Nos seus
tempos áureos, de República expansionista, as legiões romanas impunham um
código de conduta em batalha que as diferenciava de todos os seus adversários.
De um legionário romano esperava-se que entregasse a vida pelos seus camaradas
sem hesitar. Como ninguém é um adepto natural de entregar a própria vida sem
hesitações, havia acções motivadoras.
Uma delas era a da dizimação.
Dizimar vem de dízimo, que significa um décimo, e a regra era simples. A unidade
colectiva básica da legião romana era a decúria, um conjunto de dez
legionários, que por sua vez formavam uma centúria, um conjunto de dez
decúrias. Sempre que os comandantes das decúrias ou das centúrias – decurião ou
centurião – consideravam que o comportamento das suas tropas tinha sido
particularmente cobarde ou embaraçoso em batalha, mesmo em caso de vitória,
alinhavam as decúrias, sorteavam um legionário e, ali mesmo, mandavam-no
avançar e, diante de todos, cortavam-lhe a cabeça. No caso de uma centúria,
executavam, sumária e arbitrariamente, dez soldados.
As decúrias
eram, assim, dizimadas.
Este tipo de
disciplina brutal permitiu que um exército originalmente de bandidos e
saqueadores, em inferioridade numérica perante praticamente todos os seus inimigos,
se transformasse no maior império do seu tempo.
Eu gostaria
de dizer que a equipa do Benfica se encontra dizimada após o castigo imposto ao
Luisão, mas não posso, porque a esta disciplina falta um elemento fundamental:
a autodeterminação. Não foi o Benfica que decidiu dizimar-se. O Benfica preferia
não se dizimar. Para o Benfica é mais importante ter o Luisão durante dois
meses do que ter disciplina interna. O que é mau, na minha opinião, nem é isso:
é 98 por cento dos benfiquistas – incluindo os que vêm aqui ao blog – concordarem
com essa posição.
Eu gosto do
Luisão, acho que o Luisão teve um mau momento na Alemanha, que não reflecte a
sua postura em campo, e acho que o árbitro jamais se teria fingido de morto se
o jogador a abalroá-lo fosse do Fortuna de Dusselford – o que me leva a
acreditar nisto é o sistemático preconceito dos árbitros do Norte da Europa,
especialmente alemães, em relação aos pretos da Europa (nós, os gregos, os
turcos e afins).
Dito isto, o
que teria ficado gravado no ADN do Benfica, a seguir ao incidente, teria sido
uma suspensão imediata do Luisão, unilateral, por parte do Benfica, e um pedido
de julgamento sumário ao jogador.
Culturalmente,
é quase impossível a uma Direcção de um clube português tomar uma medida
destas. Para o povo, teria sido inaceitável. Dir-se-ia que os jogadores tinham
de jogar até contra a própria Direcção, que esta estava a dar tiros nos pés, que
tinha entregue o ouro ao bandido, etc, etc. Em parte, tudo isto é verdade. O Benfica
estaria a dizimar-se. Mas a dizimação,
quando é bem executada, pode transformar-se numa arma poderosa.
A disciplina
– que eu considero como a capacidade autónoma de concentrar a energia nas
acções necessárias ao sucesso – é o ponto fraco das equipas portuguesas (para
não ir mais longe e dizer que é o ponto fraco da sociedade portuguesa).
Mesmo a
melhor cultura futebolística portuguesa dos últimos 30 anos, a do Porto, é
disciplinarmente fraca, ainda que relativamente forte em relação à dos outros.
Quando eu vejo os jogadores do Porto a discutirem com os árbitros, a fazer
faltas desnecessárias, quando vejo os treinadores a ar graxa ao cágado e a
mistificar o que é vulgar, quando vejo a Direcção do Porto a ir contra o próprio
jogo para não perder pontos, a dar a volta à lei para ganhar vantagem, não vejo
o que os outros vêem. Não vejo demonstrações de força. Vejo um ponto fraco.
Mais: vejo o ponto fraco.
É por ali. É
aquele o calcanhar de Aquiles.
E é-o não só
porque é uma debilidade, mas porque é uma debilidade que não pode se corrigida.
A cultura de vitória do Porto assenta num ponto básico: não dar o flanco. Fechar
as alas e ir contra tudo e contra todos. Defender os seus até para lá do
racional. Se o Luisão fosse do Porto, a Direcção do Porto faria tanto ou mais
para evitar o castigo do que o que a do Benfica fez. (Aliás, pode-se mesmo
dizer que o comportamento da Direcção do Benfica se baseou numa premissa: «Em
Portugal, a equipa que ganha faz isto. Portanto, se queremos ganhar, também temos
de fazer isto, porque deve ser o que se faz quando se quer ganhar.»)
Se a
Direcção do Porto fosse contra essa cultura estaria a destrui-la, pela base.
Não pode. Não sabe como. Quando se ganha, conserva-se o que se tem. Não se
altera nada. Até porque, quando se altera, é quase inevitável perder-se.
O ponto fraco
do Porto é e vai continuar a ser a disciplina. Tem muita, mas não tem
obrigatoriamente a suficiente.
Quando Benfica
ou Sporting conseguirem ser, realmente, diferentes (normalmente o que se passa quando
se diz que tem de se ser diferente é que se quer fazer igual, mas com mais ou
menos intensidade) no aspecto da disciplina, terão encontrado a brecha na
armadura.
