segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A lei

O Gil Vicente – Porto foi, sem dúvida, um dos jogos mais extraordinários de que há memória nos últimos anos. Pela questão do recorde que o Porto perde quando só faltava envernizar – indo contra a imagem de marca construída ao longo do pontificado de não falhar nos momentos fulcrais, e isto é um sinal muito importante, de que nos recordaremos no futuro –, pela questão pontual num campeonato Benfica-Porto que já não acontecia há décadas, e pela arbitragem, obviamente.

E na questão da arbitragem, de que eu não falo muito, como já devem ter reparado – e não estou a usar de fina ironia, é mesmo verdade que não dou muita importância – o jogo foi especial por duas razões: porque o Porto, de facto, foi desautorizado (e digo isto no bom sentido), e porque o próprio Bruno Ratão caiu dentro do caldeirão.



Custa-me um bocado falar do Paixão, porque sei que é precisamente para se falar dele que ele é como é e faz o que faz, mas bolas, hoje tem de ser.

O Paixão, tecnicamente, e potencialmente, é um excelente árbitro. Vê tudo, e quase sempre vê tudo bem. Há é uma diferença entre ver e marcar, ou entre ver e marcar o que se prefere, que é o que ele faz.

Continuo a apresentar a tese que já aqui deixei há umas semanas, de que o Paixão é incorruptível, não pela sua grande dimensão humana mas por pura vaidade. Não é que não goste de dinheiro, mas para ele é mais importante dar nas vistas. A forma que ele encontrou de conseguir ao mesmo tempo dar nas vistas e continuar a ser árbitro foi tornar-se incorruptível. Só por saberem que ele não pode ser comprado é que os dirigentes continuam a dar-lhe jogos importantes para arbitrar. É claro que depois, nos jogos, o Paixão encontra maneira de ser sempre – sempre... – a figura central, sobretudo nos jogos em que entrem os três grandes. Porque é nesses que se dá mais nas vistas. O preço do paixão é o narcisismo, só isso.

Normalmente, os jogos de Benfica, Porto e Sporting acabam com casos, com erros ou com demonstrações de prepotência, mas sem uma influência real no resultado.

Ora, ontem, o Paixão enredou-se na sua própria teia.



Acho que o Paixão entrou para o jogo de ontem com o mesmo estado de espírito que entrou em todos os outros jogos: decidido a inventar para dar nas vistas e a manobrar a coisa de maneira a que, no fim, as suas parvoíces não lhe pesassem na consciência. Geralmente o plano corre-lhe bem, mas…



O lance do Defour é um daqueles lances demasiado estúpidos para ser penálti, em que a decisão correcta, para ser aceite, tem de ser tomada num contexto de confiança em relação ao árbitro e à arbitragem que manifestamente não existe em Portugal, e dificilmente algum dia existirá.

Eu acho que a decisão de Bruno Paixão neste lance é correcta.

A questão, contudo, é que sustento esta opinião não numa perspectiva técnica mas na apreciação subjectiva da lei.

Na letra da lei, é penálti. Há um contacto físico que impede a progressão do atacante, dentro da área, portanto é penálti. Não me venham com a treta da intenção, que não pega. Não tem de haver intenção para se fazer falta. Aliás, de acordo com o texto das leis do futebol, se houver intenção de fazer falta é anti-jogo, e nem falta deve ser: deve ser expulsão. É claro que pelo menos metade das faltas que se fazem são intencionais e nem amarelo levam, mas isso decorre da evolução natural da agressividade do jogo. Ou seja, a prática sucessiva leva a que o espírito da lei se torne mais importante que a letra da lei, porque a prática revela o que é natural, e adapta-se, enquanto a letra da lei é imutável, o que a torna, geralmente, desajustada.

Eu digo que a decisão está correcta precisamente por causa disto.

Na letra da lei, tem de ser penálti. Da mesma forma que, na letra da lei, não haveria um canto que não desse penálti, e não haveria uma jogada de corpo a corpo em que não houvesse falta.

Nem o contacto nem sequer a intensidade do contacto podem ser o único critério para marcar uma falta, seja dentro ou fora da área. A situação de jogo é tão ou mais importante do que o contacto.

