Pegando no Jesus onde o deixei ontem, estabilidade não é qualidade. Estabilidade só é qualidade quando já existe qualidade para estabilizar. E o Benfica ainda não tem qualidade suficiente para poder dizer: «Vamos estabilizar aqui.»
O Benfica precisa de crescer mais, de ficar muito melhor antes de se poder dar ao luxo de dizer que está satisfeito e que precisa de estabilizar.
O Jesus oferece ao Benfica (e continuaria a oferecer caso continuasse para o ano que vem) uma hipótese real de lutar por títulos. É isso, aliás, que faz dele o melhor treinador que passou pelo clube desde Eriksson. É um competidor e, mesmo com uma equipa inferior, não entrega os pontos. Com Jesus, o Benfica continuará a andar na luta e, com mais ou menos este ou aquele jogador, com mais ou menos zaragata, arrisca-se a ganhar um campeonato, ou uma Taça, ou a ir a uma eliminatória avançada da Champions.
Mas há uma condição fundamental que é preciso perceber nos momentos de decidir: no futebol e na vida não há neutralidade. Não existe a «estabilidade». Quando um sistema está «estável», na verdade, está a decair, porque outros sistemas que o rodeiam estão a progredir. No futebol ou se está a melhorar ou se está a piorar, mesmo que não se queira sair do mesmo sítio.
Dito isto, chegamos ao fulcro da questão: o que o Jesus tem para dar ao Benfica é suficiente que justifique perder a oportunidade de apostar num treinador novo, que traga alguma coisa que o Benfica não tem tido?
Quando me refiro ao que o Benfica não tem tido refiro-me, pessoalmente, à filosofia colectiva, que ainda deixa muito a desejar, e ao rendimento dos jogadores, que não é satisfatório. A jogar como joga, (pensando, geralmente, primeiro na solução individual e depois na solução conjunta), e a aproveitar o que aproveita do potencial dos jogadores que consegue contratar (penso que falei aqui em 80 por cento, mas se calhar estou a ser ligeiramente benevolente…), o Benfica não tem condições de lutar pela subida à elite europeia.
Não é um treinador novo que muda isto sozinho, mas ajuda a mudar. As organizações são as pessoas. O segredo das boas organizações é conseguir aproveitar e guardar (de forma cumulativa, cultural) o que há de melhor nas pessoas que por elas passam. Se o Benfica tivesse tido essa capacidade, de aprender, considerando a quantidade incrível de sabedoria e qualidade que por lá passou nos últimos vinte anos, hoje estaria entre essa elite. Pensem só: Eriksson, Artur Jorge, Manuel José, Mourinho, e tantos treinadores e jogadores de grande nível, perdidos no vácuo de liderança.
O Princípio de Peter
O princípio de Peter diz-nos que todas as pessoas progridem profissionalmente, por mérito, e naturalmente, até chegarem a um patamar em que a exigência supera a sua competência. Isso só é revelado quando essa pessoa é colocada perante um desafio para a qual não está preparada. É um processo natural, em que não há erro da parte de ninguém, nem de quem progride nem de quem lhe permite progredir, apenas selecção natural. Eu estou convencido de que o Jorge anda desde Maio de 2010 a bailar sobre o seu limite de Peter e ainda não vi nada, este ano, que me faça pensar o contrário.
E digo mais: a culpa não é dele, nem é de ninguém.
Na época passada o barco de um Benfica campeão revelou-se demasiado pesado para as mãos dele, e, à melhoria que está a haver este ano, atribuo-a a uma série de mudanças internas e externas que elenquei logo nos dois primeiros posts deste blog e entre as quais não coloco o Jesus entre os mais relevantes. O Jesus de hoje é o mesmo de há um e de há dois anos, também já o disse. Mudou o que o rodeia. Com isso, acrescente-se, o Jesus está a caminho de ser campeão, e isso atesta a sua qualidade. (É só para não pensarem que tenho alguma coisa contra o homem, porque não tenho. Simpatizo com o Jesus – desde que esteja na minha equipa, claro...)
Não acredito que o Jesus tenha alguma coisa para acrescentar ao que já trouxe ao Benfica. Nem me parece que tenha grande capacidade (nem tempo, nem oportunidade) para aprender o suficiente que o torne assim tão melhor do que o que é. O que ele sabe, já usou e está a usar. Teve batalhas suficientes para isso, em número e intensidade, e a que se avizinha, a maior de todas, será, certamente, definitiva. Vai exigir ao Jesus tudo o que ele tem.
(Acrescento que a forma como se está a revelar o estado de espírito de alguns jogadores suplentes, num momento em que estão tão perto de conseguir uma época brilhante em termos colectivos, não abona muito a favor do que o Jesus tem…)
Um cenário que envolva a continuidade do Jesus será sempre na perspectiva que referi ontem, de tentar melhorar só através do clube, tentando manter constante a parte técnica. É racional, reafirmo-o. Em termos de gestão, é do que os economistas gostam – uma opção conservadora, ponderada, desapaixonada, sem excessos. Até acho que é a opção que a maioria dos adeptos do Benfica prefere, porque a maioria tem bem fresca a memória dos muitos anos de confusão que antecederam a chegada do Jesus à Luz, sem resultados decentes. Manter um treinador que vai ganhando é uma tentação muito forte – e não digo que seja a opção errada, insisto.
