segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Coitadinho

 A quem é que se ganha, quando se ganha ao Porto?

O que é que se derrota?

Por que é que ganhar ao Porto é tão importante antes do jogo começar e se torna tão pouco importante depois do jogo acabar?

Dito por outras palavras, por que é que se tem tanto a perder quando se joga com o Porto e tão pouco a ganhar?

O que é que o Porto representa? Quais são os valores que saem enaltecidos quando a sua equipa triunfa em campo (quando é campeã, porque é isso que ser campeão significa)?

Numa primeira fase do pós-25 de Abril é relativamente fácil de compreender. Num país atrasado, centralizado e provinciano, um clube em representação da província quis provar que era capaz de fazer o que os outros – nomeadamente o Benfica, que por essa altura já tinha extravasado a dimensão portuguesa – eram capazes de fazer.

O sucesso do Porto, nessa primeira era do anti-macrocefalismo, foi total. Não apenas ganhou uma Taça dos Campeões Europeus a um adversário prestigiado como o fez recorrendo a um conjunto de jogadores que representavam, na grande maioria, a própria gente do Porto e da região circundante. À afirmação internacional do Porto-clube correspondeu a afirmação internacional do Porto-cidade, uma ideia que esteve na própria génese da ideologia pintista quando se apoderou do poder no clube, em meados da década de 70.

Entretanto, no início dos 80, a democracia foi instituída, de facto, com o advento do Tribunal Constitucional (em 1983), o país aderiu à CEE, mudou e, no final dos anos 90 e do cavaquismo, já pouco restava do Portugal salazarista. A subalternização do Porto-cidade e do Norte em relação a Lisboa, em termos económicos e sociais, sobrevivia apenas como um mito (um mito ainda hoje guardado com zelo por alguma da sua gente, mas ainda assim só um mito, como se pode constatar pelo facto da esmagadora maioria dos deputados à Assembleia da República e dos próprios governantes não serem de Lisboa) e o Porto-clube, aproveitando a emancipação política do Norte, a proliferação de clubes na região e a instrumentalização das Associações do Porto, de Braga e de Aveiro, já se tinha apoderado das instituições do futebol e secado pela raiz a concorrência, queimando, no processo, tudo o que não podia aproveitar.

Depois da afirmação, assistiu-se ao esplendor do portismo e, ao mesmo tempo, à decadência do futebol português, da qual só se começaria a sair quando, por acaso, um certo futebolista belga de pouca expressão, Jean-Marc Bosman, decidiu levar o próprio futebol a tribunal e, ganhando, o lançou à força para o liberalismo de mercado em que vive actualmente. Por causa disso os melhores jogadores portugueses tiveram acesso ao mundo e trouxeram o mundo à periferia, através da Selecção Nacional.

Durante a década de 2000, recolhendo os frutos do regime totalitário que instaurou, o Porto teve espaço para ganhar confortavelmente, incluindo na Europa, onde o acaso histórico entre o «evento José Mourinho» e a própria lei das probabilidades («até um relógio parado está certo duas vezes ao dia», ou seja, se jogares vinte vezes a Taça dos Campeões há de chegar um dia em que todos os outros também a perdem) coincidiram e resultaram num segundo êxito cujo único efeito estrutural foi o de permitir um encaixe financeiro, em prémios e vendas de jogadores, que permitiu uma década de gastos excessivos para a dimensão económica real do clube.

Foi por essa altura, ainda com a hegemonia bem viva, que se começou a tornar clara a futilidade da glória portista.

O ressurgimento do Benfica, a partir de meados da primeira década do século XXI, deu ao Porto uma segunda vida. Foi a fruta e café com leite dos novos dias – um pequeno-almoço de campeões.

O Porto de hoje é, obviamente, um projecto decadente. Vê-se nos resultados desportivos, incomparavelmente piores do que há vinte anos, nos resultados económicos, ao nível do pior que já existiu na história do clube, e nos comportamentos, como se comprova pela inenarrável figura do seu Diretor de Comunicação.

É impossível não comparar os dois principais clubes portugueses e poder-se-ia argumentar que a futilidade da glória é comum a todos. Talvez futilidade não seja a palavra certa. Seria preferível inconsequência. Ganhar para quê?

O Benfica partilha da simplicidade da maioria dos grandes clubes. O que o mantém unido é o jogo em si mesmo – talvez por isso digira mal a promiscuidade, mesmo quando essa é a lei moral da época e ele acaba por a seguir. Apesar de não haver grandes jogadores sem grandes clubes, aos jogadores do Benfica é possível tornarem-se maiores do que o clube, no clube. A história do Benfica é a história da sua relação com o jogo, nas glórias e nos fracassos, e a sua maior figura, sem contestação, é um jogador de futebol. De certa forma, o Benfica só fez as pazes consigo próprio quando trouxe Eusébio de volta para junto de si. O jogo não pretende representar realmente nada para além de si mesmo, e se isto parece básico é porque é. O benfiquista não é um animal complexo.

Para o Porto, o futebol não é um fim, mas um meio. Tem uma função – a de permitir a afirmação política de qualquer coisa, que já não se percebe bem o que é. O que une o clube é a subversão, ainda que o poder seja já seu e não haja nada para subverter. Quando não há, inventa-se. Adequadamente, a maior figura da sua história, também sem contestação, é um político – Pinto da Costa.

O Benfica fez uma grande equipa europeia de futebol porque sim, e tornou-se um clube do mundo, da dimensão do jogo. O Porto fez uma grande equipa europeia de futebol para ganhar ao Benfica e, podendo chegar tão longe quanto chega o jogo, nunca conseguiu sair da província que tem na cabeça.

O Benfica fracassa quando o jogo lhe ganha. O Porto fracassa quando o Benfica lhe ganha.

E toda a gente se dá bem com essa realidade que, aparentemente, é uma vantagem para o Porto. Permite-lhe sempre partir de baixo, sem ter nada a perder; assumir a personagem do pobre diabo que joga contra a própria sorte. A figura do coitadinho nasceu para enternecer. O Porto já explorou o desgraçado que tem dentro de si até ao tutano. Mas qual é a alternativa senão continuar a alimentá-lo para poder continuar às suas costas? O «contra tudo e contra todos, dentro e fora do campo» de Sérgio Conceição, há dias, é apenas a versão actual do absurdo, do qual toda a gente, incluindo os portistas, tem consciência, mas que não pode ser abandonado, sob risco de niilismo existencial.

