Corra bem ou corra mal. A questão é a da liberdade.

As equipas portuguesas não são equipas piores que a generalidade das equipas europeias, mas são equipas menores, e são-no por causa do défice cívico.

O grande salto que o jogador português dá quando vai para o estrangeiro não é o de «passar a correr mais», como se costume dizer: é o de ficar sozinho com o seu próprio destino num ambiente que não condescenderá com as suas carências afectivas. Deixar de ser apenas um jogador da bola para passar a ser um cidadão.

O treinador caudilho é um dos últimos mitos do futebol português a terem de cair para podermos dar o salto. Para isso acontecer tem de se dar uma conjugação de quatro factores: aparecer o necessário treinador desempoeirado; coincidir o treinador desempoeirado com um dirigente suficientemente forte para resistir à tacanhez da crítica e dos adeptos; aparecerem os resultados; ser num dos três grandes. Quando tudo isto acontecer ao mesmo tempo, é possível.

A equipa que for a primeira a conseguir fazer isto terá vantagem sobre as outras.



Para acabar, o Cristiano Ronaldo ganhou, hoje, o campeonato espanhol a não ser que os outros o percam nas próximas semanas.

O Real, que está numa quebra física profunda, esteve à beira do desastre. Beneficiou de dois factores: o Atlético de Madrid é como o Benfica, corre muito e joga pouco; o Ronaldo é a definição de um jogador de classe mundial, capaz de fazer num jogo decisivo o que faz num treino.

Mas depois de ver a condição física actual de Bayern e Real estou inclinado a dar o favoritismo na meia-final da Champions aos alemães.

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