Dizer isto não é novidade. Os dois últimos anos têm sido péssimos. Isto só se torna relevante porque, depois do jogo em Paços de Ferreira (o do 0-2 3-2 em dez minutos sem ninguém mexer em nada), o Sporting estava a conseguir aquilo que toda a gente parece disposta a aceitar como o que era o seu grande desafio: salvar-se.
É que estes não são tempos normais de crise para o Sporting. São tempos em que o Sporting, de facto, joga o seu futuro, e decide se se vai tornar num dos três grandes, outra vez, ou se se cristalizará como apenas o terceiro grande – o terceiro, hierarquicamente falando, algo que, hoje, ainda não se possa dizer claramente que é.
O Sporting não vai acabar, obviamente, nos próximos vinte anos, mas se o Sporting não conseguir ganhar mais que um ou dois campeonatos nesses vinte anos perderá, definitivamente, a sua grandeza equivalente, em termos de adeptos, em relação a Benfica e Porto, pois, por mais capacidade de renovação que as famílias sportinguistas possam ter, não aguentam, simplesmente, a pedalada.
Se o Benfica começa outra vez a ganhar e a crescer em número de adeptos, daqui a trinta anos a desproporção entre benfiquistas e sportinguistas pode, muito bem, passar de 1,5/2 para 1 para 3 para 1, ou até mesmo de 4 para 1, se se considerar que a maior parte da igualdade demográfica entre um e outro está entre as pessoas mais velhas, que (eventualmente…) acabarão por morrer.
Os primeiros jogos do novo Sporting pareciam ser cataclísmicos. Todos concordavam que era a última oportunidade, e a coisa ia direitinha ao fundo. Aconteceu Paços de Ferreira. Nos dois meses seguintes os sportinguistas voltaram a acreditar no destino. Deus disse-lhes: «Estão a ver? Eu não vos abandonei.»
Depois aconteceu o que lhe acontece sempre: o Benfica.
A proximidade do seu Leviatã começou a trabalhar com os nervos do Sporting. Aconteceu-lhe aquilo que acontece tantas vezes a quem não está seguro do que vale, e meteu na cabeça que tinha de fazer mais do que aquilo que sabia. É como o defesa-esquerdo que não joga muito e que vai jogar o seu primeiro dérbi. Como não se sente seguro de si pensa que tem de mostrar a toda a gente que sabe driblar, centrar, fintar com o pé direito, parar a bola com o peito… na verdade, esse defesa esquerdo só sabe defender. Ora, assim que começa a tentar fazer o que não sabe, dá um passo para o desastre. É a clássica história que acaba sempre mal.
Começaram com a rábula dos bilhetes, que não teve pés nem cabeça e que é o mais demonstrativo de todos os episódios desta telenovela – pode-se questionar tudo o que se passou depois, inclusivamente a oportunidade e a intenção de quem pôs a rede, mas não se pode questionar a nítida intenção provocatória do pedido de 10 mil bilhetes quando se sabia que as possibilidades de os receberem eram mínimas (e eu estou à vontade porque até não fui contra que se dessem os bilhetes).
Viu-se o Cirúrgico Barroso a mandar bitaites, o Gordinho a falar do Mantorras, uma série de outras pequenas parvoíces enquanto, do lado do Benfica (até porque havia outras guerras para travar), só chegava silêncio.
Apareceu então a gaiola. Eu sou contra a gaiola. Não é que a gaiola não faça sentido, em termos de segurança, mas é porque também sou contra as claques. Acho degradante pôr pessoas dentro de uma rede, num estádio de futebol – aliás, acho degradante pôr pássaros dentro de uma gaiola – mas eu só não as punha porque, comigo, as pessoas que deviam estar dentro de uma gaiola nem sequer entravam no estádio. Filmava-os a todos quando estivessem a gritar «filho disto» ou «vai para ali» e, no jogo seguinte, ficavam à porta por atentado ao pudor ou por não caberem num espectáculo desportivo.
«Mas toda a gente diz e isso é descriminatório!»
