sábado, 17 de setembro de 2011

Apito envenenado (II)

A parcialidade da imprensa desportiva portuguesa pode chocar as mentes mais impressionáveis, até porque é evidente, mas a verdade é que a parcialidade da imprensa nunca foi um problema. Pelo contrário. A parcialidade implica a existência de diferentes partes, e o facto de haver imprensa parcial é uma garantia de que as partes não estão silenciadas e têm voz na opinião pública.

No futebol português essas partes e as respectivas tribunas estão bem identificadas. Bola, Jogo e Record, com uma habilidade relativamente engenhosa, conseguem servir Benfica, Porto e Sporting de forma eficaz, sem alienar em excesso as outras quotas do mercado.
Desde que foi inventada que a imprensa é parcial. Aliás, a verdadeira imprensa foi inventada exactamente para ser parcial. A imprensa histórica, real, é a do panfleto, o resto é negócio.
O problema da imprensa não é quando é parcial – é quando se torna cúmplice na desonestidade.

Parcialidade acaba sempre por resultar em cumplicidade, mas o tipo de cumplicidade que se estabelece é fundamental. Quando a imprensa insiste em ser cúmplice mesmo quando, obviamente, está do lado errado da verdade, então aí a imprensa tem um problema real para resolver, e a sociedade onde essa imprensa existe também.


Em Portugal, a imprensa desportiva apresenta algumas características distintivas:

- O aquartelamento dos jornais com os três grandes clubes.
Cada clube tem o seu canto, a coluna para o «intermediário entre a comunicação do clube e o público do clube», um senador, um general opinador, vários tenentes opinadores, uma página de mercado para a valorização de jogadores que, à vez, é feita para interesse do clube e (cultura da fonte oblige) para o interesse dos empresários, uma página de estatísticas inúteis e uma página de masturbação a seco.

Nos dias de jogo, as análises são invariavelmente escritas com uma preocupação benévola e desproporcionada, amplificando-se as coisas boas e diminuindo-se as más, tudo para que o adepto fique bem disposto. No caso de derrota do clube, é inevitável que o elo mais fraco – o árbitro – arque com boa parte das culpas.

Os «quartéis» dos clubes são pensados e executados de maneira a favorecer, geralmente, o interesse do clube, em termos de regime vigente, ou o ego dos adeptos desse clube.

A quantidade de vezes que o termo «cláusula de rescisão» foi escrito nas páginas dos jornais durante os últimos anos, apesar de nunca (um vez? duas vezes? em vinte?) um jogador ter saído pela dita cláusula, é significativo. A cláusula faz bem a toda a gente: ao adepto, que se quer convencer a si próprio, e ao clube, que assim tenta inflacionar o jogador. Como tal, falar em cláusulas é trigo limpo farinha amparo para os jornais.

Em troca, os clubes alimentam os jornais. Ou, pelo menos, convencem-nos de que eles precisam de ser alimentados.



- Exploração da marca Benfica como principal factor de vendas e de receitas para os jornais.

Mesmo o Record e o Jogo, tentando ao mesmo tempo jogar com Deus e com o Diabo, esmifram até ao tutano os ossos do Benfica. São tão solícitos a agigantar o fogo como, depois, a recolher os cadáveres. Isto porque quer uma quer a outra parte do processo vendem, além de ajudarem Sporting e Porto em termos políticos e mediáticos. (Também fazem isto com os outros, mas a uma dimensão muito menor). As expectativas criadas pelos jornais não correspondem, geralmente, às expectativas criadas pelo adepto real do Benfica – que, na sua maioria, é esperançoso mas sensato e já viu muito futebol – mas a manobra não tem riscos, uma vez que, como as únicas expectativas reais são as que a imprensa publica na primeira página, não há problema em dizer que a equipa não esteve à altura das expectativas (criadas pela imprensa).

O ideal, para a imprensa, é quando aparecem os próprios dirigentes do Benfica a dizerem disparates do género da «equipa maravilha». Nesses casos, os jornais assumem que, se o próprio dirigente é estúpido, não têm de ser eles a serem sensatos.

