quinta-feira, 28 de junho de 2012

Deus dará

«Sabes qual é a sensação que eu tenho quando isto acontece?», perguntava-me a minha mulher ontem, no regresso a casa. «A de que isto acaba sempre da mesma maneira.»

Ao que eu lhe respondi: «A sensação que eu tenho é que começa sempre da mesma maneira.» Ao Deus-dará.

Estando ambos frustrados, nenhum dos nós estava verdadeiramente revoltado, nem insatisfeito. O que esta equipa fez nos últimos 15 dias foi muito bom, e fomos até ao limite. Perder com a melhor selecção do Mundo por um penálti é melhor do que qualquer outra equipa tenha feito nos últimos quatro anos, incluindo a Alemanha, o Brasil, a Itália e muitas outras do top-15 (e devemos lembrar-nos que lhes ganhámos 4-0 na Luz – e se era amigável para eles também era amigável para nós…).

O Ronaldo podia ter sido o primeiro a marcar? Sim, podia. E também podia ter sido o primeiro a falhar. Prefiro salientar como um defesa, Sérgio Ramos, supera o trauma de perder uma Liga dos Campeões por falhar um penálti marcando outro em que mostrou mais classe que qualquer outro jogador.

Esta equipa espanhola é a primeira na história do futebol a defender em três tempos: o primeiro, com bola – que é o que faz quando a circula a meio-campo sem progressão -; o segundo imediatamente após a perder – o que só é possível porque os seus dois melhores jogadores, Xavi e Iniesta, têm uma cultura tão defensiva quanto ofensiva, permitindo à equipa trocar imediatamente o chip assim que perde a bola, logo no meio-campo do adversário, sem sentir o impulso de ter de descer no terreno para defender –; e o terceiro (o mais fraco, mas mesmo assim eficaz) no seu meio-campo, só possível graças a dois jogadores de classe mundial, Piqué e Sérgio Ramos.

Ao acrescentar o tempo defensivo com bola aos dois tempos tradicionais, a Espanha (a Catalunha, melhor seria dizer), inovou, e recolheu os frutos dessa inovação: tornou-se a equipa que melhor defende no Mundo, e ganhou os troféus. Novamente, o mantra: os ataques ganham jogos, as defesas ganham títulos.

Não é impossível que uma equipa feita em cima do joelho ganhe um Europeu, ou um Mundial, a outra feita em cima de anos e anos de trabalho cuidadoso, como é a espanhola, mas, além de não ser justo – não, Ronaldo, não foi uma injustiça, o que se passou ontem, infelizmente, é justo, e quanto mais depressa compreendermos isso mais depressa passaremos de competir a ganhar –, não é provável.

Porque, afinal, que equipa portuguesa é esta? Se quisermos ser justos, só podemos responder de uma maneira: é a equipa do Paulo Bento. Foi ele que pegou nela, como escolha secundária, num momento em que Queirós, Laurentino Dias e Gilberto Madaíl (é bom meter nomes nestas coisas, porque o «sistema» não é uma entidade meramente abstracta), a tinham usado para jogar os seus jogos de vaidade e poder, num momento em que ela estava prestes a ser entregue, num saco de plástico, a Mourinho, para ver se ele a safava à segunda-feira, no dia de folga no Real Madrid. Foi Paulo Bento o primeiro, e o único, a acreditar nela, a ser português, a saber que era possível, enquanto os dirigentes se escondiam, preparados para dizer: «Nós tentámos…» quando a coisa desse para o torto. Foi ele quem, à sua maneira, a defendeu, quando ninguém queria saber dela, enquanto os Bosingwas deste país ainda não tinham percebido que a corrente tinha mudado. Foi ele quem deu o exemplo ao chamar Veloso, ao chamar Carlos Martins, ao recuperar, durante meses, um Ronaldo que toda a gente já dava como perdido para a selecção. Até há 15 dias, reconheçamo-lo todos, mais ou menos apegados à selecção, mais ou menos crentes, esta equipa era a equipa do Paulo Bento.

Mas hoje, quando todos a sentimos nossa, o que é dramático é que continua a ser a equipa do Paulo Bento. Porque é que é dramático? Porque, quando o Paulo Bento for à vida dele, volta tudo ao princípio. E o que encontraremos nesse princípio será o que encontramos em todos os princípios: nada. E o que poderemos vir a ter será o que sempre tivemos: o que Deus der.

Temos a equipa do Paulo Bento contra tudo e contra todos, como antes tivemos a equipa do Queirós contra tudo e contra todos, como antes tivemos a equipa do Scolari contra tudo e contra todos, e assim sucessivamente. Ao Deus-dará.

Há um facto perfeitamente incontestável sobre a verdadeira razão para os sucessos e os insucessos da Selecção Portuguesa: a sua afirmação como equipa de nível internacional coincide perfeitamente com a liberalização do mercado de futebolistas, na sequência da lei-Bosman. Assim que os melhores futebolistas portugueses – que não são melhores que os futebolistas portugueses até aos anos 90 – saíram de Portugal para jogar futebol, a Selecção portuguesa ganhou nível mundial.

Ou seja: o futebol português interno é um factor castrador da Selecção, e não potenciador. Ao contrário do que acontece com todos os nossos competidores europeus.

Apenas isto é suficiente para identificar o verdadeiro problema do nosso futebol: as elites decisoras. E este não é um problema apenas futebolístico: é um problema nacional. Portugal é, hoje, um país de potencial elevadíssimo e castrado pelos seus líderes, fracos e incompetentes. É um problema de regime, e aí o futebol pode novamente ajudar-nos, porque é no futebol que encontramos o primeiro representante do regime político português dos últimos 40 anos: Jorge Nuno Pinto da Costa, um cacique corrupto e inimputável que representa, paradigmaticamente, o princípio instituído do sacrifício de todos para o proveito de alguns, ante a complacência de um Estado-marioneta de Direito.

Tenho, da Selecção Portuguesa, uma visão pouco fundamentalista. Representa Portugal, sim, mas representa sobretudo o futebol português. Não me choca, por isso, que tenha dois ou três brasileiros a jogar nela – se metade dos jogadores do campeonato português são brasileiros, como é que uma selecção com dois ou três brasileiros não representa a realidade do futebol português?

No entanto, abrindo a lente, posso dizer que a Selecção Portuguesa de futebol é não só o principal elemento identitário da nação portuguesa, actualmente, como o seu melhor produto cultural e sócio-económico da era moderna. Num país destinado ao soft power, à projecção cultural dos seus valores como factor diferenciador e criador de poder no mundo, dada a impossibilidade de termos verdadeiro hard power, não temos nenhuma arma, quer de coesão interna quer de força externa, como a Selecção Nacional de futebol.

Se é ridículo ou não, não sei. Se é triste ou não, também não sei. Que é verdade, é.

A Selecção não é só o melhor que temos: é a única coisa a que, todos, nos podemos agarrar.

Talvez sim, talvez seja triste. Talvez não. Talvez seja apenas um princípio.

Mas é o mais importante.

E, por isso, depois destes dois anos, o Paulo Bento passou a ser dos meus. Quer esteja na selecção, no Benfica ou no Porto, como inevitavelmente acabará por estar. Porque é com gente assim, como os seus defeitos e as suas virtudes, mas com esta alma, que os meus filhos têm de crescer.

Não vou esperar a Selecção ao aeroporto. Não posso.

Não sei se a Selecção se apresentará ao público. Duvido. Eles querem férias e os dirigentes não sabem o que querem.

Mas, no próximo jogo da Selecção, seja em Lisboa, em Braga, no Algarve ou no Porto, eu vou estar lá, e levo a família.

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