sábado, 21 de janeiro de 2012

Futebol Total

Não sou do Sporting, não faço reciclagem (porque não participo em esquemas de manipulação da opinião pública para conseguir mão-de-obra barata, devo dizer) e já vou para maduro. Acho que a única coisa em que sou verde é no futebol americano.


A minha equipa, os Green Bay Packers (e olhem que eu dou por mim a sofrer a sério com aqueles gajos), foi eliminada no passado fim-de-semana do play-off da NFL. Eram os campeões em título. A vitória dos Packers foi, aliás, ao que me lembro, a minha única alegria desportiva real na última época. Depois dos 5-0 nas Antas decidi fazer um período sabático, mandar o Benfica à merda durante uns meses e esperar pela nova época. Enquanto o Benfica se arrastava, a fazer de conta que ia a lugar algum, os Packers iam ganhando, e acabei por ver mais jogos de futebol americano entre Novembro e Janeiro do que do nosso futebol. Fiquei a gostar ainda mais dos Packers por me terem salvo da miséria para a qual o Benfica me atirou.

Os Packers são uma espécie de Benfica do futebol americano, o verdadeiro clube do povo, um clube impossível, por isso não me importo que sejam verdes. Lá mais para a frente eu começo a catequizar o futebol americano aqui na Religião, porque vale muto a pena, mas agora não temos tempo.

Os Packers chegaram ao play-off como favoritos nas apostas para vencerem outra vez o título. Apenas tiveram uma derrota em toda a época antes disso, e estiveram perto de acabar 16-0. Mas eu nunca acreditei realmente que os Packers pudessem ser campeões outra vez. Primeiro, por uma razão estatística: já há uns vinte anos que nenhuma equipa consegue ganhar o bicampeonato na NFL. Mas sobretudo por uma razão bem prática: apesar de terem o ataque mais devastador da liga, os Packers chegaram ao play-off com a pior defesa da competição, o que é espantoso.


O segredo menos bem guardado no desporto profissional, que todos os atletas, treinadores e dirigentes que jamais ganharam alguma coisa sabem, é que os ataques ganham jogos, mas são as defesas que ganham campeonatos. Nenhuma equipa que não defenda bem tem qualquer hipótese de ser campeã seja do que for, e geralmente a que defende melhor – não mais, mas melhor – é que a que acaba por ganhar.

E se a defesa é sempre decisiva é por uma razão muito simples: é porque é mais fácil defender do que atacar. É histórico, e é universal, em todas as actividades humanas, em todos os tempos, no futebol, na guerra, na arte, na economia. O instinto da sobrevivência, da preservação, é sempre mais forte, no homem, que o do risco. Os lirismos fazem-nos acreditar no oposto, que somos uma espécie criadora, inovadora, audaciosa, mas é treta. Somos, como todas as espécies, uma espécie defensiva, que só se arrisca quando a sua própria preservação está em risco. O homem é, por essência, um sobrevivente.

No futebol é a mesma coisa. Não perder é sempre o passo mais importante, ganhar é só depois. Quem não defende perde. Qualquer Beira-Mar é capaz de se organizar defensivamente. Não envolve grande criatividade. O acto criador, pelo contrário, envolve muito mais energia, sobretudo porque requer fazer coisas diferentes, e ser capaz (ter tecnologia) para as fazer. Temos sempre mais propensão e preparação para nos defendermos do que para tomarmos a ofensiva. Qualquer pessoa que tenha militado nas forças armadas vos dirá o mesmo (eu não militei, esclareço). O instinto protector é o instinto básico do ser humano.


Diz-se que o ataque se alimenta da defesa. Isto tem muito a ver com a pressão. O futebol é um jogo de erros, e quando a pressão aumenta os erros também se tornam mais frequentes, e falha-se mesmo no que normalmente não se falha. É uma reacção fisiológica. O jogador retrai-se, com o medo, e não executa nem pensa tão bem pela mesma razão que os pêlos se arrepiam com o frio – por reflexo. Há quem resista mais, há quem resista menos. Por isso é que há jogadores com mais classe que outros – porque, sob pressão, tomam mais boas decisões.

Nos jogos de grande pressão, os erros acumulam-se, e a equipa que defende bem erra menos. Ao errar menos, descontrai-se, sente-se segura. Ao descontrair-se, executa melhor. Ao executar melhor, e sentindo que tem superioridade no seu último reduto, ganha confiança e ataca melhor. No sentido oposto, uma equipa que não defenda bem desmonta-se com facilidade sob pressão, e se se dá caso de estes dois movimentos opostos coincidirem no mesmo jogo está criada a tempestade perfeita. A vitória do Porto, na Luz, para a Taça, na época passada, por exemplo.