Dito por outras palavras, refazendo as questões com que comecei, o que é que o Porto ganha, quando ganha, se, depois de ganhar, não sai do mesmo sítio?

O que é que triunfa, quando o Porto vence?

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Benfica 3.0

Ainda é demasiado cedo para tirar conclusões sobre o novo Benfica, mas desde quando é que isso impediu alguém?

Primeiro ponto: metade da equipa que jogou na Grécia não vai ser titular em Dezembro, e até o onze que entrou hoje em Famalicão, apesar de mais próximo da realidade, está ainda longe disso. Tal como todas as equipas do mundo, mesmo aquelas que têm jogadores suficientes para fazer duas, o Benfica 3.0 vai ter um grupo de 14/15 que vão jogar quase sempre e sete ou oito que vão chegar ao fim da época sem ter apanhado o comboio. As lesões, as dinâmicas e a própria química entre os jogadores vai encarregar-se disso.

Segundo ponto: Jesus é exactamente o mesmo. Viveu, morreu, ressuscitou, mas é o mesmo. Aliás, o Vieira não o contratou para ser uma coisa diferente. É claro que tem um bocado mais de mundo – devia ser obrigatório para qualquer treinador passar pelo menos seis meses no Brasil, para saber o que é futebol no estado puro, um bocado como aqueles estagiários que passam um ano a fazer treinos da segunda divisão antes de poderem começar a trabalhar com os crescidos – mas isso, em alguém com a personalidade do Jesus, só serve para se sentir ainda mais senhor do seu nariz. Antes de sair de Portugal ele já pensava que era um génio; agora pensa que é um grande génio. É a natureza do animal. Nada a apontar.

Quanto à bola propriamente dita, também poucas novidades.

Quatro centrais, dois na defesa e dois no meio-campo, a partir pedra, como deve ser numa equipa em 4x4x2 cujo primeiro mandamento é não sofrer golos. Gabriel e Taarabt não vão ser os dois médios-centro, mas neste momento da época joga quem consegue correr mais tempo, não quem é melhor. É muito provável que Pizzi acabe a jogar no meio e não me admirava absolutamente nada se o Weigl acabasse a época a defesa. Falta um jogador para o meio-campo e isto não quer dizer que não esteja já no plantel. Quem jogar como ele quer – como o Pizzi jogou no primeiro ano a titular – vai agarrar o lugar.

O guarda-redes joga dez metros a frente em relação ao ano passado. Esse guarda-redes – aquele guarda-redes que joga a líbero, como o Neuer – não é o Vlachodimos, mas também não é nenhum daqueles que o Jesus gostaria de ter, simplesmente porque não há. Ou melhor, haver há, é o Svilar, mas é mais fácil o Jesus aprender a falar espanhol do que apostar num guarda-redes de 21 anos, a menos que não tenha absolutamente alternativa nenhuma.

Aposta total na defesa em linha, como deve ser com qualquer equipa que queira ser grande pelo menos desde que o Milão do Sacchi descobriu a pólvora e percebeu que era muito mais fácil jogar em 40 metros do que em 70. Mas não vai ser com o Grimaldo, porque não sabe. Aposto a minha máscara em como o Jesus deve estar mortinho para vender Grimaldo, comprar um central titularíssimo e meter o Verthongen a jogar a defesa esquerdo, para ter mais segurança defensiva e ganhar um homem nas bolas paradas. O que seria uma medida inteligente, uma vez que se matariam vários coelhos com uma só cajadada. Jogar com extremos a defesas laterais não é para todos, sobretudo para quem perde demasiadas bolas.

Potência física no ataque com Everton, Waldschmidt e Darwin – e quando falo em potência refiro-me à relação massa-velocidade, assim mesmo à doutor –, dando à equipa equilíbrio nesse aspecto, o único (além dos Soares Dias e dos gatunos informáticos) em que o Porto foi claramente superior nas últimas três épocas.

Waldschmidt não é um Jonas mas vai ter de ser. Darwin não é um Cardozo mas é muito melhor, porque com ele teremos a certeza de jogar sempre com onze. Cardozo era um rematador canhoto, Darwin é um futebolista dos pés à cabeça que só não vai marcar tantos golos pelo Benfica como Cardozo porque, ao contrário do paraguaio, daqui a um ano vai ter meia Europa atras e vai valer o mesmo que duas Ligas dos Campeões.

Sim, em Famalicão o Benfica arrasou, tal como teria arrasado na Grécia se o PAOK não tivesse tido toda a sorte do jogo – aliás, a sorte grande foi mesmo ter apanhado o primeiro jogo do Jesus: já não me lembro da última vez em que o Jesus ganhou o primeiro jogo de uma temporada.

Vai continuar a arrasar enquanto estiver a crescer, o que vai acontecer durante os próximos quatro, cinco meses. Jogar a Liga Europa vai ajudar. O Jesus é um péssimo gestor de plantéis e a Liga Europa é muito menos cruel que a Champions quando toca a fazer pagar pelos erros de casting. Depois, quando tiver de mudar o chip e passar a jogar com o estatuto que entretanto tiver ganho, não vai saber bem o que fazer e entra em perda. Mesmo assim, se não houver terremotos, jogos com intervalos de três meses e pagamentos pelo meio ou árbitros a apitar pela própria vida, deve chegar.

Nesse aspecto – na dinâmica, não na sua relação com a máfia, entenda-se – o Benfica 3.0 vai ser exactamente igual ao Benfica 1.0 e completamente oposto ao Benfica 2.0, com Vitória e Lage, que jogava sempre melhor quando dava avanço. Quando não deu, quando teve o campeonato no bolso a meio da época e precisou de gerir a vantagem, arranjou maneira de dar um tiro na cabeça com uma pistola sem balas.


terça-feira, 25 de agosto de 2020

Da arrogância

 É difícil a um clube que tenha construído a sua história sobre o espírito popular e solidário, como o Benfica, conviver com a mentalidade aristocrática de quem se sente no direito a ser reconhecido como melhor de que os outros. No entanto, é necessário que o faça, porque o tempo não avançará enquanto não o fizer.