Para praticamente todos os adeptos do Benfica com alguma inteligência e com experiência, conhecedores de futebol, as possibilidades do clube ser campeão este ano são escassas, dada a disparidade de categoria para o Porto. Acabar em segundo não seria nada de extraordinário. Seria, aliás, racionalmente, o mais normal. Mas, nos jornais, se o Benfica não ganhar o campeonato este ano, haverá, certamente, uma crise profunda para explorar, cada um à sua medida, cada um à medida dos interesses que defende – Para O Jogo a manutenção do statu quo, para o Record o projecto de ultrapassagem do Sporting ao Benfica, para a Bola o simples desespero de ter perdido outra vez sem saber bem o que fazer para voltar a ganhar.



- Institucionalismo e ausência da investigação.

A imprensa portuguesa é extremamente conservadora. A sua perspectiva é sempre a da defesa das instituições, e raramente a de as desafiar. Por isso é que mais de 90 por cento do conteúdo de um jornal é composto por um discurso oficial ou oficioso, que poderia perfeitamente ter sido escrito pelos próprios departamentos de comunicação dos clubes, das federações, etc.

O culto do treinador e do clube, a secundarização do papel do jogador (por exemplo, as reacções ao caso Ricardo Carvalho) são outros sintomas desse institucionalismo.

Uma boa parte deste institucionalismo – que é contrário ao espírito de liberdade de imprensa e que funciona como uma espécie de censura prévia por sugestão e não-coerciva – resulta da má qualidade dos jornalistas e da incapacidade financeira dos jornais. Gastar recursos em investigação é demasiado caro, sobretudo com um ritmo diário de edição, em que as páginas têm de ter coisas para ler. Os recursos, que são limitados, são concentrados na quantidade e não na qualidade. O resultado é que o jornalista acaba por relatar o que tem tempo (e, geralmente, vontade) de ouvir, sem aprofundar.



Este cocktail mórbido transformou-se em enxofre quando se lhe juntou mais um ingrediente: a incapacidade da imprensa em reconhecer a importância histórica do Apito Dourado.



Uma imprensa deixa de ter valor público quando, num caso tão flagrante como o do Apito Dourado, não consegue forçar uma revolução. Não o conseguiu porque foi fraca, porque se deixou corromper durante demasiado tempo para, no momento da verdade, ter a força suficiente para se impor, não conseguindo criar uma opinião pública suficientemente forte para lidar com a dimensão do problema.

Os directores dos jornais darão muitas desculpas, apresentarão muitas justificativas para a imprensa ter perdido o seu estatuto de quarto poder (porque não tem, afinal, poder nenhum) nessa altura, falarão de condicionantes económicas, de literacia, do país da cunha, de mil e uma coisas, mas não dirão, provavelmente, o essencial: que o único problema real da imprensa desportiva portuguesa foi ter confundido parcialidade com promiscuidade, e de não se ter conseguido afastar suficientemente da porcaria para se conseguir limpar.

A imprensa desportiva portuguesa tornou-se obsoleta. A sua imagem está gasta e a insistência na exploração do tema da arbitragem, que é (como se vê pelas dúzias dos programas dos paineleiros nas televisões) o último catalisador de audiências à mão de semear, baixou-a ao nível da conversa de tasca, por um lado, e por outro tornou-se igualmente inócua. Afinal, uma imprensa que bate e rebate no tema da manipulação de resultados, defendendo, pelas palavras dos seus editores, a transparência e a vitalidade do futebol nacional, o que é que fez quando, finalmente, teve a oportunidade de agarrar com as duas mãos?

1 – Escondeu-se, primeiro. Fez de conta que não estava a acontecer nada, atirou o tema para as últimas páginas enquanto pôde (por desconfiança, por medo ou por pura incompetência) e, mesmo depois do processo estar em andamento, foi só quase por não conseguirem fugir mais que atiraram o tema para as primeiras páginas. O grosso do trabalho jornalístico e das revelações relativas ao Apito Dourado acabou por ser feito pela imprensa generalista (Correio da manhã, Público, Expresso e outros).


