sábado, 15 de setembro de 2012

O dízimo


Nos seus tempos áureos, de República expansionista, as legiões romanas impunham um código de conduta em batalha que as diferenciava de todos os seus adversários. De um legionário romano esperava-se que entregasse a vida pelos seus camaradas sem hesitar. Como ninguém é um adepto natural de entregar a própria vida sem hesitações, havia acções motivadoras. Uma delas era a da dizimação.

Dizimar vem de dízimo, que significa um décimo, e a regra era simples. A unidade colectiva básica da legião romana era a decúria, um conjunto de dez legionários, que por sua vez formavam uma centúria, um conjunto de dez decúrias. Sempre que os comandantes das decúrias ou das centúrias – decurião ou centurião – consideravam que o comportamento das suas tropas tinha sido particularmente cobarde ou embaraçoso em batalha, mesmo em caso de vitória, alinhavam as decúrias, sorteavam um legionário e, ali mesmo, mandavam-no avançar e, diante de todos, cortavam-lhe a cabeça. No caso de uma centúria, executavam, sumária e arbitrariamente, dez soldados.

As decúrias eram, assim, dizimadas.

Este tipo de disciplina brutal permitiu que um exército originalmente de bandidos e saqueadores, em inferioridade numérica perante praticamente todos os seus inimigos, se transformasse no maior império do seu tempo.

Eu gostaria de dizer que a equipa do Benfica se encontra dizimada após o castigo imposto ao Luisão, mas não posso, porque a esta disciplina falta um elemento fundamental: a autodeterminação. Não foi o Benfica que decidiu dizimar-se. O Benfica preferia não se dizimar. Para o Benfica é mais importante ter o Luisão durante dois meses do que ter disciplina interna. O que é mau, na minha opinião, nem é isso: é 98 por cento dos benfiquistas – incluindo os que vêm aqui ao blog – concordarem com essa posição.

Eu gosto do Luisão, acho que o Luisão teve um mau momento na Alemanha, que não reflecte a sua postura em campo, e acho que o árbitro jamais se teria fingido de morto se o jogador a abalroá-lo fosse do Fortuna de Dusselford – o que me leva a acreditar nisto é o sistemático preconceito dos árbitros do Norte da Europa, especialmente alemães, em relação aos pretos da Europa (nós, os gregos, os turcos e afins).

Dito isto, o que teria ficado gravado no ADN do Benfica, a seguir ao incidente, teria sido uma suspensão imediata do Luisão, unilateral, por parte do Benfica, e um pedido de julgamento sumário ao jogador.

Culturalmente, é quase impossível a uma Direcção de um clube português tomar uma medida destas. Para o povo, teria sido inaceitável. Dir-se-ia que os jogadores tinham de jogar até contra a própria Direcção, que esta estava a dar tiros nos pés, que tinha entregue o ouro ao bandido, etc, etc. Em parte, tudo isto é verdade. O Benfica estaria a dizimar-se.  Mas a dizimação, quando é bem executada, pode transformar-se numa arma poderosa.

A disciplina – que eu considero como a capacidade autónoma de concentrar a energia nas acções necessárias ao sucesso – é o ponto fraco das equipas portuguesas (para não ir mais longe e dizer que é o ponto fraco da sociedade portuguesa).

Mesmo a melhor cultura futebolística portuguesa dos últimos 30 anos, a do Porto, é disciplinarmente fraca, ainda que relativamente forte em relação à dos outros. Quando eu vejo os jogadores do Porto a discutirem com os árbitros, a fazer faltas desnecessárias, quando vejo os treinadores a ar graxa ao cágado e a mistificar o que é vulgar, quando vejo a Direcção do Porto a ir contra o próprio jogo para não perder pontos, a dar a volta à lei para ganhar vantagem, não vejo o que os outros vêem. Não vejo demonstrações de força. Vejo um ponto fraco.

Mais: vejo o ponto fraco.

É por ali. É aquele o calcanhar de Aquiles.

E é-o não só porque é uma debilidade, mas porque é uma debilidade que não pode se corrigida. A cultura de vitória do Porto assenta num ponto básico: não dar o flanco. Fechar as alas e ir contra tudo e contra todos. Defender os seus até para lá do racional. Se o Luisão fosse do Porto, a Direcção do Porto faria tanto ou mais para evitar o castigo do que o que a do Benfica fez. (Aliás, pode-se mesmo dizer que o comportamento da Direcção do Benfica se baseou numa premissa: «Em Portugal, a equipa que ganha faz isto. Portanto, se queremos ganhar, também temos de fazer isto, porque deve ser o que se faz quando se quer ganhar.»)

Se a Direcção do Porto fosse contra essa cultura estaria a destrui-la, pela base. Não pode. Não sabe como. Quando se ganha, conserva-se o que se tem. Não se altera nada. Até porque, quando se altera, é quase inevitável perder-se.

O ponto fraco do Porto é e vai continuar a ser a disciplina. Tem muita, mas não tem obrigatoriamente a suficiente.

Quando Benfica ou Sporting conseguirem ser, realmente, diferentes (normalmente o que se passa quando se diz que tem de se ser diferente é que se quer fazer igual, mas com mais ou menos intensidade) no aspecto da disciplina, terão encontrado a brecha na armadura.