O Benfica, que inventou a humildade no futebol português, está culturalmente parado desde 1963, precisamente o ano em que as vantagens de ser humilde já não eram suficientes para continuar a ganhar. Serviram enquanto os outros eram mais fortes – enquanto o clube prosperou, a partir da sua força comunitária, contra um rival interno mais rico e institucionalmente mais poderoso; enquanto os adversários nas finais europeias foram melhores e super-favoritos e a abordagem ao jogo podia ser feita de baixo para cima, em luta e em sacrifício, sem ser preciso assumir superioridade. Daí em diante, ser bom, ou ser melhor, não voltou a ser suficiente. Nem com a melhor equipa europeia da década de 60 o clube voltou a ganhar como antes.

A falácia da humildade está intrincada no futebol português, sobretudo graças ao sucesso temporário que lhe trouxe, quer com o Benfica, quer, depois, com o Porto, quer, finalmente, com a Selecção Nacional. Ser humilde – ou seja, aceitar as fraquezas e fazer delas forças à base do suor – tem benefícios, mas também malefícios. Se se erguer uma cultura sobre a fraqueza, a cultura desaba a partir do momento em que o sentimento de inferioridade já não tem razão de existir. Um homem humilde pode vencer, mas só continuará a vencer se, daí em diante, deixar de aceitar apenas as suas fraquezas – se, continuando a ser humilde perante os seus próprios erros (que nunca desaparecerão), se tornar arrogante perante os outros.

O Benfica parou na humildade, e ser humilde não lhe vai dar mais do que aquilo que já deu.

Aquilo de que o Benfica precisa, desde há 60 anos, já não é de humildade. Essa tem-na inscrita no ADN. Do que o Benfica precisa é de arrogância, e voluntária.

O Benfica deve tomar uma derrota com um rival da sua igualha como uma ofensa pessoal, como uma afronta à ordem natural do universo.

Não deve ter medo da palavra vingança.

Não deve considerar a existência de iguais, apenas de inferiores.

Tem de assumir, compreender e praticar o conceito de soberania – a criação jurídico-psicológica de Jean Bodin segundo a qual a entidade soberana é aquela que não reconhece igual entre os que lhe são semelhantes nem superiores entre os que lhe são diferentes.

Acima de tudo, tem de entender tudo isto sem precisar de se esforçar para o entender.

E a única maneira de fazer isso – uma vez que a arrogância é uma característica humana – é reunir um conjunto de homens naturalmente arrogantes (ou seja, que estejam completamente convencidos de que, quando nasceram, já eram melhores do que os outros) e depois de os ter alimentar-lhes essa arrogância, em vez de a fazer parecer pecaminosa.

O Benfica só deve ser humilde perante o jogo em si mesmo, nunca perante o jogador.

O desporto industrial, que está a uma grande distância do futebol enquanto fenómeno meramente representativo que era a norma até aos anos 70, é uma selva dominada pelo orgulho, pelo egoísmo e pela vaidade. Ir contra isso permite viver confortavelmente, mas implica a fatalidade da morte sem glória. O triunfo é uma invenção do orgulho humano. Não basta existir-se, tem de se querer e assumir-se que se quer. Todo o caçador é arrogante. Todo o animal temeroso é caça.

Não é por acaso, nem é estatisticamente explicável, que uma equipa (qualquer equipa) perca dez, onze, doze finais europeias consecutivas. Quando isso acontece não há contingências mas um padrão de previsibilidade. O Benfica não perde finais europeias em sucessão por azar mas por uma incapacidade que vai além das equipas que tem, dos adversários, dos árbitros, das maldições ou do tempo que fez nesse dia. Perde-as porque não se concebe a ganhá-las. Perde-as na cabine, não em campo.

A final da Youth League contra o Real Madrid é apenas o último exemplo disso, mas sobretudo uma prova de como o síndroma do desgraçadinho não é uma questão de jogadores mas um aspecto cultural que atravessa todo o clube, do futebol ao hóquei em patins, dos seniores aos iniciados. A equipa do Benfica não era apenas superior à do Real Madrid: era muitíssimo superior. Tão superior que, quando finalmente percebeu que o era, vulgarizou o seu adversário, que tinha a base da selecção campeã da Europa na categoria. Se os jogadores do Benfica estivessem a jogar pelo Real Madrid e tivessem entrado em campo com a arrogância natural que a camisola branca injecta a quem a usa teriam ganho por quatro ou cinco a zero.

Quando o Benfica perde uma final há sempre uma sensação do fado inevitável. Quando, por consequência da sua grandeza, as ganha, fica sempre, também, a ideia de que teve a sorte do seu lado, de que ganhou como podia ter perdido. Nunca fica afirmada a sua superioridade inequívoca. Parece que ser melhor do que os outros vai contra a natureza do clube.

O benfiquista comum, que é bravo contra os fracos e envergonhado ante os fortes, vai ter de decidir se lhe basta jogar ou se quer ganhar. Precisa de dizer se quer ser águia ou lebre.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Até sempre

Ainda me custa a crer que uma paginazita que criei na Internet, há cerca de dois anos, para desabafar sobre futebol, e escrita nos intervalos da minha vida real, tenha ultrapassado as cem mil visitas de pessoas que não me conheciam. Agradeço-vos a atenção, pedindo perdão pelos excessos, e gabo-vos a paciência.

De qualquer forma, hoje é dia de informar que, por razões profissionais, vou suspender a minha actividade na blogosfera por tempo indeterminado. O tipo de intervenção que vou mantendo aqui (e que iria manter, porque acho que o blogue serve para isto, e não para uma espécie de actividade acrítica, politicamente correcta e estéril) seria incompatível com os projectos pessoais que estou neste momento a começar.

Se alguém estiver disposto a isso, e tiver feitio para tal, que deixe ligado um aviso de actividade, no caso de, um dia, ela ser retomada. Mas não posso garantir que isso aconteça, pelo menos nos próximos meses/anos.