A equipa que melhor defende, no mundo, é a melhor equipa do mundo. O Barcelona. Por uma razão muito simples: não é só porque descobriu a pólvora, é mais porque a descobriu e a guardou. A bola, claro.

Na Idade Média os reis europeus fizeram mais ou menos a mesma coisa: ao conseguirem o monopólio da pólvora (da pólvora a sério), a única arma contra os castelos dos senhores feudais, impedindo que outros a usassem, consolidaram o seu poder, e assim se iniciou a construção dos Estados modernos como hoje os conhecemos.

É a lógica mais simples e mais genial na história do futebol, precisamente pela simplicidade. «Ninguém marca golos se não tiver a bola.» Pode parecer contraditório dizer que o Barcelona passa mais de metade do tempo útil de jogo a defender, mas é verdade. Quando anda a trocar a bola durante três minutos seguidos o Barcelona não está a atacar, está a defender com bola, porque o objectivo ali não é marcar golo mas sim evitá-lo. O Barcelona tem dois tempos defensivos:

- os três segundos imediatamente a seguir a terem perdido a bola, quando geralmente a recuperam, por duas razões: porque a perderam de forma correcta, num local do campo afastado da sua baliza e com os seus jogadores posicionados de uma maneira que tanto serve para atacar como para começar logo a defender; e porque tem um conjunto de jogadores rápidos sobre a bola, que pensam muito depressa, e que sabem para onde a bola vai antes dos próprios avançados, porque percebem o jogo

- os três minutos a seguir a terem-na recuperado, quando a trocam sem procurar a baliza, apenas a aproximando o suficiente da grande-área contrária a ponto de, em sete ou oito segundos criarem superioridade numérica e uma desmarcação em direcção à baliza.

O Barcelona não e a equipa que melhor ataca no mundo – é a equipa que melhor defende. E arrisco-me a dizer que também é a equipa que mais defende. Chegámos ao cúmulo de ver o Barcelona a ter 74 por cento de posse de bola em pleno Santiago Bernabéu, contra o Real Madrid. Ninguém passa tanto tempo como o Barcelona a evitar o golo. Que ela nos consiga iludir de que ganha campeonatos a atacar só a torna ainda mais genial.

O Barcelona está vinte anos adiantado em relação aos outros precisamente porque a única forma de contornar o seu poder é usar pólvora contra pólvora. Naquelas poucas ocasiões em que passam a barreira fulcral dos três primeiros segundos têm de conseguir fazer ao Messi do Barcelona o mesmo que o Xavi e o Iniesta fazem aos messis dos outros: pô-lo a ver a bola.

Isso vai tornar-se claro assim que o actual Real Madrid, uma das equipas mais completas, caras e bem treinadas de todos os tempos tiver falhado. Pode demorar mais um ano ou dois – uma vez que Real vai mesmo ser campeão este ano, alimentando a ilusão de ter sido o Real a ganhar o campeonato, e não o Barcelona a perdê-lo, como de facto vai acontecer – mas assim que Mourinho sair a coisa torna-se clara e evidente.

Quando aparecer uma equipa a conseguir fazer de Barcelona melhor que o Barcelona – digo «quando», e não «se», porque vai acontecer – o jogo vai tornar-se tão aborrecido que talvez cheguemos ao ponto de instituir regras tais como as que foram instituídas na NBA, para impedir o anti-jogo, como o cronómetro de ataque ou a linha de transposição de bola.


O que é que aconteceu aos Packers? Bom , os Packers, cuja capacidade ofensiva era considerada, pelos analistas, a melhor de todos os tempos, foram eliminados porque, no primeiro jogo do play-off, quando a pressão subiu e a intensidade e a estratégia defensiva dos adversários melhoraram, não conseguiram fazer mais do que um touchdown (e graças a um erro do árbitro) quando o normal era conseguirem entre 5 e 7 por jogo. Enquanto isso, os New York Giants, alimentando-se da defesa, marcaram os pontos do costume (não muitos, mas os suficientes), em casa dos Packers, e ganharam.


Como é evidente, isto tem tudo a ver com o Benfica – Gil Vicente de hoje, em que o Benfica deve ganhar por 3 ou 4-1. No final, os analistas vão voltar a enaltecer que com este ataque, o Benfica é praticamente campeão, e os adeptos, que gostam é de bolas à baliza e correrias, vão acreditar (eu também gosto, note-se). «O carrossel ofensivo argentino latino-americano vai dar ou outro título ao Benfica», dir-se-á

O meu receio é que, daqui até ao jogo com o Porto, e sobretudo no próprio jogo com o Porto, os jogadores acreditem que isso é verdade. Porque não é.