Estou-me cagando. Fossem queixar-se ao Papa. Processassem-me. Mas no Estádio não entravam.
E em relação à rede, fico por aqui.
Até aos 40 minutos da primeira parte tudo estava a correr de acordo com o plano do Sporting. na hora da verdade, após meses de preparação para o jogo da verdade, o Benfica, cansado, desconcentrado, desfalcado,impreparado para o adversário que tinha à frente (fresco, organizado, treinado ao pormenor durante a semana), estava à sua mercê.
Depois, no único ponto vulnerável pelo qual a estratégia podia falhar – os cantos – a muralha abriu. A nação benfiquista entrou. E o Sporting bipolar voltou a entrar na espiral negativa.Daí para a frente tem sido um desastre. Como o Rui Dias muito bem disse na sua excelente crónica do jogo, no Record, (considero o Rui Dias, que conheço pessoalmente, o melhor jornalista desportivo português e, mais uma vez, ele insistiu em dar-me razão), o Benfica apelou à mística que, durante tantos anos, nomeadamente contra o Sporting, fez a sua sobrevivência e a sua prosperidade, e, com suor e sorte, aguentou um jogo que parecia impossível de ganhar.
Já o Sporting, no momento seminal, tornou a encarar uma fragilidade crónica, que o persegue historicamente: a incapacidade de matar.
Da força metafísica de um e da fraqueza existencial de outro se fez um resultado de que só daqui a uns anos conseguiremos perceber o verdadeiro alcance – uma vez que, com uma derrota, o Benfica facilmente perderia o campeonato.
Depois do jogo, falou o Paulo Judite Cristovão, que viu aí a oportunidade de ser o presidente de faroeste que os sócios não quiseram que ele fosse, e de mostrar onde é que está a força dentro da Direcção do Sporting.
Os adeptos fizeram a sua parte, praticando um acto criminoso para o qual vinham evidentemente preparados, como se comprova pela prisão de uma série deles à entrada do Estádio na posse de material incendiário. Com isso acabaram por retirar qualquer legitimidade à contestação institucional da sua Direcção. Mais uma vez, a Juve Leo mostra quem é que manda, realmente, no Sporting.
O presidente, que estava convalescente para ir ao estádio mas não está para o resto, entrou à leão, falando de condições degradantes e fazendo ameaças de gravador na mão para, hoje, à saída do MAI, sair à cordeiro, falando em pacificação e na «situação difícil do país», como se não se tivesse passado nada.
O Cirúrgico Barroso, que aparece pouco na televisão, também achou que devia vir falar outra vez da «oportunidade» da «caixa de segurança» - um argumento perfeitamente estúpido se se considerar que só há dois jogos em que a dita caixa faz sentido – com Sporting e Porto, eventualmente com o Braga, que também joga golfe – e que o Porto ainda não jogou na Luz.
O Sporting fala a três vozes em menos de 48 horas. Quatro se lhe juntarmos a do Duque, que disse o contrário disto tudo porque não disse nada. Quatro vozes de dentro da estrutura dirigente do Sporting, sobre um assunto paralelo, que só existe porque o Sporting perdeu com o Benfica.
Ora, o problema do Sporting é precisamente esse. Perdeu com o Benfica. É a derrota que os sportinguistas não conseguem engolir. Perder com o Porto é chato. Perder com o Benfica é trágico.
O Sporting perdeu o jogo, perdeu o campeonato – é que perdeu mesmo, não duvidem, se não for para o Benfica é para o Porto (aliás, já o tinha perdido) – e perdeu a cabeça.Assim que os resultados falharam, o novo Sporting recaiu no velho Sporting, muito vocal, cheio de opiniões pessoais, cheio de egos a reclamarem o direito aos seus cinco minutos sem acrescentarem nada de real ao esforço colectivo, e acabado de perder.
Se as fragilidades são as mesmas porque é que os resultados, a longo prazo, deveriam ser diferentes?
Pode o Sporting, neste jogo com o Benfica, ter perdido o pé?