quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O deus das pequenas coisas

Pablo Aimar é apenas humano. É limitado – e começa por ser limitado pelo próprio corpo.



O corpo de Aimar trai-o de duas maneiras.

Antes de mais, a razão para Aimar falhar tanto tecnicamente (aqui, tanto é em relação ao que ele tenta, e não ao que os outros fazem, pois ele consegue fazer mais que os outros) é porque o seu corpo não consegue acompanhar o seu pensamento. Aimar pensa muito bem, vê as jogadas que têm de ser feitas, consegue algumas, e as que falha são ou porque os colegas não atingem (e daí a diferença de ter tido Saviola, com quem se entende perfeitamente, no primeiro ano), ou porque, tecnicamente, o resto do corpo não está à altura do que ele tenta fazer. Acredito que isso é estrutural. A Aimar falta-lhe força, potência, e com isso perde tecnicamente.

Por outro lado, o corpo de Aimar traiu-o porque o impediu de jogar tanto como devia, de forma consecutiva, para atingir o seu melhor. O que Aimar perdeu no Valência, devido às lesões, na fase em que a sua carreira deveria estar a caminho do auge, não pôde voltar a ser recuperado. No seu melhor, em Valência, Aimar foi um dos melhores jogadores na Europa. E depois vieram as lesões. O Aimar de hoje, que é o melhor que o Benfica já teve, é apenas uma parte do Aimar de Valência. E mais do que isto, por razões óbvias, não vai dar.

Para que conste, o próprio Aimar de Valência, no seu melhor, só durou uns meses.

Aimar foi, desde cedo, um projecto traído pelo próprio corpo – um handicap natural que nunca lhe foi possível superar.



Aprendi a aceitar Aimar como um barómetro do Benfica, porque Aimar, como Luisão, é o melhor que o Benfica consegue ter como espinha dorsal de um projecto.

Não é, potencialmente, na minha opinião, o melhor jogador do Benfica. Witsel e Rodrigo, por exemplo, podem atingir níveis que Aimar não conseguiu atingir. Estruturalmente são mais sólidos, têm armas que Aimar nunca pôde ter. Mas Witsel e Rodrigo, sobre os quais se poderia construir uma grande equipa europeia, já cá não estarão quando estiverem na idade de conduzir a equipa em que jogarem aos grandes títulos. Entre os 27 e os 32 anos, Witsel e Rodrigo estarão a ganhar o triplo do que Aimar ganha hoje, numa das melhores equipas inglesas, italiana ou espanhola. Pelo contrário, entre os 28 e os 32 anos Aimar jogou no Benfica.

A espinha dorsal real do Benfica dos últimos 4 anos é composta por Luisão – suplente da selecção brasileira, mais pela rotina e pela presença colectiva que pela qualidade indiscutível, uma vez que é difícil distinguir Luisão de pelo menos 8 ou 9 outros defesas-centrais brasileiros – Javi Garcia – não-convocado na selecção espanhola – Pablo Aimar – contratado ao Saragoça, não-convocado para a selecção argentina e ausente em cerca de metade do tempo de jogo da equipa por questões físicas – e Cardozo – não-convocado para a selecção paraguaia no Campeonato do Mundo de 2010 aos 26 anos.

Se daqui tirarmos Javi Garcia – talvez… – e juntarmos Maxi Pereira, defesa-médio da selecção do Uruguai, temos o núcleo duro do Benfica, um grupo de jogadores cuja permanência de cinco ou mais anos de casa coincidirá com o seu apogeu de carreira, e que é, em última análise, o veículo da cultura da equipa para elementos que por ela transitam – Coentrão, Gaitán, Witsel, etc. – sem ficarem mais de dois ou três anos, saindo antes dos 25 a caminho de equipas maiores.

Se tomarmos a dimensão de uma equipa pelo melhor jogador que uma equipa tem a possibilidade de ter, Aimar está para o Benfica como Messi para o Barcelona, Ronaldo para o Real Madrid ou Rooney para o Manchester United. De alguma forma, as equipas acabam por se identificar com o seu melhor jogador, pois esse é um jogador-tipo. O Barça é Messi (e Xavi, e Iniesta, pois são todos iguais), o Real é Ronaldo, o United é Rooney, o Bayern é Ribéry, o Arsenal era Fabrégas (agora não se percebe bem o que é), o Liverpool era Gerard, o Benfica vai-se tornando Aimar. Não há grandes equipas sem um jogador-tipo materializado em campo.

Pablo Aimar é o 10 a que o Benfica tem direito.