É verdade que, quando comecei a escrever no blog, a minha intenção era esmiuçar toda a coisa da bola, mas, inevitavelmente, acabei por esmiuçar sobretudo o Benfica, por motivos passionais - como se costuma dizer daqueles crimes de amor.
Devo dizer que isso seria inevitável.
De facto, os últimos dois anos, com todas as suas vicissitudes, apenas serviram para me assegurar de uma ideia que tenho desde há muitos anos - desde ainda antes do clube ter caído no fundo do poço: a de que o Benfica joga sozinho.

O Benfica, em Portugal, joga consigo próprio. A ideia de que o seu sucesso ou insucesso depende dos outros é uma falácia, que os próprios adversários acabam por desmascarar, ano após ano. Esta época foi um excelente exemplo disso.
A atenção dada às derrotas do Benfica, por portistas e sportinguistas, supera esmagadoramente a atenção dada aos sucessos e insucessos dos seus próprios clubes.

No dia em que o Benfica conseguir mobilizar todos os seus recursos culturais, materiais e humanos, não só continuará a ser o maior como tornará a ser o melhor de Portugal, independentemente do que os seus rivais internos conseguirem fazer – ou seja, regressará ao ponto em que estava no momento em que se tornou maior que o país e foi obrigado a consumir-se a si próprio para continuar a viver.
Desta vez, contudo, não encontrará as mesmas condicionantes do tempo anterior. Desta vez, quando tiver de encontrar alguém a quem superar, não encontrará apenas sombras dentro de fronteiras fechadas, mordendo-lhe os calcanhares, mas gigantes, lá fora, num mundo em que as fronteiras deixaram de existir.

Algo me diz que, da próxima vez que voltarmos a falar, não estaremos à procura de uma forma de ganhar ao Porto, mas ao Barcelona.

Até esse dia, um abraço sentido a todos.

Hugo

terça-feira, 4 de junho de 2013

Jesus (2) – A Falsa Escolha de Vieira

Não tenho dúvidas de que Pinto da Costa está a fazer todos os possíveis para convencer Jesus a dar o dito por não dito e a levá-lo para o Porto.
Digo «está a tentar» e não «tentou» porque, enquanto o Vieira e o Jesus não se sentarem na sala de imprensa a assinar contrato o Jesus ainda não é o treinador do Benfica para a próxima época. Só por isso é que o Porto ainda não tem treinador. Só por isso é que se está a prolongar a ópera bufa do Vítor Pereira (a quem, de certeza, já arranjaram trabalho), fazendo de conta que a renovação está em cima da mesa.

 Pinto da Costa vai levar a tentativa até ao minuto anterior do anúncio da renovação de Jesus porque o que lhe interessa, verdadeiramente, não é contratar Jesus, mas sim derrubar Vieira, que teve o mérito (dê-se-lho) de se constituir como seu único verdadeiro adversário, em 30 anos, além de João Rocha, embora este numa altura em que Pinto da Costa ainda era apenas um projecto daquilo em que se tornaria.

A escolha de Vieira entre renovar ou não renovar com Jorge Jesus é falsa porque não há escolha. O fim do mandato de Vieira como presidente do Benfica será determinado pelo momento da saída de Jesus, e esse vínculo não está a ser assumido agora.

Há dois anos, no final da segunda época, Vieira fez o que um bom presidente faz: contra o usual coro dos insatisfeitos, que fazem todas as suas aparentemente elaboradas reflexões, na verdade, a partir dos resultados

(reconheço sempre a qualidade e a validade de um comentário pelo distanciamento que apresenta em relação aos resultados. Um mau comentador, como o Rui santos, é aquele que é capaz de mudar radicalmente a sua análise de uma semana para a outra quando os resultados mudam)

manteve o treinador. Isso, só por si, já foi uma evolução na história do Benfica dos últimos 30 anos.

 O ano passado, sim, foi decisivo.

Jesus tinha mercado, o Porto já não constituía uma ameaça – uma vez que Pinto da Costa não conseguiria despedir Vítor Pereira nessa altura, tendo contrato, para o trocar pelo treinador a quem ele tinha ganho, por mais voltas que desse, sem passar por fraco –, Jesus tinha acabado de revelar todas as suas fragilidades como gestor do plantel, havia uma larga maioria de adeptos que já não o queriam, o ciclo normal para o futebol português estava claramente esgotado e, sobretudo (de um ponto de vista de uma boa direcção desportiva o factor mais importante de todos) a equipa deixara de evoluir.

Foi nesse momento, mesmo que não o tenha percebido bem, que Vieira abriu a porta à grandeza – que pode ou não acontecer, sejamos claros, e aqui sim, os resultados terão de falar, porque não há grandes clubes sem resultados no final dos projectos – vinculando o seu legado desportivo como presidente do Benfica ao desempenho do treinador que assumiu.

Diga-se, em abono da verdade, que Jesus foi o primeiro treinador que Vieira escolheu desde o dia em que entrou no Benfica a última pessoa que também tinha escolhido: José Veiga. Depois disto, este e Rui Costa não foram capazes de manter ou alcançar o sucesso. Aonimpôr a contratação de Jesus ao Braga, Vieira começou a atar-se. O ano passado acabou de dar o nó.

O erro de Vieira, no ano passado, não foi ter tomado a decisão. Apesar de eu ter sido contra ela – não por causa dos resultados mas porque, na minha opinião (como acho que ficou provado), a equipa estagnaria em termos de evolução, o que a levaria, muito provavelmente, a não alcançar resultados – a decisão de manter Jesus era aceitável, e até a mais óbvia, ainda que não fácil.

O erro de Vieira, ou por não ter compreendido plenamente a situação (afinal, havia décadas que um treinador não começava uma quarta época no Benfica, muito menos sem ganhar nada de jeito há duas épocas) ou por medo e um excesso de tacticismo que lhe terá retirado audácia, não foi ter mantido o treinador, mas, logo aí, não ter assumido o seu vínculo a ele, e não lhe ter renovado o contrato por mais três anos. Porque, na prática, ao mantê-lo o que estava era a fazer isso mesmo, só que sem contrato. Com a desvantagem de que, dessa forma, teria matado a ameaça de Pinto da Costa à nascença.

