quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O grande desafio

«Todos os dias, na savana, um leão tenta caçar uma gazela. Todos os dias, na savana, uma gazela tenta fugir de um leão. Quer sejas um leão ou uma gazela, quando o sol nasce na savana é bom que estejas a correr.»

Frase inscrita no balneário de Maurice Green, ex-recordista mundial dos 100 metros

O sentimento mais natural de um benfiquista quando o Benfica joga nas Antas é o medo. O trauma induz o medo, e a experiência do Benfica nas Antas durante os últimos trinta anos (pelo menos) é traumática. Não há razão para não ter medo. O mais provável, nestas décadas, tem sido perder. No ano passado o Benfica foi humilhado por 5-0. O estádio do Porto é, literalmente, por uma conjugação histórica e conjuntural de factores, o pior sítio do mundo para o Benfica jogar. É mais a fácil para o Benfica jogar no Camp Nou que no estádio do Dragão. Reconhecer este medo é o primeiro passo fundamental para o Benfica se tornar novamente melhor que o Porto. A negação do problema implica também a negação da resolução do problema.

No futebol, como na vida, só há duas abordagens possíveis: ou se é presa ou se é predador. Não existe um meio termo e há lugar para os dois.

Há, também , diferentes tipos de presas e diferentes tipos de predadores. Cada um tem as suas características.
Há presas que apostam na velocidade (as gazelas), outras na camuflagem (centenas de insectos), outras na agressividade (os porcos-espinhos, ou os sapos venenosos, por exemplo), outras na organização e no número (os cardumes de peixes, ou os bandos de pássaros)
Da mesma forma, apesar de um predador ser capaz de utilizar muitas armas e estratégias em simultâneo, há os predadores que são mais furtivos (o tigre, a aranha), ou mais ostensivos (os tubarões, os crocodilos), os que trabalham isolados (o leopardo), ou em grupo (os leões), há os oportunistas (as hienas), etc.

Independentemente das características, há, no entanto, uma coisa fundamental que diferencia uma presa de um predador: a atitude. A forma como reage. A sua abordagem ao meio que o envolve.
 
No futebol, como em tudo o que há, existem os clubes que nunca deixarão de ser presas, porque não têm ou a dimensão, ou a agressividade natural, ou não existem num contexto específico que lhes permita serem predadores. Para estes clubes, a sobrevivência vai-se garantindo pela mera resistência, encontrando soluções para se defenderem da extinção e prolongarem a sua existência.
E depois há os outros clubes, os predadores. Um predador puro é um predador puro, e um grande clube português, como o Benfica, o Porto ou o Sporting, são predadores puros. A sua questão não é a sobrevivência, não é a mera subsistência – a sua questão é o domínio, quer sobre as presas quer sobre os outros predadores. Quando falamos de Benfica, Porto ou Sporting já não falamos apenas de jogo, de desporto: falamos de poder, de força e de política.

Não tenhamos ilusões: o Porto não se tornou no mais forte clube de Portugal por passar a usar estes ou aqueles jogadores, este ou aquele estilo de jogo, este ou aquele discurso, este ou aquele sistema mafioso, esta ou aquela solução – o Porto começou a tornar-se no que é actualmente quando, por causa de Pedroto, deixou de ser caça para passar a ser caçador. E entendamo-nos: o Porto nunca foi caça, apenas se permitiu pensar que era,  por isso andou décadas a tentar sobreviver.

Neste sentido, a revolução benfiquista já começou. A mentalidade do Benfica está a mudar – de outra forma, não tanto por causa de uma individualidade catalisadora, como o Porto, mas mais por uma espécie de osmose colectiva, mais lenta, menos ostensiva, mas, acredito, mais passível de se prolongar no tempo por estar a ser construída sob alicerces diferentes, mais pluralistas, com maior capacidade de vir a eliminar internamente anti-corpos. (O unanimismo tem tendência para consumir o sistema por dentro quando o factor de unanimidade desaparece.)

Os tempos estão a mudar. Mas há um factor fundamental que o Benfica vai ter de enfrentar neste processo: os «alfas», os dominantes, raramente caem de velhos. Os pretendentes, geralmente, não lhes dão tempo para isso. Deixar o anterior líder cair de velho não é uma verdadeira solução, porque qualquer solução que passe por aí resulta num líder mais fraco e, logo, mais vulnerável que o anterior. Uma liderança ganha pela fragilidade do inimigo é uma liderança débil e inevitavelmente curta. Ou seja, se o Benfica não bate o «pintismo» enquanto este está no seu apogeu, na sua forma máxima ou perto disso, o pintismo  (uma nova forma de pintismo, quer do Porto quer do Sporting) voltará a conquistar o poder. E o Benfica só o reconquistará, de facto, quando conseguir ser mais forte que os pintismos.