Com Aimar, o Benfica nunca chegará ao patamar que o próprio Aimar não conseguiu atingir. Se conseguir gerir o seu handicap, se tiver sorte com os momentos de forma, com as lesões, com a sorte, se as coisas derem certo em vez de faltar uma passada, se a finta sair bem em vez da bola sair ligeiramente adiantada, como tantas vezes acontece, se a execução conseguir acompanhar minimamente a intenção, se o timing for bom, o Benfica pode ser melhor que o Porto, em Portugal, ocasionalmente, e fazer uma graça na Europa – mas ficando sempre numa segunda linha.



E se Aimar é a estrela a que o Benfica tem direito, o Benfica também é o gigante a que Aimar tem direito. Aimar tem classe para jogar numa equipa do top-8 europeu, por exemplo, mas nunca com o protagonismo que tem no Benfica, e raramente como titular. Podia jogar no campeonato inglês, mas jamais aguentaria a carga física ao ponto de jogar quatro ou cinco jogos seguidos como titular, como no campeonato português. Poderia ser tão ou mais importante do que é no Benfica em muitos outros clubes, mas em nenhum maior que o Benfica.

Para Aimar, o Benfica é o verdadeiro topo da sua carreira, porque aqui tudo se conjuga.

Sobretudo, uma parte que é menosprezada quando se considera a importância real do jogador na equipa.



Aimar é invulgarmente ciente da realidade para um jogador de futebol.

Lembro-me como se fosse hoje de ver o autocarro com os jogadores do Benfica a navegar lentamente sobre o mar de gente no Marquês de Pombal e de reparar em Pablo Aimar, na parte de trás, de braços cruzados no parapeito, a observar, serenamente, aquela alienação colectiva, com um sorriso, sem sentir sequer a necessidade de fazer palhaçadas, de exteriorizar sentimentos ou de corresponder à euforia que se vivia. Naquela situação-limite, Aimar tirava prazer em observar. E quase que se percebia que preferia estar em casa, sossegado, à espera do próximo treino, do que a fazer a festa pelo título.

Nssa altura percebi que Aimar é imune à estupidez natural do futebol. O Aimar que ouço hoje, o Aimar que reage hoje, em campo, é o mesmo Aimar do primeiro ano e do segundo ano.

Para Aimar, o futebol é o futebol, a equipa é a equipa, como ele próprio referiu na entrevista à Champions Magazine, e o folclore que rodeia o jogo é outra coisa.

O próprio visual, a forma de se apresentar, a ausência de preocupações estéticas, são típicos de quem se concentra absolutamente no jogo em si, prescindindo dos fenómenos paralelos, e de quem está na idade do prazer pelo jogo e não da perseguição do dinheiro.

Às vezes tenho a impressão de que Aimar só podia ser argentino. Parece que dentro de cada  argentino há sempre um ícone, um eremita ou um génio.

Numa equipa destinada a ser constituída por jovens jogadores em ascensão, que vêm de clubes menores para a um gigante mediático em que a pressão é constante, como o Benfica, um elemento plenamente consciente do que é importante e do que é secundário no futebol e na carreira de futebolista tem um valor inestimável.



Devo dizer que admiro muito mais Pablo Aimar pela personalidade que pela capacidade futebolística, e estou convencidíssimo de que, se hoje Aimar é o líder do Benfica em campo, é-o mais pelo que é fora dele do que pelo que joga. Nem sequer acho que Aimar seja, tecnicamente, e pelo que já disse, um jogador excepcional. Melhor que muitos, sim, mas não um sobredotado. Um verdadeiro bom jogador, sem artifícios, um jogador que vale pelo que é.

Tal como acontece com Luisão, o valor que Aimar tem para o Benfica, culturalmente, é muito superior ao seu valor de mercado enquanto futebolista fora do Benfica. Só no Benfica Aimar justificaria um salário de 130 mil euros por mês, como parece que recebe. E justifica-o.

Justifica-o a jogar quatro, dois ou um jogo por mês, com 32 ou com 35 anos. Não há dinheiro mais bem gasto. Num clube completamente vulnerável aos excessos, disposto a abdicar de tudo por paixões súbitas, irracional até ao limite, como não conheço outro, alguém que compreenda e ensine o lado real do jogo – como Aimar ensina, não só a colegas como a adeptos – tem sempre lugar. Mesmo depois de deixar de jogar.

10 comentários:

  1. Aqui é quase cada cavadela, cada minhoca :)!
    Pablo Aimar é isso tudo e eu sinto-me feliz por ter Aimar no Benfica. Com todas as limitações apontadas, há um Benfica com Aimar e um Benfica sem ele. O corpo talvez não lhe permita dar mais do que mais uma época, mas espero que quem está no Benfica perceba a riqueza que é contar com Aimar, quer jogando, quer depois de ter deixado de jogar.