Não foi preciso chegar à semana antes da final da Liga Europa e à afirmação de que «Jesus é o treinador do meu projecto» para se saber que isso é verdade, e que Vieira, na verdade, não tem escolha, nem sequer tem margem negocial. Quando eu lia que ele queria cortar o ordenado ao Jesus, pensava: «Só não o vais ter de aumentar se ele não quiser.» O Jesus é um animal de jogo, tem os bluffs todos, tem tomates, e manipulou o Vieira direitinho, até ao ponto d éter a faca e o queijo na mão, mesmo sendo o elo mais fraco (um bocado como o Portas com o Passos Coelho…).

O fim de Jesus vai determinar o fim de Vieira, quer ganhe quer perca.

Se ganhar, vai até ao fim, que será determinado por Vieira (e temos de começar a pensar nesta coisa da manutenção ou não do estado de emergência que justifica a permanência de Vieira, porque, independentemente do valor do homem, a verdadeira força do Benfica é a democracia …).

Se perder, sai, e Vieira, mesmo ficando, não dura mais de uma época depois disso.

Por um lado, porque o fracasso desportivo e pessoal será demasiado pesado.

Por outro porque, apesar da fragilidade da estrutura económica dos clubes grandes em Portugal (passivos monstruosos, sobredependência de receitas extraordinárias), a percepção que passa para os benfiquistas é de que o problema financeiro que levou à eleição de Vieira está resolvido.

O clube tem um volume de receitas ao nível dos vinte melhores da Europa, enveredou pela inovação, como é exemplo a Benfica TV e a transmissão dos jogos, e subiu de divisão ao nível da venda de jogadores. Perante a fragilidade do Sporting, a subida ao pote 1 da Champions (que se vai manter, até porque, em relação ao Porto, por exemplo, este terá de voltar a ganhar a Liga Europa na próxima época para não ser ultrapassado), e a manutenção de três lugares de acesso à Champions para os próximos quatro/cinco anos, será quase impossível o clube voltar a cair. E isso, mesmo que isto seja cruel, será verdade quer Vieira continue quer não – algo que os futuros candidatos (que aparecerão em caso de fracasso desportivo, ninguém o duvide, e não serão andorinhas do Norte) facilmente demonstrarão.

Aliás, interpreto a pressão por parte dos notáveis do Benfica para o despedimento de Jesus como início da fase estratégica pré-eleitoral, tendo eles a exacta percepção de que a porta por onde Jesus sairá será a mesma por onde Vieira vai sair.

Esta é a natureza competitiva da democracia, é assim que os mais aptos têm a sua oportunidade e não é por isso que os clubes ficam mais fracos. Alongo prazo, aliás, esse factor democrático é a sua verdadeira força, independentemente das fases degenerativas. Olhem para o Barcelona, para o Real Madrid, para o Manchester United.

Eu,pessoalmente, não tenho medo do pós-Vieira. Acredito no Benfica real, no Benfica do povo, da opinião, da união, do colectivo. Esse Benfica do regime que os portistas querem inventar não existe a não ser na cabeça deles, e os benfiquistas não devem ter medo desse fantasma. A saída, em breve, de Vieira, demonstrará a diferença entre um clube que vive realmente na vontade das pessoas que o compõem e os clubes que só se realizam como manifestações pessoais.

Afinal, é muito mais fácil de colar regimes a clubes que ganham durante cem anos do que aceitar a evidência de que, em cem anos, só se ganha com um presidente.

Da mesma maneira que é fácil falar em regimes e difícil de aceitar que Pinto da Costa está quase há tanto tempo no Porto como Salazar esteve no Conselho de Ministros.

(Próximo post: Jesus (3) – Ponto de Horizonte)

sábado, 1 de junho de 2013

Jesus (1) – o Melhor Ano


Antes de mais nada, um acto de contrição: sinceras desculpas por alguns excessos no último post. É da azia. Peço que entendam. Não tem sido fácil.
Posto isto…

Ponto 1

Jorge Jesus fez este ano a sua melhor época no Benfica. Melhor do que a primeira. O título ganho na primeira época foi resultado de uma combinação de qualidade e oportunidade, com maior pendor para a segunda.

Em 2009 Jesus entrou no Benfica nas melhores condições possíveis para um treinador com as suas características:

– Expectativas muito baixas, considerando os resultados nas temporadas anteriores, que situavam o Benfica no terceiro lugar do ranking nacional, a ameaçar descida para o quarto perante a subida do Braga, e a competir na Liga Europa, o que permitiu evitar alguma derrotas comprometedoras na decisiva primeira metade da época, em que a equipa estava em fase de construção anímica;

– Um plantel com um valor muito acima dos resultados recentes, mal explorado e habituado a um nível de exigência próprio de uma equipa do meio da tabela. A um grupo de jogadores que rendiam metade do que valiam, ou mesmo emprestados (David Luiz, Cardozo, Di Maria, Fábio Coentrão, Aimar) foram somados jogadores como Javi Garcia, Saviola ou Ramires (o melhor médio que passou pelo Benfica nos últimos quatro anos). O ponto forte de Jesus é precisamente o melhoramento do desempenho individual dos jogadores;

– Um Porto acomodado ao tricampeonato e demasiado seguro da sua superioridade, que o levou a menosprezar o campeonato e a chegar ao Natal já em terceiro lugar.

O sucesso da primeira época, em termos de resultados, deveu-se, mais do que a uma qualidade de jogo que, na verdade, nunca existiu realmente, à dinâmica de vitória criada a partir da conjugação destes três factores, sustentada no factor surpresa. Pela primeira vez em muitos anos o Benfica apareceu a jogar como uma equipa grande, a apostar no ataque, com um estilo rápido, para o qual os adversários (Porto incluído) não estavam preparados, o que lhe permitiu fazer uma boa primeira metade do campeonato e ganhar a vantagem necessária para ser campeão. Os jogadores passaram de render 50 por cento do que podiam para render 80 por cento (e só não renderam nem rendem mais porque, daí para cima, só lá vão com a ajuda do colectivo).
Tirando isso, o Benfica campeão, que foi eliminado da Taça de Portugal em casa pelo Guimarães e que não passou dos quartos-de-final na Liga Europa, ganhando uma Taça da Liga a um Porto por essa altura moralmente destruído, era uma equipa que defendia relativamente mal, sem um jogo colectivo definido, incapaz de jogar em mais de uma velocidade e de se proteger, com grandes dificuldades para aguentar os jogos de alta pressão – ganhou ao Porto por 1-0, na Luz, com um golo em fora-de-jogo e cheíssimo de sorte, ao Braga, também por 1-0, com um golo a poucos minutos do fim, e perdeu nas Antas e em Braga. Jogando a Champions e com um Porto normal, nessa época, o Benfica, que chegou às últimas três jornadas já sem gasolina no tanque, não teria sido campeão.