Mas não é, nem de perto nem de longe, fácil. É preciso ir contra tudo o que está instituído. Geralmente, os acessos de disciplina não duram mais que dois ou três jogos quentinhos. Ao terceiro já há vapor a sair pelas orelhas, asneiras a sair pela boca, árbitros insultados, adversários agredidos, faltas distribuídas a rodos. Para cultivar a disciplina é preciso muita força de vontade. Para a perder, basta um acesso de fraqueza. É como ser alcoólico ou toxicodependente. Podemos estar três anos sem tocar em álcool, mas se bebermos um copo o mais provável é não conseguirmos parar e, ao fim de uma ou duas semanas, já nem nos lembrarmos dos tempos em que estávamos sóbrios.

Quais são as probabilidades de uma Direcção de um clube português castigar o seu capitão e jogador fundamental unilateralmente para cultivar a disciplina? Realisticamente, quando é a própria Direcção a fomentar a mensagem de que os árbitros são corruptos e de que «nos roubaram o campeonato», nenhumas. É demasiado difícil. Seria preciso haver pessoas excepcionais à frente do clube (talvez seja uma boa oportunidade para irem ver a história do Félix, nos anos 60, aquele que muitos consideravam que viria a ser o melhor central português de todos os tempos).

Se eu fosse eleito presidente do Benfica, hoje, faria quatro coisas antes de todas as outras:

- como já disse antes, juntava toda a gente que trabalha com a equipa na sala de vídeo e passava o filme dos 5-0 nas Antas, em 2010;

- dizia apenas isto: «Vamos trabalhar» - porque o líder lidera pelo exemplo, e pelas acções, não pelas palavras, e o que o Benfica viesse a ser seria pelo que eu fizesse, não pelo que eu dissesse – deixaria de ser um clube de conversa e passaria a ser um clube de prática, sem desculpas;

- distribuía uma circular interna a dizer o seguinte: «Qualquer questão relativa a arbitragens que venha a ser levantada, em público ou em privado, tem de ser respondida da mesma forma, por jogadores,técnicos e todos os outros profissionais de futebol do Benfica: ‘Não falo de árbitros’. A sanção é uma multa de metade do ordenado.»

- rodeava-me de pessoas melhores do que eu, que me lembrassem do meu sentido e me mostrassem a minha fraqueza sempre que eu me sentisse compelido a ir contra o meu próprio código.

Em Portugal, as pessoas consideram que o segredo para vitória está nos árbitros. E têm razão. Mas enganam-se numa coisa. O segredo não está no controlo negativo dos árbitros. Está no controlo positivo. Não é mandar neles para tirar força aos outros – é usá-los, como elemento adverso, para ganhar força.

A equipa que primeiro descobrir isso e que consigam disciplinar-se (se e quando alguma o conseguir) será, provavelmente, a próxima força do futebol português.

12 comentários:

  1. Boas,

    Vejo a lógica de todo o raciocínio, e vejo-me obrigado a concordar. No entanto é bom lembrar, e acho que te esqueceste desse ponto no te texto, que esse é um caminho longo, um caminho que demoraria épocas, até conseguir surtir efeito. Até lá seriam despedidos treinadores - não que não o sejam com a actual politica - e pior, seria um tiro nas aspirações das direcções. Todos nós sabemos que para os Benfiquistas, uma conduta como falas, é para eles mostrar fraqueza perante a força do Porto. Ninguém quer um presidente assim. Uma politica de guerrilha, serve muito mais os interesses de uma direcção, do que os interesses do próprio clube. Cada qual quer salvar a sua pele. Uma direcção dessas não aguentada 1 mandato, e 1 mandato é realmente curto para fazer as tuas ideias passarem de ponto "fraco" a ponto forte.


    Abraço

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  2. Tenho a impressão de que daqui a 20/25 anos vou estar a dizer para comigo:" bolas, eue Ra um dos que acompanhava o blog do actual presidente do glorioso". Espero nao estar enganado.

    Outra coisa. Nao sei por que é que contratámos um motivador para o plantel. Tínhamos aqui o Hugo e aposto que ate é mais baratinho...

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  3. Aquilo que defendes penas é o adoptar dos valores fundadores do clube. Infelizmente na sociedade que vivemos, nada disso é valorizado, apenas a chico-espertice, o vencer a qualquer custo e o ser incapaz de admitir que os outros são melhores.
    Esse tipo de cultura precisa de ser imposta por algiém que seja moralmente superior ao que temos no nosso desporto e no nosso país.

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  4. O problema com esta atitude é que precisamos de homens incomuns para a adoptarem. Ora esses são, isso mesmo, incomuns, raros, excepções à regra. A aposta em valores, como outros já comentaram, é de resultados lentos, com os quais a voracidade do tempo actual é pouco gentil.

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  5. O adoptar dos valores de Cosme Damião,que sempre me orientaram tanto no desporto como na minha vida em geral(pelo menos tentei),é considerado hoje em dia como"fraqueza" e"utópico".De dentro do Benfica a direcção considera-a anti-benfiquista.É o reino do chico espertismo.Mas a utopia comanda a vida e não será ao fim de 61 anos que vou mudar ou desistir.PLURIBUS UNUN.

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  6. Concordo completamente contigo... mas penso que estás completamente enganado!

    Cumprimentos

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