sábado, 19 de janeiro de 2013

O Benfica-Porto que eu já vi cinquenta vezes


A proverbial boa vontade da nação benfiquista, a começar pelo seu representante oficioso (o jornal A Bola), fez do Benfica-Porto um jogo de dois momentos – a fífia do Artur e a defesa de Helton que levou a bola de Cardozo ao poste.

Quando o Benfica ganha dois jogos, em casa, ao Porto, em dez, e em cada um dos oito que não ganha se encontra «aquele momento» em que a coisa falhou, por azar ou azelhice, o que fica evidente, pela regularidade, é que a coisa não falhou por causa «daquele momento» mas precisamente por tudo o que se passou para além «daquele momento».

Se  o Artur não tivesse dado aquela fífia, ou se o Cardozo tivesse marcado aquele golo, o Benfica teria tido mais hipóteses de ganhar, mas a verdade (e a boa vontade dos benfiquistas, aqui, deve dar lugar à sensatez) é que, com 90 por cento de probabilidades, o Porto encontraria outra maneira de não perder aquele jogo.

Gosto de fazer previsões, pelo puro gozo de arriscar, e falho tantas vezes quantas as que acerto, mas quando previ que o Benfica encontraria o mesmo tipo de problemas que encontrou no ano anterior nem sequer era uma previsão. O risco de errar era tão pequeno que era mais uma certeza. O Porto joga com o Benfica, na Luz, da mesma maneira há 30 anos (que eu veja), e o Benfica joga com o Porto, na Luz, da mesma maneira há quatro. Quando o Benfica ganhou, perdeu ou empatou (e ganhou pouco) ao Porto, na Luz, nos últimos quatro anos, ganhou, perdeu ou empatou pelos mesmos motivos, que nada têm a ver com sorte – mesmo que a sorte possa intervir no desenrolar do jogo, como também é quase sempre o caso.

Mantenho o que já disse: que não é impossível, ao Benfica, com este estilo de jogo, ganhar oito jogos em dez ao Porto. Mas isso só é possível com jogadores muito melhores do que os que tem.

Vamos desmistificar esta história do Porto: o Porto, desde o tempo do Pedroto, foi construído para ser um Guimarães da Europa, e para competir, cá pelo burgo, com outro Guimarães da Europa (o Benfica), sendo que o Benfica, por atravessar um período de profunda crise na sua cultura de vitória, se transformou num Moreirense da Europa, estando agora a recuperar, sucessivamente, a sua dimensão.

Em Portugal, num ambiente viciado, ao Porto basta ser um Guimarães da Europa para ir ganhando quase tudo. Na Europa, joga com as armas que qualquer outro Guimarães da Europa vai usando para se manter na luta: um jogo disciplinado, certinho, a jogar no erro do adversário, feito a pensar em jogadores de classe média-média/alta – cuja principal capacidade seja a de manter a formatura a atacar e a defender, e jogar em equipa para colmatar lacunas individuais – e em treinadores pouco audaciosos cuja principal virtude seja a de conseguir fazer a transição do técnico anterior para o técnico seguinte com o mínimo de inovação, de forma a evitar retrocessos estruturais.

E isto chega para o Porto andar, constantemente, entre as 14 melhores equipas da Europa, o que lhe permite, depois, manter a superioridade em relação aos competidores internos que não têm as mesmas armas financeiras e a mesma experiência competitiva adquirida internacionalmente. Como o contexto europeu é menos viciado que o nacional, às vezes – normalmente quando coincidem um treinador melhorzinho, dois ou três jogadores melhorzinhos e um nível de concorrência inferior – o Porto consegue fazer o que um Guimarães, em Portugal, não consegue: ser o melhor no fim da época.

Mas, no quadro maior (considerando o topo de gama do futebol internacional), o Porto não é mais que uma equipa certinha, espremida até perto do máximo. Com grande regularidade, o Porto perde perante equipas com jogadores melhores, que não têm de inventar nada a não ser fazer o que fazem normalmente. E às vezes até é vulgarizado.

Este Benfica, é o contrário. É um Rio Ave da Europa a jogar à Real Madrid, mas com jogadores de Rio Ave, a quem acontece o que geralmente acontece aos Rio Aves quando jogam à Real Madrid com jogadores de Rio Ave: ganham com relativa facilidade às equipas da mesma dimensão (ou andam perto disso), porque têm o ascendente que advém do tipo de jogo mais audacioso; perdem quase sempre com os Guimarães da Europa, que têm um estilo de jogo mais cínico e cerebral, mais a pensar no resultado que na imagem, e que geralmente têm jogadores ligeiramente melhores (sendo que, ocasionalmente, podem ganhar) e perdem sempre com os Reais Madrid a sério, às vezes queixando-se da ingratidão da sorte, quando a verdade é que, a um Real Madrid, basta jogar q.b., mesmo fazendo o jogo parecer equilibrado, porque a classe superior dos seus jogadores resolve o assunto num minuto, na esmagadora maioria das vezes.