A minha esperança é o Jesus.
Esse mesmo Jesus que, nos tempos do Felgueiras, entrou à leão, com toda a escola que o Cruyff estava a implantar em Espanha, a dizer que a forma de ganhar era marcar mais golos que o adversário.

Esse mesmo que Jesus que passou de treinador atrevido a treinador campeão (porque levar o Braga, o Belenenses ou o Benfica ao melhor que podem atingir é ser-se campeão) quando percebeu, com o decorrer da sua carreira, que o segredo para se conseguir acabar o jogo com mais golos que o adversário, sobretudo contra adversários da estirpe de um Porto, não é marcar muitos – é sofrer poucos.

6 comentários:

  1. A escola holandesa já tinha principios semelhantes.Van Gaal já dizia que era precisa ter a bola para atacar mas tambem para... impedir de sofrer golo.En quanto o Real se concentrar em tentar destruir jogo não irá lá pois é quase impossivel faze-lo no jogo todo.Tem sim que se concentrar em aproveitar e rentabilizar ao maximo os minutos em que tem a bola.
    O meu receio como benfiquista é entrarmos nessa euforia desmedida de futebol para a frente.Há que ter sempre um equilibrio e ser mais calculista já para não falar na fraca circulação de bola que temos.Esperemos que continua com esta calma,respeito,garra e concentração que temos tido esta época.Enquanto o barco não atracar todos tem de estar concentradissimos...

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  2. Esta escola é TODA holandesa. Melhor ainda, é toda Ajax. Rinus Michels começa, sem saber bem que o estava a fazer, Cruyff interpreta-a como ninguém e, sobretudo, tem aaudácia de apostar nela, primeiro no Ajax e depois no Barcelona, Van Gaal «militariza-a», Rijkaard, com Ronadinho e já com Xavi e Iniesta, apresenta-a à modernidade, e Guardiola, discípulo de Cruyff, já como jogador o seu «treinador em campo», dá-lhe o corpo catalão e torna-a num produto sublime, à maneira alquímica.

    O futebol do Barcelona é, por inteiro, um produto holandês, curado com um cosmopolitismo cultural e um poderio financeiro que, em conjunto, apenas o Barcelona possui.

    O Real Madrid, todo ele império, é todo ele Mourinho.
    O Barcelona, todo ele arte (na criação e na destruição), é todo ele Cruyff.

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  3. Entretanto, num assunto não relacionado, a Reigião chegou à Irlanda, à Suécia, ao Canadá...

    Hoje, um blogue. Amanhã, diáspora.

    Amen

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  4. Parece inacreditável que ainda falte metade da época. Com Benfica e Porto engalfinhados desta maneira não tenho dúvidas de que estamos a presenciar a época mais intensa desde 1994, a seguir ao Verão Quente do Paulo Sousa e do Pacheco, que acabou com o 6-3 de Alvalade.
    *
    O cheiro a Vitória de Guimarães está a tornar-se tão intenso que vou ter de queimar açúcar para disfarçar. Já tiveram aqueles momentos em que todas pequenas e grandes coisas em que conseguem pensar parecem fazer tanto sentido que começam a não conseguir acreditar na própria lógica do «mais forte e do mais fraco» que impera em 90 por cento das vezes?

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  5. Pelo meu lado, confesso que alguns sinais não me deixam muito tranquilo. A porcaria d' A Bola de hoje é uma dessas. Manteve-se uma postura de humildade enorme até aqui e hoje saiem afirmações a dizer que estamos no topo da forma, etc e tal. Espero que haja sensatez.

    Nos corruptos, confesso que acho possível que a saída do Givanildo seja mais benéfica que prejudicial. Eu não gosto do Givanildo nem um bocadinho e acho que a treta dos 100 milhões não passa disso mesmo - uma enorme treta. Veremos se sem ele, não ganha liberdade um excelente jogador - James. Gostava que o Guimarães não me desse razão, mas não acredito muito...

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  6. Não joga o Laionel? Então esqueçam. Só há dois jogadores em todo o campeonato que fazem os benfiquistas tremer: o Hulk e o Laionel. E hoje não jogam os dois. São sinais atrás de sinais.
    Cheira-me mesmo que hoje vai haver raia. Só não consigo perceber onde.

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