O maior mérito do Porto é a sua capacidade de trabalho desportivo. O trabalho anti-desportivo, que existe, é posterior. (E enquanto os adeptos dos outros clubes não compreenderem perfeitamente esta distinção continuarão a ser presas em vez de serem predadores).
A filosofia colectivista e unitária que sustenta a cultura desportiva do Porto tem um elemento primordial: a abdicação de uma parte importante do ego, por cada jogador, a favor do colectivo. O sacrifício de uma parte da sua individualidade a bem do que é melhor para a equipa.
Porque é que o cabelo amarelo do Hulk suscitou estranheza (além do óbvio mau gosto)? Porque é uma expressão de individualidade invulgar no Porto. O Porto inventou o cinzentismo no futebol português. Criou a imagem do futebolista inexpressivo, totalmente concentrado no jogo, ausente do que existe em seu redor, um homem de cassete pronta para os jornalistas, o micro-management da comunicação, tudo a bem de uma imagem espartana da equipa, de uma máquina de guerra, preparada para tudo. É uma forma de cultura, baseada mais numa ideia de defesa da cidade que de ataque, de conquista. É por isto que o Porto tem tanta dificuldade em ganhar glamour. O Porto alcançou resultados mas não a admiração que deveria ter alcançado como consequência natural desses resultados. Estamos a falar de um clube de província português, sem recursos, que, graças a um processo espontâneo de construção de sucesso, se torna numa espécie de gigante dos pequenos da Europa. Qualquer adepto europeu de futebol deveria estar apto a reconhecer o brilhantismo dos seus feitos. No entanto, o Porto não tem glamour. Porquê? Porque a cultura do Porto é uma cultura de supressão de personalidade, e são as personalidades, não as vitórias militares, que conquistam as pessoas.
Ainda hoje, se perguntarem aos adeptos mais velhos do Porto quais são os jogadores que eles mais admiram eles vão, quase sempre, buscar jogadores antigos, de tempos em que o Porto pouco ganhava, mas que tinham um carisma que os diferenciava. Assim como hoje, se perguntarem aos mais jovens, eles não ligam o clube à imagem de um ou mais jogadores mas à identidade colectiva – à equipa. Sim, o Deco, o Falcão, etc, mas todos eles secundários da ideia da equipa. Até o adepto vulgar se vê compelido a falar do colectivo quando tem de defender o seu clubismo. É um discurso monocórdico que homogeneizou o clube.
Tão importante como ganhar, para se conquistar corações, é a graça com que se perde. Para haver ligação emotiva tem de haver humanidade. A essência do ser humano é o erro, o disparate. Quem não vacila são as máquinas. Quem é que quer saber de uma máquina?
É curioso como o Porto teve de criar uma cultura contra-natura ao ambiente em que está inserido para ter sucesso. O Porto-cidade é a verdadeira cidade liberal de Portugal. É uma terra de alegria, de espontaneidade, de vivacidade, de profunda liberdade, de personalidade e de carisma. O Porto-clube é uma realidade obscura, fria, negativa, opressora, fechada, lítica. Não digo que seja certo ou errado – pelos resultados dir-se-ia que é assim que tem de ser – só digo que é o que é. Aliás, esta é uma filosofia que tem feito escola nos outros dois clubes grandes portugueses. Gerou-se a ideia de que, para se ser um campeão, tem de se ser feio, porco e mau. Enquanto não aparecer um conjunto de personalidades livres que consigam ganhar com continuidade não haverá razões para se pensar o contrário. Até ver, isto não é para quem ri, é para quem aguenta.
Qual foi o último espírito livre a singrar no Futebol Clube do Porto? Alguém cuja primeira imagem, aos olhos do público, seja um sorriso, alguém que gere uma empatia natural, que se sinta que está fora de uma unidade militarizada? Não me lembro.
O colectivismo é a fórmula de sucesso do Porto, mas também é a sua fronteira. Para crescer, verdadeiramente, para extravasar a sua dimensão provinciana, o Porto terá de se render, progressivamente, aos indivíduos.Ao pintar o cabelo, ao sair do campo propositadamente amuado, o que o Hulk está a dizer a toda a gente é que já é maior do que aquilo.
É ele e mais dez, segundo o presidente. Está na selecção do Brasil, joga quando quer e como quer, ganha mais do que os outros, custou mais do que os outros, vale 100 milhões, tem os clubes todos atrás dele e, evidentemente (não esquecer este pormenor), o Porto só não foi campeão em 2010 porque ele foi alvo de uma injustiça, segundo a própria mensagem pública veiculada pelo clube. Foi só ele voltar que o Porto nunca mais perdeu. Por que razão objectiva é que Hulk não deveria pensar que está acima do clube em que joga?Hulk não é propriamente uma personalidade radiante, mas é um indisciplinado natural – a quem o castigo aplicado após o caso o túnel da Luz, por sinal, muito ajudou.
(Olhando retrospectivamente, teria sido preferível para o Benfica, por exemplo, que o castigo não tivesse sido aplicado: o Porto não teria sido campeão de qualquer forma, Hulk não seria o jogador que é porque não teria grandes motivos para mudar a sua atitude negativa, o Porto não teria encontrado um álibi para essa época nem uma motivação extra para a seguinte e provavelmente, Hulk, nesta altura, já não jogaria em Portugal.)A fase pós-castigo acalmou-o e atrasou a sua explosão de personalidade, mas ela, agora, é irreversível e o Porto não está preparado para aclimatar um jogador assim. A criatura tornou-se maior que o criador.
A manutenção de Hulk após esta época – que é muito difícil em termos económicos –, ou de qualquer outra personalidade anormal, significaria que o Porto estaria a abrir uma outra dimensão de si próprio. Até certo ponto esse crescimento é inevitável. A partir de certo ponto a única forma de crescer quando uma cultura cristaliza é inserir elementos estranhos à tradição, liberalizar os costumes e esperar pela mistura de diferenças. Não é uma ciência oculta, é o processo social histórico.
Mas o Porto não vai fazer isso. Porque há outra tendência histórica que resulta directamente da natureza humana: a que diz que quando a realidade é rica, quando há muito a perder, a disposição do homem é conservadora, e não inovadora. Quando preza o que tem, o homem tende a não querer mudar, a não trocar o que julga certo pelo incerto. E o Porto tem muito a perder. Na verdade, tem tudo a perder, pois todo o seu sucesso desportivo real foi alcançado através do actual método a que podemos chamar de estóico.
Ninguém no Porto quer realmente manter Hulk na equipa para o ano que vem. É inseguro. É um risco. As coisas funcionam bem sem Hulks, como se comprovou nos últimos vinte anos. O Porto não vai liberalizar os seus costumes. E, como tal, vai-lhe acontecer o mesmo que aconteceu a todas as civilizações que passaram a seguir um instinto conservador: vai estagnar e, posteriormente, assim que uma civilização alternativa (Benfica ou Sporting) encontrar uma forma de evolução inovadora, cair em decadência. Até à vulgaridade. Como aconteceu ao Benfica depois dos anos 70, quando o Porto, através de Pedroto, encontrou a dimensão seguinte do profissionalismo do futebol português.