O estilo de jogo do Benfica é à grande da Europa – o estilo. O do Porto, não. Por isso é que, mesmo ganhando de vez em quando, o Porto não deixa marcas. Tal como um qualquer Lyon ou um qualquer Valência não as deixam. São equipas sem brilho, que jogam no falhanço dos adversários, de índole defensiva, feitas para não perder. Quando as outras equipas perdem, elas continuam de pé, e assim parece que ganham, quando, na verdade, se limitam a não perder – o que é diferente. São equipas que, culturalmente, representam muito pouco. Uma semana depois do Porto ser campeão da Europa com o Mourinho já ninguém se lembrava a não ser os portugueses.

O estilo de jogo que o Jesus pôs o Benfica a jogar, pelo contrário, se for colocado em prática por jogadores de classe superior, mesmo tendo sempre dificuldades em impor-se contra equipas da mesma igualha que tenham um registo mais cínico, cria uma memória. O risco é uma característica dos grandes. Só arriscando a liberdade se atinge a grandeza. Manter a segurança é típico dos que sobrevivem, mas não dos que lideram.

É claro que entre este Benfica e a grandeza se encontram os Jardéis, os Enzo Pérez, os Maxis Pereira, os Cardozos…

A superioridade do Porto, na Luz, não foi técnica. Os jogadores do Porto não são tecnicamente muito melhores, na generalidade, que os do Benfica (apesar de serem melhores, e por isso é que são mais caros). Parecem muito melhores porque o que se lhes pede é mais fácil – quer em qualidade quer em variedade.

A superioridade do Porto, na Luz, foi (e é sempre) posicional, porque a matriz de jogo do Porto é posicional.

Apesar de não parecer, o futebol é muito parecido com o râguebi que lhe deu origem. Aparentemente é muito aberto e aleatório, porque as suas duas linhas básicas se movimentam mais, em termos verticais, mas não o é – continua a ser um jogo territorial, condicionado pela colocação das balizas nas duas linhas de fundo, em que a posição da bola marca o ponto de choque entre as linhas, numa acção constantemente repetitiva. É um jogo muito mais técnico, porque é mais difícil controlar a bola com os pés do que com as mãos – e isso leva a que quem consiga fazer bem os gestos técnicos mais básicos invariavelmente ganhe vantagem –, mas continua a ser um jogo de choque, repetitivo, entre linhas, com a defesa a rechaçar o ataque, de uma maneira ou de outra, na esmagadora maioria dos embates.

O estilo de jogo «apoiado», como se costuma dizer do Porto, é um estilo que permite manter as linhas juntas apesar da bola. O Barcelona faz a mesma coisa, mas muito melhor, e é por isso que consegue pressionar imediatamente o jogador da bola quando a perde. Ocupando os espaços ao pé da bola, os jogadores adversários, se não estiverem preparados para a fazer sair daquele raio de vinte metros – geralmente porque não têm técnica nem sincronismo colectivo para isso – perdem-na, são forçados a recuar, a fazer faltas, e a jogar directo para os avançados (ou como disse, e com razão, o Vítor Pereira, de pontapé para a frente).

Ao Porto, bastou adiantar a sua linha média dez metros, de forma compacta, de maneira a tapar as linhas do primeiro e do segundo passe na faixa central (em termos de latitude aquela faixa que começa dez metros para lá da linha do meio-campo e acaba dez metros para cá de quem defende), para ganhar uma vantagem posicional que se transformou em vantagem territorial.

O Benfica não tem argumentos técnicos e tácticos para superar este tipo de defesa, seja com o Porto, com o Bayer Leverkussen ou com qualquer outra boa equipa europeia que a consiga executar de forma disciplinada.

Mas também não há grandes segredos em relação a como dar a volta a isto. Mesmo mantendo o estilo de jogo arriscado e, admita-se, pouco inteligente, que é o do Jesus, sem ser necessário mudar de registo, este Benfica teria, não digo vulgarizado, mas dominado o Porto se tivesse, na sua defesa, um jogador que conseguisse passar a bola para o miolo com segurança e se, nesse miolo, tivesse dois médios com categoria suficiente para jogar entre as linhas do Porto, capazes de receber e distribuir a bola sob pressão – com um ou dois defesas a uma distância de três/quatro metros – sem a perderem imediatamente por a passarem para o sítio errado ou tomarem a opção errada. E reparem que não estou a falar em Aimares ou em Carlos Martins. Esses não conseguem. Pensam, às vezes até vêem a jogada, mas não a conseguem executar.