A situação de jogo, neste caso, era a seguinte: a bola passa pela defesa e dirige-se, em velocidade para fora da grande-área, a caminho da linha lateral, afastando-se da zona de golo; o defesa corre para ela e abre os braços para impedir o atacante,que vinha mais depressa, de ganhar vantagem; como é mais alto, o seu braço, em vez de bater no peito do atacante, bate-lhe na cara e provoca a queda (se o Defour não tivesse caído o caso nem sequer teria existido). No momento do contacto, basicamente, a jogada era inofensiva. Daí ser tão estúpida. Mas era inofensiva. O mais provável era a bola sair. O que o dabiel fez não foi diferente do que fazem tantas vezes os defesas junto à linha, abrindo os braços para proteger a saída da bola. Tecnicamente, isso é obstrução, porque o defesa não está a jogar a bola, mas a impedir que o atacante a jogue. Na prática, aceita-se que o defesa está a proteger a bola.

Colocado perante a letra da lei e o seu próprio instinto, Bruno Paixão volta a mostrar a qualidade de julgamento rápido que, na minha opinião, poderia ter feito dele o melhor árbitro português, e manda seguir o jogo. É a decisão certa no espírito da lei. A jogada era irrelevante. Marcar penálti seria ir contra a própria lógica do jogo, e essa é uma decisão que o árbitro tem de tomar «n» vezes no decorrer de uma partida. Pode-se mesmo dizer que fazer daquilo um penálti seria, isso sim, corromper o jogo.



Aqui, Paixão começou a ser apanhado, porque não estava à espera desta armadilha. Geralmente é ele próprio quem inventa o enredo que, depois, há-de desenvolver e desenvencilhar. Desta vez, foi apanhado no enredo. E foi apanhado, sobretudo, porque ele soube que tinha tomado a decisão correcta. Paixão estava a dar nas vistas, como adora, e a ser um bom árbitro. Nessa altura, Paixão deve ter desconfiado que não ia ser uma boa noite para ele. Ficou, pelo menos, de pé atrás.



Na jogada do penálti, é maldoso culpar o fiscal-de-linha por não ver o fora-de-jogo. Não só era um fora-de-jogo muito difícil de marcar porque o jogador em fora-de-jogo estava muito perto dele como o movimento dos defesas, ao contrário do que é costume, não era a subir no terreno, mas a baixar, acompanhando a fluência do ataque. Tal como, muitas vezes, os fiscais-de-linha são enganados pelos movimentos opostos de defesas e atacantes e pela separação que se gera nos centésimos de segundo que leva a fazer o passe, deste vez o movimento contra-natura dos defesas enganou o bandeirinha. Se os defesas estivessem parados, provavelmente ele teria marcado o fora-de-jogo, porque o avançado, ao receber a bola, apareceria três ou quatro metros separado da linha defensiva. Tal como aconteceu este jogada, quando ele a recebeu estava em linha com a defesa.

Depois, no corte com o braço de Otamendi, há um pormenor importante: Paixão não ia marcar penálti, apesar de ter visto perfeitamente que o corte tinha sido feito deliberadamente com o braço. Não havia ninguém entre ele e o Otamendi, e o movimento do braço é nítido, mas ele ia deixar seguir. Só que o fiscal-de-linha diz-lhe que é penálti, pelo comunicador, e Paixão, completamente fora de tempo, percebendo-se claramente que estava a ponderar sobre se devia ou não marcar a falta, acaba por marcar. Ele não queria marcar, provavelmente porque pretendia fazer daquele lance a compensação do anterior, mas percebeu que o lance era demasiado claro e, decerto devido ao facto de saber que, no fundo, não tinha errado no outro, marcou mesmo. Além disso, sempre era mais uma oportunidade de dar nas vistas.



O lance do Kléber é, na minha opinião, o mais controverso de todos. Há um contacto evidente entre o guarda-redes, que sai atrasado, e o avançado. A questão, aqui, e novamente, é a da situação da bola. No momento do contacto, a sensação que me deu, imediatamente, é que a bola estava perdida, de tal maneira que, mais do que ir em sua perseguição, o Kléber já estava a travar, para evitar o choque com o guarda-redes. Foi o que me pareceu logo. Um choque casual numa jogada casual, em que nenhum dos dois jogadores tinha a bola em seu poder. Só ao fim de um segundo é que se me colocou a hipótese de ter sido penálti. E isto não pelo contacto, repito, que não acho ser o critério prioritário nesta decisões, mas pela possibilidade do avançado ainda apanhar a bola antes dela sair e marcar golo.

