terça-feira, 25 de agosto de 2020

Da arrogância

 É difícil a um clube que tenha construído a sua história sobre o espírito popular e solidário, como o Benfica, conviver com a mentalidade aristocrática de quem se sente no direito a ser reconhecido como melhor de que os outros. No entanto, é necessário que o faça, porque o tempo não avançará enquanto não o fizer.

O Benfica, que inventou a humildade no futebol português, está culturalmente parado desde 1963, precisamente o ano em que as vantagens de ser humilde já não eram suficientes para continuar a ganhar. Serviram enquanto os outros eram mais fortes – enquanto o clube prosperou, a partir da sua força comunitária, contra um rival interno mais rico e institucionalmente mais poderoso; enquanto os adversários nas finais europeias foram melhores e super-favoritos e a abordagem ao jogo podia ser feita de baixo para cima, em luta e em sacrifício, sem ser preciso assumir superioridade. Daí em diante, ser bom, ou ser melhor, não voltou a ser suficiente. Nem com a melhor equipa europeia da década de 60 o clube voltou a ganhar como antes.

A falácia da humildade está intrincada no futebol português, sobretudo graças ao sucesso temporário que lhe trouxe, quer com o Benfica, quer, depois, com o Porto, quer, finalmente, com a Selecção Nacional. Ser humilde – ou seja, aceitar as fraquezas e fazer delas forças à base do suor – tem benefícios, mas também malefícios. Se se erguer uma cultura sobre a fraqueza, a cultura desaba a partir do momento em que o sentimento de inferioridade já não tem razão de existir. Um homem humilde pode vencer, mas só continuará a vencer se, daí em diante, deixar de aceitar apenas as suas fraquezas – se, continuando a ser humilde perante os seus próprios erros (que nunca desaparecerão), se tornar arrogante perante os outros.

O Benfica parou na humildade, e ser humilde não lhe vai dar mais do que aquilo que já deu.

Aquilo de que o Benfica precisa, desde há 60 anos, já não é de humildade. Essa tem-na inscrita no ADN. Do que o Benfica precisa é de arrogância, e voluntária.

O Benfica deve tomar uma derrota com um rival da sua igualha como uma ofensa pessoal, como uma afronta à ordem natural do universo.

Não deve ter medo da palavra vingança.

Não deve considerar a existência de iguais, apenas de inferiores.

Tem de assumir, compreender e praticar o conceito de soberania – a criação jurídico-psicológica de Jean Bodin segundo a qual a entidade soberana é aquela que não reconhece igual entre os que lhe são semelhantes nem superiores entre os que lhe são diferentes.

Acima de tudo, tem de entender tudo isto sem precisar de se esforçar para o entender.

E a única maneira de fazer isso – uma vez que a arrogância é uma característica humana – é reunir um conjunto de homens naturalmente arrogantes (ou seja, que estejam completamente convencidos de que, quando nasceram, já eram melhores do que os outros) e depois de os ter alimentar-lhes essa arrogância, em vez de a fazer parecer pecaminosa.

O Benfica só deve ser humilde perante o jogo em si mesmo, nunca perante o jogador.

O desporto industrial, que está a uma grande distância do futebol enquanto fenómeno meramente representativo que era a norma até aos anos 70, é uma selva dominada pelo orgulho, pelo egoísmo e pela vaidade. Ir contra isso permite viver confortavelmente, mas implica a fatalidade da morte sem glória. O triunfo é uma invenção do orgulho humano. Não basta existir-se, tem de se querer e assumir-se que se quer. Todo o caçador é arrogante. Todo o animal temeroso é caça.

Não é por acaso, nem é estatisticamente explicável, que uma equipa (qualquer equipa) perca dez, onze, doze finais europeias consecutivas. Quando isso acontece não há contingências mas um padrão de previsibilidade. O Benfica não perde finais europeias em sucessão por azar mas por uma incapacidade que vai além das equipas que tem, dos adversários, dos árbitros, das maldições ou do tempo que fez nesse dia. Perde-as porque não se concebe a ganhá-las. Perde-as na cabine, não em campo.

A final da Youth League contra o Real Madrid é apenas o último exemplo disso, mas sobretudo uma prova de como o síndroma do desgraçadinho não é uma questão de jogadores mas um aspecto cultural que atravessa todo o clube, do futebol ao hóquei em patins, dos seniores aos iniciados. A equipa do Benfica não era apenas superior à do Real Madrid: era muitíssimo superior. Tão superior que, quando finalmente percebeu que o era, vulgarizou o seu adversário, que tinha a base da selecção campeã da Europa na categoria. Se os jogadores do Benfica estivessem a jogar pelo Real Madrid e tivessem entrado em campo com a arrogância natural que a camisola branca injecta a quem a usa teriam ganho por quatro ou cinco a zero.

Quando o Benfica perde uma final há sempre uma sensação do fado inevitável. Quando, por consequência da sua grandeza, as ganha, fica sempre, também, a ideia de que teve a sorte do seu lado, de que ganhou como podia ter perdido. Nunca fica afirmada a sua superioridade inequívoca. Parece que ser melhor do que os outros vai contra a natureza do clube.

O benfiquista comum, que é bravo contra os fracos e envergonhado ante os fortes, vai ter de decidir se lhe basta jogar ou se quer ganhar. Precisa de dizer se quer ser águia ou lebre.