Bastaria isto para, mesmo perdendo muitas bolas no ataque em jogadas de sucesso improvável (como é timbre dos seus jogadores), o Benfica desmantelar o jogo posicional do Porto, obrigá-lo a recuar as linhas, fazê-lo perder a vantagem territorial e, por jogar mais depressa com a bola perto da baliza – como é que surgiram os golos do Benfica? –, marcar golos, impedir o Porto de os marcar, e ganhar o jogo.

O Benfica-Porto que eu vi foi isto. O Braga-Benfica também vai ser – o que não quer dizer que o resultado venha a ser o mesmo, porque, mesmo tendo sido isto, o Benfica teve uma hipótese real de vencer o jogo, e o Porto tem melhores jogadores que o Braga.

A verdadeira questão que deve intrigar os benfiquistas não é se o Porto é isto ou aquilo, porque  o Porto é a mesma coisa há 30 anos, nunca conseguirá ser outra e ganha-se ao Porto da mesma maneira que se ganha a qualquer outro Porto – sendo melhor física, técnica e tacticamente. É, sabendo que o que separa o Benfica dos seus objectivos é apenas ganhar ao Porto, se este Benfica do Jesus, e com o Jesus, conseguirá vir a ser aquele Benfica que o do Jesus ainda não conseguiu ser.

E, com isto, não estou necessariamente a dizer que não.

Mas isso tem de ficar para a próxima, porque a prosa já vai longa.

8 comentários:

  1. "Só arriscando a liberdade se atinge a grandeza."Nem mais.É o risco que acompanha a vida.

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  2. Aproveito este post para responder aos comentários do outro, sobretudo ao do nosso portista residente, que tenho muito gosto de aqui ter, como já disse e repito, sem hipocrisias nem cinismos.

    Caro Nuno, a minha posição em relação ao que referiste não podia ser mais simples:


    - Em primeiro lugar , eu gosto do Pedro Proença. E o erro do ano passado não foi do Proença, nem foi pelo Proença ou pelo fiscal-de--linha do Proença que o Benfica deixou de ser campeão.

    - Como deve ficar claro depois de ler este post, tento não embarcar facilmente em tretas - mas nem de um lado nem do outro.
    Para mim, o Porto foi melhor que o Benfica no ano passado e foi melhor do que o Benfica este ano - porque tem um jogo especificamente construído para ser mais forte nestes momentos, ao contrário do Benfica, que está feito para ganhar a adversários mais fracos.
    No entanto, no ano passado, o Benfica perdeu porque estoirou fisicamente; este ano não perdeu porque não estoirou e porque, ao contrário do que aconteceu na última época, não chegou ao jogo animicamente destruído por perder 5 pontos de avanço em dois jogos.
    E nada disto invalida a evidência de que o Porto decidiu o campeonato, nesse jogo, com um golo em fora-de-jogo a cinco minutos do fim. Como o Vítor Pereira, o Pinto da Costa e qualquer portista sabe perfeitamente. Este ano vejo-o indignado. O ano passado vi-o euforico.
    Sem esse erro do fiscal-de-linha o Porto teria ganho esse jogo, mesmo sendo melhor? Dificilmente. Era justo que ganhasse? Provavelmente. Mas estamos a falar em «justiça»? De acordo, vamos a isso.

    - O argumento do «caso julgado» é a principal prova da consciência pesada dos portistas. Recomendo-te, se tiveres vontade e oportunidade, que consultes um livro de Princípios Gerais de Direito. Qualquer um.
    Se o fizeres, logo nas primeiras páginas encontrarás uma ideia essencial: Direito não é justiça. Tenta ser. Mas não é. A justiça é o que a lei tenta ser. O Direito é o que a lei consegue ser. E, neste nosso país, a lei é feita por corruptos, para se protegerem mutuamente.
    No caso do Apito Dourado, fez-se Direito, cumpriu-se a lei (de acordo com o tribunal), mas é claro que não se fez justiça.
    As escutas demostram, claramente, que, entre outras coisas, Pinto da Costa encomendou prostitutas para corromper os árbitros. O tribunal decidiu não aceitar a prova, por questões burocráticas. E é só isso.
    Eu sei, tu sabes, toda a gente neste país, incluindo o Pedro Proença, sabe que Pinto da Costa é corrupto, que é corrupto até ao osso, que sempre foi corrupto. Sabemos que outros também são corruptos, ou tentam ser, mas comparar a acção de Pinto da Costa a uma escuta em que o Vieira é apanhado a dizer «O João, está» como prova de culpa igual é a mesma coisa que dizer que um tipo que mete uma pastilha para tentar ganhar uma etapa de montanha é tão bandido como o Lance Armostrong, que se dopou a vida toda para ganhar 7 Voltas à França.