Mas não seria a minha solução.
É uma questão de consumo. O famoso desgaste, se quiserem.
Nós queremos que o futebol seja paixão, mais do que fidelidade. Somos fiéis aos clubes e isso já nos chega. O que queremos do clube é que nos alimente a paixão, é que nos dê muitas amantes, transcendência. Podemos aguentar uns meses de abstinência, se sentirmos que são preliminares, se nos parecer que a promessa de grandes prazeres no final é suficientemente promissora. Mas se virmos que o que ali está é uma equipa frígida, que não desenvolve nem tem hipóteses de desenvolver, não estamos dispostos a esperar nem mais uma semana: queremos outra.
O Jesus anda há seis meses a prometer um final em grande. Sobreviveu (miraculosamente, diga-se) aos desastres da última época, graças ao orgasmo brutal da primeira época. Isso quer dizer que os benfiquistas estão mais preparados para sofrer na expectativa – o que é bom, porque quanto melhor e maior for a expectativa maior é a recompensa. Mas não exageremos.
Nem os adeptos do Porto, que tiveram nos últimos vinte anos os melhores momentos das suas vidas, e prazeres com os quais não podiam suspeitar, têm uma capacidade de suportar mais que algumas semanas quando percebem que a boneca é de borracha.
Não é só em Portugal que isto funciona assim. Quando a novidade acaba toda a gente quer mudar. Até os jogadores. Sobretudo os jogadores. Para nós, que vemos o futebol de fora e de forma mais prolongada no tempo, o convívio cansa. Para um futebolista, que tem uma esperança média de alta competição de dez anos, para quem o ritmo é rapidíssimo, voraz, que tem de viver tudo depressa e em máxima intensidade, um treinador como o Jesus torna-se insuportável, sobretudo a partir do momento em que já só tem coisas para repetir, quando já não ensina o suficiente.
No contexto europeu, como o nosso, em que o papel do treinador é extrapolado – ao contrário do americano, por exemplo, em que os jogadores têm muito mais responsabilidade, muito mais crédito e um ónus muito maior nos resultados da equipa – é isso que faz com que seja raro um treinador ficar muito tempo à frente de uma equipa. É contra-natura.
O Jesus está quase consumido, e é assim que tem de ser. Nem ele espera que seja de outra maneira. A sua própria maneira de trabalhar é de desgaste rápido. Está-lhe entranhado. Isto é a selva, não é a pradaria. Como ele diz, «o futebol é o agora».
Se o Benfica e os benfiquistas caírem na ilusão de que o Jesus é homem para lhes dar aquilo de que precisam durante mais dois ou três anos vão cair num duplo equívoco e ter um duplo problema: não só não vão ter as vitórias que esperam, porque não vai haver dinâmica de vitória, como, a meio do caminho, se vêem nas mãos com o problema de terem um treinador que já não serve, de terem deixado passar o tempo certo para mudar e de não só ter deixado passar de prazo a dinâmica que havia, apodrecendo o que havia sido ganho, como ter comprometido decisivamente a dinâmica do ciclo seguinte, ao não tratar o treinador seguinte como uma primeira escolha mas como um bocado de estuque para tapar um buraco.
Mais do que ser uma questão de saber acabar é de saber evoluir. Passar de um bom para um melhor. Nos jogadores, nos treinadores, nos dirigentes.
Para isso é que uma estrutura realmente serve. Serve para aprender o que um Jesus tem para ensinar, consumir o Jesus (não tenham pena, o Jesus é bem pago para ser consumido), e experimentar um Jesus melhor – arriscando, atente-se, mesmo que haja a hipótese de falhar. Não se pode ceder à tentação de tentar preservar o que se ganhou. É o contrário. Os momentos de mudança são os momentos de maior crescimento, e quando se ganha ainda melhor – a confiança esta em alta, a energia também, há o sentido de objectivo alcançado e uma vontade implícita de começar qualquer coisa de novo.
Uma estrutura deve estar preparada para ganhar mas também para falhar, para ser um air-bag do falhanço, para absorver o erro e o ensinamento e para voltar a arriscar. Um Eriksson, um Mourinho, não surgem de apostas conservadoras, surgem de apostas pensadas mas arriscadas. Ser líder implica inovar, e inovar implica tentar seguir não pelo caminho mais provável mas pelo caminho mais promissor, ter golpe de asa. O Benfica não deve procurar um contra-ponto ao Jesus – alguém calminho, bonzinho, muito altruísta, um Peseiro qualquer que por aí ande e que nos deixe descansar –, deve procurar alguém melhor que o Jesus. Mesmo que isso signifique que seja pior do que o Jesus, em termos de temperamento.
Haveremos de chegar ao ponto, lá para Maio, em que estaremos a falar do célebre perfil. E nessa altura avançaremos mais sobre isto.
Não é importante, nesta análise, se o Benfica ganha ou não este ano – até estou convencido de que ganha, como já afirmei muitas vezes. É importante é saber interpretar o momento. Aliás, gerir de forma inteligente a «situação Jesus», tendo em conta o factor motivacional extra que daí resultaria, até poderia ser um bom trunfo lá para Março/Abril…