A segunda época foi a do deslumbramento, natural para um clube que ganhou sem saber muito bem como depois de muito tempo de frustração; para um presidente que julgou que aquele título mudava a maré histórica; para um treinador habituado a treinar equipas do meio da tabela que, no primeiro ano num grande, se convence de que tinha tido sempre razão e que era fácil ser campeão (muito alimentado pelas bacoradas e pela falta de sentido crítico quer dos adeptos quer dos vendedores de jornais); para um grupo de jogadores que nunca tinha tido verdadeiro sucesso desportivo e que também se deixou convencer de que jogava muito melhor do que realmente jogava.

A super-época do Porto não esteve directamente relacionada com o lado negro da força que a Luz revelou nesse ano. Ajudou a desmoralizar (sobretudo com aqueles 5-0), mas não foi por causa disso que o Benfica falhou. Quando levou 5 nas Antas, à 9.ª jornada, já o campeonato estava perdido havia muito. Não era preciso o Porto do Villas-Boas: o Porto de Jesualdo teria ganho facilmente aquele campeonato.

A época da verdade do Jesus, no Benfica, foi a terceira. O nível de pressão era o normal, o Porto partia também a um nível normal, a equipa estava estruturada, o tipo de jogo estava definido, competiu-se na Champions, o Jesus e o Vieira tiveram tempo e espaço para planificarem tudo o que havia a planificar, desde que soubessem.

E o que é facto é que tudo o que é frágil e tudo o que é forte na liderança técnica de Jesus ficou claro como água durante a época passada. Já nem é preciso, julgo eu, bater mais no ceguinho. O Jesus implementa um estilo ofensivo, rápido e pouco pensado no ataque, pouco colectivo, em que os jogadores estão bastante conscientes das suas funções individuais e geralmente indiferentes à necessidade do jogo em conjunto, que não é capaz de gerar soluções de equipa de forma sólida, sobretudo contra as melhores equipas. Isso deixa demasiada pressão no único mecanismo defensivo que, actualmente, o Benfica executa bem: o fora-de-jogo. Todos os outros processos defensivos (incluindo a posse de bola defensiva) são abaixo da média para uma boa equipa europeia.

O tipo de jogo do Benfica de Jesus está formatado para ganhar 95 por cento dos jogos contra equipas de nível médio e baixo, permite-lhe competir (embora com pouca segurança) contra equipas de nível médio-alto, e dá-lhe muito poucas hipóteses de ganhar jogos de alta pressão. Por exemplo, se retirarmos da equação os jogos para a Taça da Liga, em 11 jogos contra o Porto o Jesus ganhou um, em que o Saviola marca o golo numa posição de fora-de-jogo muito mais clara que a do Maicon no ano passado.

Este ano a prestação de Jesus foi claramente melhor que no ano passado. Fez melhor no campeonato, nas taças europeias e na Taça de Portugal, partindo de uma situação de pressão muito maior, dada a forma como perdeu o campeonato no ano passado, e perdendo o seu meio-campo no início da época. Fez o que sabe fazer melhor (trabalhar individualmente jogadores, o que lhe permitiu inventar Matic, Enzo, Melgarejo e André Almeida). Teve a ajuda das lesões e dos castigos na gestão do plantel, mas, com muita sorte à mistura, soube levar um barco curto até duas praias – campeonato e Liga Europa – praticamente sem soluções para além dos 12/13 homens de campo que iam jogando.

Em resumo, há três razões para alguns (muitos? poucos?) benfiquistas que antes gostavam do Jesus acharem agora que ele não deve renovar com o Benfica, e duas delas não fazem sentido:

1.ª – Porque os resultados foram maus.
Não faz sentido. No ano em que foi campeão, o Benfica fez 76 pontos. Este ano fez 77. Foi o melhor campeonato do Jesus no Benfica, a melhor prestação europeia do Jesus no Benfica e a primeira presença na final da Taça de Portugal. Perdeu a Taça da Liga. Irrelevante. Não vejo sentido em basear a decisão em renovar ou não renovar contrato com o Jesus na relação contexto/prestação/resultado precisamente quando o Jesus tem o seu melhor desempenho.

2.ª – Porque estão frustrados.
Tão simples como isto. Não faz sentido nenhum. Basear uma decisão destas num estado de alma foi o que levou o Benfica ao deserto durante vinte anos. Nesses vinte anos houve decisões baseadas sobre estados de alma que estavam certas e outras que estavam erradas, mas o que matou a grandeza do Benfica não foram as decisões em si, foi a lógica. É um princípio tão errado, mas tão errado, que quase que vale a pena tomar a decisão que vai contra o estado de alma só para estabelecer o princípio de que o estado de alma, como factor de decisão, deve ser contrariado. Não chego a tanto, mas mandar o Jesus embora só porque estamos zangados com ele é demasiado estúpido para ser verdade. Parece que, por aí, e pelo que se lê, já ganhámos qualquer coisa em ter um presidente que sabe esperar e parar para não decidir em cima de emoções. Parece…

3.ª – Porque já perceberam que o Jesus não tem estofo nem qualidade para ser o treinador de que o Benfica precisa.
Esta é a única razão que pode fazer sentido, mas não é inequívoca. Eu apontei esta razão antes do final da época passada, quando se falava da possibilidade de ele sair. Houve quem concordasse e quem discordasse. Apontei as minhas razões e vou falar delas outra vez no terceiro e último post que dedicarei a este tema.