    (continua)

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  3. E sim, é verdade que, provavelmente, só me é fácil admitir a corrupção (ou as tentativas disso) do Vieira e dos Veigas porque o Benfica só ganhou dois campeonatos em vinte anos etenho pouco a perder, mas eu sei, tu sabes, e toda a gente sabe, que a única coisa que leva os portistas a negar, até à morte, e contra todas as evidências, que Pinto da Costa é o maior padrinho da corrupção do futebol português de todos os tempos, é o facto de terem ganho vinte e tal campeonatos em trinta anos.
    Porque isso significa uma coisa fundamental, que é o preço (alto) que os portistas vão ter de pagar, um dia, pela negação: significa que o único período de verdadeira grandeza do Porto está irrefutavelmente ligado à prática continuada da corrupção do sistema do futebol em Portugal, e que todo esse sucesso, por mais mérito que possa haver, está manchado pela suspeita e pelas próprias evidências.
    Nunca se saberá o que é mérito e o que é batota, onde é que acabou uma e começou o outro. E em relação a isso, não há nada que os portistas possam fazer - a não ser, como é seu costume, «parasitando» o Benfica de maneira a tentar justificar as suas próprias acções, mesmo que seja inventando alarvidades como a do «clube do regime», que é, a seguir à insistência na inocência, a maior mentira (consciente) da propaganda portista.
    E eu sei que isto parece conversa de fanático, ou de desespero, mas a melhor parte é que não é: é mesmo assim.

    A tragédia do Porto, hoje ainda não visível, é pensar que tem a história do seu lado, quando não tem - tem apenas o momento. A História vai dizimar este período. A propaganda portista está na fase de branqueamento, em que, como vencedora, tenta reescrever a História. Não o conseguirá. Por mais páginas de jornal que sejam publicadas com as bodas de ouro e os campeonatos da era Pinto da Costa, as evidências são mais fortes, e persistirão. É o problema da era moderna: nada se perde, tudo fica acessível. A História já não se reescreve com a facilidade de antigamente.
    Outros serão infectados. Benfica incluído. Porque todos vivem neste tempo. Mas só o Porto será realmente castigado, porque só o Porto ganha. Só o fim da presidência de Pinto da Costa poderia atenuar essa imagem, mas mesmo isso não chegará. Pinto da Costa continuará a pairar sobre as Antas muitos anos depois de lhe chegar o Alzheimer.
    E o mais cruel é que não só já não há nada a fazer, porque a história está feita, como serão os próprios portistas a arrastar o clube para baixo, porque continuarão a negar as evidências e a recusar a penitência. Afinal, este pedaço de história é a única história que têm para se agarrar. Sem isto, sem o Pinto da Costa e as suas façanhas, são o quê?

    Queres uma prova de como estou certo?
    Eu dou-ta.
    Responde a esta pergunta muito simples, em consciência, só para ti, como se estivesses a pensar num dirigente qualquer do Botswana, e depois compara essa resposta interior com a resposta que dás em voz alta:
    - Um homem que oferece prostitutas a árbitros de futebol é, ou não, um corrupto?

    Vês?

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    1. antes de pedrotos e pintos da costas o porto era um clube honrado, apesar de ligado ao Estado Novo como era o Sporting, mas honrado. Agora, é um pedaço de merda, rei, numa sociedade acéfala e corrupta.

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  4. Melhor que o post, é a resposta ao outro post. A meu ver, merecia ser elevada a post.

    Abraço Hugo

    Germano Bettencourt

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  5. o que o Hugo diz é o que digo desde que me lembro: não comparemos um ladrãozeco a um pedófilo...

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  6. Estou com o Germano Bettencourt - brutal prosa, Hugo! Conseguiste escrever tudo direitinho, em relação ao FCP, o que penso e vou sabendo mas que não consigo arrumar dessa forma :) E sim eles sabem que PdC e seus pares foram e são corruptos. Mas tentam enganar-se a eles próprios e vão (o clube) acabar por implodir, quando o pacemaker já não for suficiente para o velho e metanoso putanheiro.

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  7. A tua resposta ao comentário, Hugo, é excepcional. Estás em forma.

    Abraço

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