Não vi a repetição do lance, mas, tal como me lembro da jogada, mantenho a opinião inicial: não há falta, porque a bola está perdida e o que há é um choque entre os dois jogadores, sem culpa explícita de nenhum. Admito que possa estar enganado mas, sinceramente, estou convencido de que se o Paixão não marcou é porque, de facto, não viu maneira de encontrar ali um penálti.



No meio disto tudo, provavelmente assegurado pelos auxiliares, durante o intervalo, que tinha decidido sempre bem, o Paixão, vendo o Gil marcar um inacreditável terceiro golo apenas dois minutos depois, perdeu a oportunidade e a motivação para compensar o Porto. Porque é que digo que caiu na sua própria armadilha? Porque, afinal, Bruno Paixão faz, provavelmente, a melhor arbitragem da sua histriónica carreira e, no fim, sem culpa, apanhado num contexto verdadeiramente histórico, acaba por dar demasiado nas vistas e comprometer as suas possibilidades de voltar a apitar quer Benfica quer Porto nesta temporada, assim como a ficar artificial e involuntariamente ligado à perda do título do Porto, apesar de ser o menos culpado.





Dito tudo isto, há outra coisa que convém dizer aqui, ao cabo deste fim-de-semana que vai ainda fazer correr tanta tinta.

Julgo que quem lê o que aqui escrevo pode apontar-me muitas coisas (algumas, vá lá…), mas a hipocrisia não é uma delas. Digo o que penso, independentemente dos juízos que me possam fazer. Acho que a justiça é a fonte do espírito humano, e que tudo o que é injusto está condenado, cedo ou tarde, ao fracasso, seja dos nossos seja dos deles.

Nunca ninguém me ouviu aqui dizer que o Benfica não corrompe árbitros ou que não participa na corrupção do sistema. Não sou anjinho. Seja para se defender, seja para ganhar vantagem, seja pela pressão, seja pela manipulação, seja pelo tráfico de influências, todos os clubes, sem excepção, participam no sistema. O que eu digo, e reafirmo, não é que o Benfica não corrompe. O que eu digo é que não são todos iguais, e não podem ser todos tomados por igual. Roubar um banco não é o mesmo que roubar um frango. Ou por saberem, ou por poderem, há os que têm muito mais culpa do que outros. Há os que constroem os sistemas, há os que os aceitam e há os que, simplesmente para subsistirem, são forçados a viver dentro deles.

Se o Bruno Paixão e o Rui Costa (bolas, devia ser proibido um árbitro usar este nome…) prejudicaram deliberadamente o Porto e beneficiaram deliberadamente o Porto, se há um processo de corrupção generalizado para «levar ao colo» o Benfica até ao título, a única coisa que eu desejo sinceramente é que seja o Benfica a controlar esse processo, e não, por exemplo, essa Olivedesportos que o São Martinho de Penafiel (ex-treinador e accionista individual maioritário do Porto) diz à boca cheia que é quem decide previamente o campeão. Porque se não for o Benfica a controlar essa suposta rede de manipulação de resultados, se for a Olivedesportos ou alguma outra instituição obscura a manobrar na sombra, isso quer dizer que este campeonato será uma chuvada de Agosto, que não dá em nada, e que daqui para a frente será business as usual.



Escrevi e reafirmo: vivemos num país em que um dirigente evidentemente corrupto de um clube que ganha 15 campeonatos em 20 é apanhado em flagrante PELA POLÍCIA JUDICIÁRIA a comprar resultados, não em uma nem em duas mas em várias ocasiões; esse dirigente vai a tribunal e é absolvido por uma questão burocrática; as autoridades desportivas concluem da culpa desse dirigente, aplicam-lhe um castigo fictício e o clube sofre consequências irrisórias, tão irrisórias que já ninguém sabe, de facto, se as chegou a sofrer ou não; depois de todos este processo escabroso o dirigente continua a ser glorificado por toda a imprensa nacional, como se fosse possível dissociar a ética da prática, levando-nos a concluir que, neste país, de facto, é possível, e até natural, dissociar a ética da prática.

Novamente, do que estamos a falar é da letra da lei e do espírito da lei. Tal como no Gil Vicente-Porto.

Escrevo, agora, e reafirmo: quando algo tão explícito como isto acontece, a minha preocupação não é mudar o mundo nem mudar as pessoas, é ficar a saber as regras do jogo. Porque, sabendo as regras do jogo (e as regras do jogo estão claras à vista de quem as quer ver) sabemos como devemos jogar. A partir disto, é fácil: se nos entram à canela, nós entramos ao joelho. Somos mais fortes, e se não somos passamos a ser. Entre mortos e feridos, haveremos de chegar, um dia, daqui a cem anos, ou quando as pessoas decidirem que já chega desta merda, ao futebol inglês com que, no fundo, todos sonhamos mesmo sem o percebermos.