2 – Encolheu-se, depois, entregando a cobertura do caso a jornalistas fragilizados, quer por serem naturalmente frágeis, quer por residirem na cidade do Porto, onde estavam sujeitos a todas as pressões necessárias por parte dos clubes e das suas Forças Armadas, quer por integrarem o grupo de jornalistas demasiadamente parciais ou promíscuos em relação ao Futebol Clube do Porto, o grande alvo do Apito Dourado, sem margem para dúvidas.
Quando deveriam ter criado grupos especiais de trabalho para investigarem e aprofundarem as revelações do Apito Dourado, e insistido até fragilizarem de tal forma o sistema que ele teria de ceder, preferiram tratar do caso como uma mera crónica de tribunal, de leitura e transcrição selectiva de certas passagens das averiguações policiais, não fazendo o que à imprensa compete: usar o seu poder para ir além dos outros poderes.
Com o passar do tempo tornou-se óbvio que era muito mais importante para o Porto ganhar a guerra do que para a imprensa continuar a lutá-la. A imprensa capitulou. E o Porto, por mero exercício de resistência, ganhou.

3 – Comeu e calou, por fim.

Hoje, o Apito Dourado é um passado distante. O que os jornais não fizeram antes também não demonstram, agora, a mínima vontade de fazer. O presidente do clube que transformou radicalmente a índole do futebol português, transformando-o numa casa de alterne, continua em funções e é glorificado pela sua genialidade, apesar de ser evidentemente culpado de actos de corrupção e manipulação de resultados.
O jogo de futebol em Portugal, com potencial para ser um dos melhores do mundo, continua a ser poluído, diariamente, pelas insinuações e pelas acusações de corrupção, consumindo-se quando deveria estar a crescer.
Os miúdos que começam a ver o jogo crescem já com o veneno do vale tudo, do «os fins justificam os meios», do «eles não nos deixaram ganhar». A canalha colonizou o país desportivo. Em vez de ouvirem dizer que o futebol conseguiu erradicar as pessoas que falseavam resultados e que agora o jogo é limpo, e ganha o melhor mesmo com erros dos árbitros, aprendem que, com advogados habilidosos e a coberto da lei, os corruptos que davam dinheiro e prostitutas a árbitros safaram-se, e que o crime compensa, porque não só se safaram como continuam a ganhar, porventura usando os mesmos métodos: o que é que os impede?


A imprensa desportiva portuguesa, que sempre foi vista pela sua congénere generalista como a Cova da Moura da comunicação social nacional, esteve, afinal, precisamente à altura deste epíteto.

2 comentários:

  1. Uma análise bastante certeira. A imprensa desportiva vacila entre o servilismo puro e o receio de irritar demasiado os poderes instalados. A quase absoluta inexistência de jornalismo de investigação não é exclusivo da imprensa desportiva, no entanto. A imprensa generalista padece do mesmo mal, com mais do que raríssimas excepções.

    Neste país, os fins justificam os meios. A cada época, rapidamente se esquecem erros de arbitragem em fases cruciais da competição (o melhor exemplo foi o início da época passada) e no fim lá vêm as loas aos do costume. Do mesmo modo, a mesma obediente e medrosa imprensa, lá vem, periodicamente, lembrar o consulado de PdC, sem sequer se atrever a referir a teia de controlo da arbitragem por ele montada.

    Do ponto de vista pessoal, afirmo com clareza que nunca gastarei um cêntimo com esta imprensa de tão baixo nível. Como li, nos meus tempos de miúdo, num dos livros da Disney, são tudo tipos que sabem de que lado é que o pão deles leva a manteiga...

    Abraço

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  2. dizes que o futebol é uma área estratégica para o Estado. Ou seja...
    não! estás enganado. Não faltou a qualquer político legitimidade para. Nem apoio da opinião pública! A classe política está de alma com os métodos do apito dourado... é cumplicidade pura.

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