Mas não é,
nem de perto nem de longe, fácil. É preciso ir contra tudo o que está
instituído. Geralmente, os acessos de disciplina não duram mais que dois ou três
jogos quentinhos. Ao terceiro já há vapor a sair pelas orelhas, asneiras a sair
pela boca, árbitros insultados, adversários agredidos, faltas distribuídas a
rodos. Para cultivar a disciplina é preciso muita força de vontade. Para a
perder, basta um acesso de fraqueza. É como ser alcoólico ou toxicodependente. Podemos
estar três anos sem tocar em álcool, mas se bebermos um copo o mais provável é
não conseguirmos parar e, ao fim de uma ou duas semanas, já nem nos lembrarmos
dos tempos em que estávamos sóbrios.
Quais são as
probabilidades de uma Direcção de um clube português castigar o seu capitão e
jogador fundamental unilateralmente para cultivar a disciplina? Realisticamente,
quando é a própria Direcção a fomentar a mensagem de que os árbitros são
corruptos e de que «nos roubaram o campeonato», nenhumas. É demasiado difícil.
Seria preciso haver pessoas excepcionais à frente do clube (talvez seja uma boa
oportunidade para irem ver a história do Félix, nos anos 60, aquele que muitos
consideravam que viria a ser o melhor central português de todos os tempos).
Se eu fosse
eleito presidente do Benfica, hoje, faria quatro coisas antes de todas as
outras:
- como já
disse antes, juntava toda a gente que trabalha com a equipa na sala de vídeo e
passava o filme dos 5-0 nas Antas, em 2010;
- dizia
apenas isto: «Vamos trabalhar» - porque o líder lidera pelo exemplo, e pelas
acções, não pelas palavras, e o que o Benfica viesse a ser seria pelo que eu
fizesse, não pelo que eu dissesse – deixaria de ser um clube de conversa e
passaria a ser um clube de prática, sem desculpas;
- distribuía
uma circular interna a dizer o seguinte: «Qualquer questão relativa a arbitragens
que venha a ser levantada, em público ou em privado, tem de ser respondida da
mesma forma, por jogadores,técnicos e todos os outros profissionais de futebol
do Benfica: ‘Não falo de árbitros’. A sanção é uma multa de metade do ordenado.»
- rodeava-me
de pessoas melhores do que eu, que me lembrassem do meu sentido e me mostrassem
a minha fraqueza sempre que eu me sentisse compelido a ir contra o meu próprio
código.
Em Portugal,
as pessoas consideram que o segredo para vitória está nos árbitros. E têm razão.
Mas enganam-se numa coisa. O segredo não está no controlo negativo dos
árbitros. Está no controlo positivo. Não é mandar neles para tirar força aos
outros – é usá-los, como elemento adverso, para ganhar força.
A equipa que
primeiro descobrir isso e que consigam disciplinar-se (se e quando alguma o
conseguir) será, provavelmente, a próxima força do futebol português.
Boas,
ResponderEliminarVejo a lógica de todo o raciocínio, e vejo-me obrigado a concordar. No entanto é bom lembrar, e acho que te esqueceste desse ponto no te texto, que esse é um caminho longo, um caminho que demoraria épocas, até conseguir surtir efeito. Até lá seriam despedidos treinadores - não que não o sejam com a actual politica - e pior, seria um tiro nas aspirações das direcções. Todos nós sabemos que para os Benfiquistas, uma conduta como falas, é para eles mostrar fraqueza perante a força do Porto. Ninguém quer um presidente assim. Uma politica de guerrilha, serve muito mais os interesses de uma direcção, do que os interesses do próprio clube. Cada qual quer salvar a sua pele. Uma direcção dessas não aguentada 1 mandato, e 1 mandato é realmente curto para fazer as tuas ideias passarem de ponto "fraco" a ponto forte.
Abraço
Verdadeiro.
EliminarTenho a impressão de que daqui a 20/25 anos vou estar a dizer para comigo:" bolas, eue Ra um dos que acompanhava o blog do actual presidente do glorioso". Espero nao estar enganado.
ResponderEliminarOutra coisa. Nao sei por que é que contratámos um motivador para o plantel. Tínhamos aqui o Hugo e aposto que ate é mais baratinho...
Duvidoso...
EliminarAquilo que defendes penas é o adoptar dos valores fundadores do clube. Infelizmente na sociedade que vivemos, nada disso é valorizado, apenas a chico-espertice, o vencer a qualquer custo e o ser incapaz de admitir que os outros são melhores.
ResponderEliminarEsse tipo de cultura precisa de ser imposta por algiém que seja moralmente superior ao que temos no nosso desporto e no nosso país.
Acreditemos.
EliminarO problema com esta atitude é que precisamos de homens incomuns para a adoptarem. Ora esses são, isso mesmo, incomuns, raros, excepções à regra. A aposta em valores, como outros já comentaram, é de resultados lentos, com os quais a voracidade do tempo actual é pouco gentil.
ResponderEliminarNem mais Rui.
EliminarO adoptar dos valores de Cosme Damião,que sempre me orientaram tanto no desporto como na minha vida em geral(pelo menos tentei),é considerado hoje em dia como"fraqueza" e"utópico".De dentro do Benfica a direcção considera-a anti-benfiquista.É o reino do chico espertismo.Mas a utopia comanda a vida e não será ao fim de 61 anos que vou mudar ou desistir.PLURIBUS UNUN.
ResponderEliminarBravo.
EliminarConcordo completamente contigo... mas penso que estás completamente enganado!
ResponderEliminarCumprimentos
Óbvio!
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