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  2. Adoro. Muito bem sacada esta. Nunca pensei muito nisto mas penso que concordo com quase tudo.

    Este post tem um erro factual bastante grave. Deixo aos leitores e ao Hugo descortina'-lo.

    Luis

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  3. O Cardozo foi convocado para o Mundial, não foi é convocado para a Copa América do verão passado. O argumento mantém-se, aliás por isso é que falei dessa não-convocação. Apesar de actualmente ter voltado a ser titular na Selecção o ponta-de-lança do Benfica é uma espécie de Nuno Gomes do Paraguai - está longe de ser consensual, nem cá nem lá, e dificilmente pode ser colocado na primeira linha do futebol europeu. O que não qur dizer que, como goleador, não seja o melhor a que o Benfica pode chegar (é discutível, mas pelo menos coloca-se essa hipótese).

    Por falar nisso, repare-se como o Nuno Gomes, no terceiro classificado do campeonato, tem o mesmo papel que tinha no primeiro classificado de há dois anos e no segundo classificado de há um ano. Estaremos prestes a observar uma transferência de Nuno Gomes para o Marítimo neste Verão?

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  4. Concordo com quase tudo o que dizes, mas para mim, futebolisticamente, Aimar é excepcional.

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  5. Aimar é um dos tipos mais inteligentes que conheço. E um tipo inteligente é uma benção dentro ou fora do futebol, e por isso arrisco-me a dizer que o Aimar será o que quiser no Benfica.

    Se repararmos bem, nas entrevistas que dá, não existem os lugares comuns tão tipicos da malta da bola. Percebe-se que o que se diz tem um fundamento, tem uma justificação.

    Espero que o Aimar fique no Benfica porque, e espero não me enganar, não o vejo a ir para as Arábias para jogar à bola a troco de dinheiro. Admito que possa sair a perder dinheiro, para ir para o River pela paixão que tem pelo cluebe e pelo futebol

    Também prefiro pagar 130 mil a um Aimar que 10 mil a um marreco qualquer que apareça. O melhor dinheiro que o Benfica gasta é, de facto, com o Aimar.

    Hugo, parabéns pelo texto. Está fantástico.

    Um abraço,
    RS

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  6. Podem-me chamar alienado,etc e tal,mas para mim é Deus no céu e Aimar na Terra(e já agora Jesus no banco).Abraço a todos.

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  7. João Gonçalves25/01/2012, 14:56:00

    Grande texto. Aimar é isso tudo e é bom contar com ele no nosso clube. Espero que não saia do Benfica a troco de petrodólares, acredito que não. Não sei se alguém concorda, até porque posso não perceber nada disto, mas alguém mais vê Witsel como o substituto mais credível de Aimar? Eu vejo mas posso estar enganado...

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  8. Na mouche, Aimar é tudo isso.

    Não é o suprasumo dos jogadores de futebol(embora seja muito bom), mas é um profissional a 101%.

    Só estou a estranhar a renovação não estar assinada e anunciada, das duas uma:

    ou Aimar já assinou, como têm dito os dirigentes de clubes argentinos que o querem contratar, e Luis Filipe Vieira está a espera de um resultado negativo para fazer o anuncio (e com isso esbater a discórdia);

    ou então o LFV prepara-se para fazer o seu maior erro na politica desportiva do SLB, que é a não renovação (toc, toc, toc, bato 3 vezes na madeira).

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    1. Embora a fonte não seja grande coisa (Record), foi sugerido que é o próprio Aimar quem quer ter a certeza de que pode contribuir de forma positiva para o Benfica, e só então renovará.
      Acho que nenhum de nós tem dúvidas sobre isso.

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  9. Mais uma bela epístola saída do Religião, esta para mim, sobre o nosso melhor "profeta"!

    Aimar dá-me prazer em ver a bola como quase mais nenhum jogador me proporciona. Quase que dá vontade em citar Maradona.

    Num jogo praticado "maioritariamente" por 22 "calhaus", dá um prazer enorme ver gajos inteligentes a interpretar o jogo. Gajos que antes da jogada começar, já sabem como é que ela vai/pode acabar! Iluminados como o Zidane, o Xavi ou o nosso Rui Costa, só para mencionar alguns.

    Aimar é ainda o único jogador que aplaudo e/ou perdoo mesmo quando falha, porque vejo que a intenção era boa e era "bem esgalhada" a jogada! O físico não dá para mais, é a vida!

    Para finalizar espero que ele queira continuar connosco mais um anito e que renove em breve! Ontem já era tarde...

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