No entanto, adianto duas ideias:

– em primeiro lugar, que não há nenhuma boa razão para que quem defendia que o Jesus devia continuar, no fim da época passada, defenda agora que ele deve sair. Esta época foi uma réplica da última, mas para melhor em todos os sentidos excepto no tipo e qualidade de jogo, que são iguais;

- em segundo lugar, que na altura eu defendi o seguinte: esta é a altura de ou trocar de treinador, por uma boa razão (para acrescentar à equipa soluções que ele, claramente, já não conseguia, nem vai conseguir, agora, dar); ou de assumir o treinador, com todas as suas qualidades e os seus defeitos, como inerente ao projecto e, nesse caso, não apenas não o despedir como, logo nessa altura, somar-lhe mais quatro ou cinco anos ao contrato.

Acrescento, já agora, que, se o Vieira tivesse feito isso no ano passado, e renovado o contrato até 2016 ou 17, não digo que este ano a questão da continuidade do Jesus não tivesse existido (porque existe sempre num clube como o Benfica, em que os resultados podem mudar tudo em dois minutos), mas os resultados poderiam ter sido diferentes, uma vez que a distracção permanente sobre «o futuro de Jesus» e a pressão acrescida quase que desapareceriam.

(Próximo post: Jesus (2) – A Falsa Escolha de Vieira)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Os que desistem


Um clube vencedor não depende dos resultados. Porque todos os clubes perdem, e isso significaria que, quando perdesse, esse clube seria, apenas, um clube perdedor.

Um clube realmente vencedor ganha nas vitórias e ganha com as derrotas.

Quando um jogador (o Rodrigo) diz que tem de se aprender com os erros depois de perder um campeonato, uma Liga Europa e uma Taça de Portugal de forma perfeitamente cruel, e nunca vista, esse jogador tem dentro de si a doutrina dos verdadeiros campeões. É um gigante em potência. É dessa massa que se fazem os clubes vencedores.

Num clube vencedor não há demissões. Nem de cargos nem de responsabilidades. Demissão é apenas uma palavra cara para desistência. Um eufemismo, inventado por pessoas fracas e orgulhosas, que não têm nem a força suficiente para lutar nem a humildade suficiente para assumir que desistiram, e que assim arranjam uma palavra para disfarçar ambas as fraquezas.

Num clube vencedor os elos mais fracos não são cortados e deitados fora – são fortalecidos, com trabalho e inteligência. Num clube vencedor, quando há um problema, não se faz de conta que não há problema – enfrenta-se o problema e trabalha-se para encontrar uma solução.

Coragem para assumir as deficiências, humildade para aprender, inteligência para encontrar um caminho. Estas é que são as condições para o sucesso. Não é «ganhar», como dizem os grunhos, armados em pragmáticos. Ganhar é sempre uma consequência, nunca uma causa. Ganhar nunca é um princípio. Ganhar não é o princípio de nada, é sempre um fim, um resultado. Resulta de alguma coisa, e essa coisa não é apenas uma forma de ganhar, mas uma forma de viver.

Um clube vencedor não compra campeões: encontra a matéria-prima e faz campeões.

De um clube vencedor as pessoas só devem sair em três situações: ou quando se revela que não têm a inteligência, a humildade e a coragem que está na massa dos vencedores; ou quando atingiram o seu limite de aprendizagem; ou quando têm a oportunidade de ingressar num clube que lhes dê melhores condições para exprimir o seu carácter de vencedor.

Se não for assim, é um erro. É uma demissão.

Num clube vencedor não há negações. Não se faz de conta nem se vira a cara. Assume-se.

Um clube vencedor não acredita na sorte, e muito menos perde tempo a discutir maldições ou bruxos de algibeira.

Um clube vencedor não crucifica um guarda-redes nem faz dele bode expiatório de uma época porque deu um mau pontapé na bola.

Um clube vencedor tem de ir muito mais fundo do que isso.

Vamos pegar neste exemplo do Artur, porque é uma excelente oportunidade para os crédulos benfiquistas meterem a mão na consciência e aprenderem alguma coisa com a derrota.

Depois do Benfica-Porto da primeira volta o treinador do Porto aareceu na conferência de imprensa a dizer que o Benfica tinha jogado em pontapé para a frente. Caíu-lhe em cima o Carmo e a Trindade. Os crédulos benfiquistas, ofendidíssimos, e liderados pelo seu treinador orgulhoso e ignorante, chamaram-lhe tudo, com um único objetivo: o de negar a evidência.

A evidência é que o treinador tinha toda a razão. Na segunda parte desse jogo, que foram os 45 minutos realmente decisivos do campeonato, este Benfica, construído durante três anos para conseguir responder naquele momento em que tinha de ir buscar o título, passou o tempo a atrasar a bola para o guarda-redes, que tinha de a chutar para a frente – e isto, repare-se, já depois de, na primeira parte, o Artur ter oferecido a bola ao Jackson para marcar o golo, o que prova que, se o Benfica voltou a insistir naquele tipo de jogada durante o resto do jogo, não foi porque quis, mas porque NÃO CONSEGUIA FAZER MELHOR.

Nesses 45 minutos decisivos ficou claramente demonstrado qual era a melhor equipa, quem jogava à campeão e quem iria ganhar o campeonato (e com todo o mérito) se nada mudasse. Quando o  jogo acabou, falou-se da fífia do Artur, negou-se todas as evidências, eliminou-se, à partida, o assumir dos erros que permitiria corrigi-los e evoluir, e o que é que aconteceu? Tudo continuou na mesma.

Eu disse isto. Houve quem me chamasse «exigente» para não me chamar estúpido.

Algumas semanas depois, no rescaldo de uma vitória «moralizadora» sobre o Moreirense, voltei a apontar o defeito. O Benfica não jogava à campeão. Depois de dar a volta ao jogo, a ganhar 2-1, começou a fazer aquilo a que o Jesus chama de «gestão do resultado»: trocar a bola entre os defesas, a meio-campo, e, ao mínimo entrave por parte do adversário, a atrasar a bola para o guarda-redes, que a chutava para a frente e a dava, basicamente, ao Moreirense, que, com espaço para avançar, até parecia uma equipa de futebol. E assim se institui uma cultura de facilitismo e desresponsabilização numa equipa que, supostamente, só é construída para responder a momentos de pressão - ou seja, a ambientes em que nunca se deve esperar facilidades e em que não épossível fugir à responsabilidade.