Até lá, chafurdemos na trampa.

Como dizia a minha avó, «o tempo tudo cura».

8 comentários:

  1. Bom post (mais um...)

    Futebol ingles é mesmo um (inatingivel) sonho... Caga nisso

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  2. Concordo com as opiniões sobre os lances. No entanto, não resisto à tentação de mostrar um testemunho, que considero insuspeito, de algo que se passou com o Bruno Paixão, um afilhado do Guilherme Aguiar (será por isso?) num sítio mais do que conhecido, a Marisqueira de Matosinhos, onde se cozinham muitas coisas, sempre ao sabor dos mesmos.

    "Tive então um «flashback» de um facto que presenciei ao vivo em Julho de 2006, na mesma Marisqueira de Matosinhos. Encabeçando um grupo de 15 docentes, na sua maioria jovens professores contratados, dirigimo-nos para o restaurante para festejar o encerramento do ano lectivo e vermo-nos pela última vez. A meio do repasto, enquanto eu me deliciava com um excelente arroz de marisco, uma jovem professora de Química que estava sentada à minha frente perguntou-me delicadamente se eu não me importaria de trocar de lugar com ela, pois estava a sentir-se visivelmente incomodada com os olhares persistentes e pouco cavalheirescos que um dos clientes (sentado na mesa em frente à nossa) lhe estava a lançar. Imprudentemente, a minha jovem colega estava a envergar uma blusa excessivamente decotada e justa que lhe expunha um busto farto e um colo com uma agradável tonalidade pálida que hipnotizaria qualquer cavalheiro.
    Por delicadeza, anui ao seu pedido, sorrindo com o sucedido, pois eu próprio estava a tentar controlar os meus olhares lascivos, enfiando o nariz no prato. De repente, reparei e reconheci a comitiva VIP que estava naquela mesa: Reinaldo Teles, António Garrido e um jovem árbitro da zona Sul que, naquela altura, não era ainda internacional. Era este árbitro que estava a lançar olhares de "paixão" em relação à minha jovem colega e ficou visivelmente incomodado com a troca de cadeiras e não duvido que, se o pudesse, me teria exibido o cartão vermelho. Os nossos jantares terminaram ao mesmo tempo e a mesa da FCP SAD estava incomensuravelmente mais divertida do que a nossa, pelo menos as gargalhadas eram mais estridentes e sonoras. Reinaldo Teles e o árbitro saíram abraçados e, não duvido, a noite desses convivas deverá ter terminado numa qualquer Taberna do Infante...ou Calor da Noite".

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  3. Excelente post.Para assimilar e pensar.

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  4. Ainda há-de haver excursões à Marisqueira de Matosinhos como à tal capela na praia. O local onde tudo acontece.
    Só a PJ do Porto é que parece não saber onde é. Tipo Triângulo das Bermudas. Suspeita-se que existe mas não se pode provar.

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  5. grande galo , doeu e muito hoje aqui no porto , tudo de luto pesado... acapela na praia e na madalena o sr. da pedra... + $$$feelings bwin a casa agradeçe.. excelentes posts.

    vasco

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  6. Muito bom post.
    O importante agora é não relaxar mas sim continuar focados e ambiçiosos para obrigar os azuis a pôr o outro joelho ao chão.Podemos estar perante o inicio de uma nova era no futebol nacional e aí importa ao Benfica perceber que caso se consiga o titulo as coisas não acabam aqui mas sim começam!Este titulo pode ser o mais importante da nossa história mas até lá vamos ter de aguentar a pressão como se estivessemos empatados e sim acabar com as vitorias antecipadas e cantos do galo que só nos prejudicaram nos ultimos 18 anos.
    Alias,ao ver esta jornada quase parecia que os papeis estavam invertidos em relação aos tais 18 anos!

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  7. Olha, nem de propósito: o tribunal considerou que a reunião em que o Porto foi julgado culpado pela FPF nunca existiu.
    Tradução: nada aconteceu.
    Agora a sério, vale a pena perder tempo com isto?
    Não.
    Basta saber as regras do jogo.

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  8. Realmente estão a tentar limpar o nojo todo.Temos mesmo que saber as regras do jogo senão fazemos papel de corno manso.

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