A solução para o Benfica passar a ser melhor que o Porto não é mudar de atitude, mas mudar de soluções, mantendo a atitude, porque só há uma atitude possível para o Benfica: uma atitude de força ostensiva e de desafio claro. Existe um factor de nobreza que está implícito no poder e na política, como no desporto. Os oportunistas sobrevivem mais tempo – as verdadeiras rainhas da savana são as hienas, não os leões – mas falta-lhes nobreza. Um campeão tem de ser nobre. O Homem não está disposto a aclamar um campeão que não tenha nobreza. A aturar, sim. A admirar, não.

Dito tudo isto, imaginemos que o Porto é um grande e forte crocodilo no pântano que é o futebol português, e que o Benfica é o crocodilo que quer passar a ser o chefe do pântano. O Benfica pode ganhar uma batalha ao crocodilo grande fingindo que é um aligatór inofensivo e mais pequeno, enganando-o, apanhando-o desprevenido. Mas não conseguirá ser o chefe do pântano dessa maneira, porqe depois o crocodilo acorda, abre a boca e arranca a pequena cabeça do aligatór. E o Benfica precisa de ser o chefe, não lhe chega apenas ganhar uma batalha. Essa é a natureza do monstro.

Ganhar um jogo no Porto de dez em dez anos é ganhar um jogo, eventualmente ganhar um campeonato graças a esse jogo. Ganhar sete ou oito jogos em dez, com goleadas à mistura, e sem que se repare, mesmo nas pontuais derrotas, numa inferioridade em relação ao adversário, apenas em azar ou nas contingências daquele jogo específico, é ser melhor.

O problema do Benfica não foi ter levado 5-0 nas Antas. O Real Madrid, o Barcelona, o Manchester, o Milan, todos os grandes clubes do mundo, nas suas piores alturas (e alguns até durante as melhores), já foram goleados pelos seus maiores rivais. O problema foi ter levado 5-0 sem ter, sequer, tentando, fazer uma demonstração de igualdade na força, tentando fugir entre os pingos da chuva, não conseguindo fazer do medo coragem.

De todos os jogos que o Benfica faz durante uma época, há dois – os dois jogos contra o seu verdadeiro adversário – em que só pode ganhar, de facto, no verdadeiro sentido da palavra (conquistar, superar, vencer, suceder por inteiro), se não alterar absolutamente nada em relação ao que é a sua melhor equipa e a sua melhor estratégia.

Ganhar utilizando subterfúgios, esquemas, malandrices, ilusões, é ganhar um jogo e manter um statu quo.
Ganhar valorizando apenas a sua identidade, a sua força, a sua capacidade adquirida, ganhar mostrando que o seu melhor é melhor que o melhor que o adversário, é alterar o statu quo. É dizer: «Nós não estamos apenas melhor: nós somos os melhores. E agora vocês têm um problema.»
Não há segredos nenhuns. Um duelo entre pretendentes tem de ser duro, agressivo, inclemente, o que for, mas tem, sobretudo, de ser simples, suficientemente simples para tornar a verdade evidente a todos.

Independentemente do resultado, o Benfica perderá o jogo de sexta-feira se o tentar ganhar apenas com recurso a artifícios tácticos ou estratégicos, a adaptações da treta ou apenas à sorte do jogo ou a uma decisão do árbitro.

O Benfica ganhará o jogo se conseguir um resultado positivo recorrendo à sua melhor equipa, jogando o seu jogo e assumindo a sua natureza de predador, sem vergonha, com medo, claro, com adrenalina, mas com coragem para vencer esse medo.

Se fizer isto e perder, o Benfica terá perdido apenas uma batalha, e não terá de mudar a sua atitude, apenas precisará de se tornar mais forte para, com a mesma filosofia, voltar a desafiar o campeão daqui a seis meses, ou daqui a um ano, ou daqui a dezoito meses, e assim sucessivamente até se ter tornado mais forte, e não apenas mais oportuno. Não há drama numa derrota quando uma derrota se resume à falta de força. Força ganha-se. Uma derrota torna-se dramática quando resulta da falta de espírito.

2 comentários:

  1. Excelente análise, Hugo. De facto, a atitude de predador alfa vê-se a léguas no Porto e o Benfica, nos jogos com eles, dificilmente tem deixado de assumir uma postura de completa ausência de resistência psicológica a toda a pressão exercida pelo Porto, nas mais variadas vertentes. Importa, para ganhar, que o Benfica deixe de se portar como o cordeiro a sacrificar, resignado, esperando que o jogo acabe depressa, e com o menor prejuízo possível, mas garantidamente prejuízo, imediatemente assumido assim que entra em campo.
    Esta é uma boa altura para isso, também. Uma atitude verdadeiramente de combate, pode perturbar uma equipa do Porto que, nesta altura, não parece particulamente confiante em si própria. Não faltam disso sinais.

    Abraço

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  2. Precisamente. Esta seria a altura para o Jesus ser atrevido. Mesmo que venha a perder.

    Abraço

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