A coisa seguiu o seu processo natural. Teve o seu auge no jogo com o Sporting. Os mesmos pecados, a mesma incapacidade de construir jogo a partir da defesa sem ser em segundas bolas (uma incapacidade que existiu sempre no Benfica de Jesus e que ele nunca conseguiu e provavelmente nunca conseguirá corrigir, porque não admite que ela existe), bola para o Artur, pontapé para a frente, confusão, bola para os outros, o jogo entregue. O Gaitán inventa um golo. O árbitro defende outro. O resultado é bom. Conclusão, segundo o Berardo e todos os grunhos? «Tudo está bem quando acaba bem.»

É claro que a coisa nunca acaba.

Vêm as eliminatórias da Liga Europa. «Gestão do resultado», bola para os outros, dez bolas nos postes. Mas o resultado sai bem. «Grande equipa, campeões, grande treinador».

Sobe a pressão.

Chega o Estoril. O Benfica, incapaz de ter a bola, cansado e vulgarizado. O Estoril, uma equipa banal, parecia o verdadeiro campeão. «Se aquela bola do Maxi tivesse entrado…» Foi azar. Certo…

Vem o Porto. Vem o Kelvin. Vem a maldição, a bruxa, o azar. Azar? Azar, quando se começa a ganhar 1-0 o jogo do título no campo de um adversário que tinha de vencer?

Nas Antas, houve de tudo menos azar. Houve, sobretudo, novamente, uma equipa que não sabe ter a bola. Houve a «gestão do resultado», que acabou com o resultado do costume.

Azar, por sofrer um golo aos 92 minutos? Meus caros, perdoem-me a crueldade, mas se há momentos em que a sorte e o azar menos influência têm num resultado é quer nos penáltis quer a partir dos 85 minutos de jogo. Aí o que há é capacidade de resposta à pressão, quer mental quer funcional.

Não foi azar, foi aselhice. Uma equipa que jogasse como campeã  não teria sofrido aquele golo, pela simples razão de que aquele remate nunca teria existido. Aos 92 minutos do jogo do título, com um campeonato no bolso, não há golos, nem há remates, nem sequer há perigo. Há equipas que sabem o que têm de fazer para ganhar, e equipas que não sabem.

Mas ficámo-nos pelo azar, claro. Afinal, o povo sofre, é preciso mimá-lo.

Seria quase desumano aceitar que se tinha perdido o campeonato por demérito. Não, isso não. Seria um exercício de humildade e sensatez praticamente impossível.

Como tal, vem o Chelsea e vem outro golo ao minuto 92. Foi o quê, então? Foi o Guttmann, pois claro. Foi azar. Foi o destino. Foi o guarda-redes que não saíu, o defesa que não marcou, o outro que não saltou, foi tudo aquilo que era fácil de explicar às crianças que choram e aos idiotas que acreditam.

Permitam-me, então, caros crédulos, dizer-vos que o que foi foram os cornos dos vossos ricos paizinhos.

O que foi foi um canto que nunca devia ter existido, porque aos 90 minutos uma equipa vencedora não dá cantos, não dá hipóteses, e sobretudo não dá a bola.

Não interessa. Morremos na praia, é verdade, mas, como referiu o grande líder, houve quem tivesse morrido a subir para o barco. Porreiro, pá. Somos grandes, porque há alguém pior do que nós. É sempre uma bitola aceitável quando o cérebro não passa de um apêndice do aparelho digestitivo

Excelente.

«Pelo menos ganhamos a Taça.»

Vem a Taça. Regressa a «grande equipa», incapaz de controlar um jogo perante uma formação de ex-juniores dispensados das equipas a sério. Vem o golo, caído do céu aos trambolhões. Tudo bem, tudo seguro. Vem o minuto 80, um pepino do Artur, um golo em fora-de-jogo e depois, como o futebol não é cruel nem nada, um ressalto e a Taça vai com os porcos.

A culpa há-de ser de alguém. Do Artur, do Cardozo, do árbitro, do Jesus – vá-se lá saber porquê uma vez que a «gestão do resultado» no momento em que o Artur entrega a bola ao tipo do Guimarães é a mesma «gestão do resultado» que, durante quatro anos, o Jesus tem ensinado a equipa a fazer, e ainda uma semana antes batiam-lhe palmas.

Eu, pessoalmente, não sei se o Artur joga mal com os pés. Eu acho que o Artur joga tão mal com os pés como qualquer guarda-redes, e que por isso é que é guarda-redes e não avançado. Mas há uma coisa que eu sei: ponham qualquer jogador – qualquer jogador, mesmo o Messi – a fazer vinte pontapés para a frente, e desses vinte há sempre um ou dois que saem pepinos. Se for um guarda-redes, mais.
O que me preocupa, a mim, como observador que não percebe nada de futebol, não é se o Artur joga bem ou mal com os pés, nem se o fiscal-de-linha errou de propósito ou sem querer.

A mim, o que me interessa é o que leva o pior pontapeador de uma equipa como a do Benfica, que deve jogar para ganhar tudo e está em vantagem durante 80 por cento do tempo, a ser obrigado a fazer vinte pontapés para a frente durante um jogo, sabendo-se, pela estatística, que noventa por cento dessas bolas vão acabar na posse do adversário.

Os crédulos nem sequer pensam nisto. Não querem pensar. Preferem partir do princípio que a vitima (o Artur) é, na verdade, o culpado. E é por isso que o Benfica é um clube perdedor.

O Benfica não é campeão porque não conseguiu os resultados?

Errado.

O Benfica não é campeão porque não joga como um campeão, não pensa como um campeão e não vive como um campeão.

E, como tal, é apenas justo que não seja campeão.

O verdadeiro pecado do Benfica não é o Artur não saber chutar, nem o Jesus não saber treinar. O verdadeiro pecado do Benfica é os benfiquistas aceitarem como normal o vazio de pensamento, a ausência de sensatez e de humildade, porque ao fazê-lo estão a entregar o seu clube ao sabor dos resultados, e a deixá-lo no meio da rua.

Ao fazê-lo estão a demitir-se.

Um clube vencedor não se faz de quem desiste.