Ao fim de
mais de uma década como presidente, Vieira está a aprender, à força, uma
verdade incontornável: no Benfica não existem monarquias, e muito menos
dinastias.
Não tem a
haver com mérito, nem com carácter, nem com resultados. Tem a haver com
cultura. Com oito campeonatos, Vieira estaria, da mesma forma, fora de prazo.
A
longevidade como presidente, aliás, só encontra justificação na situação
catastrófica e única em que o Benfica se encontrava à entrada da década
passada. Foi uma solução excepcional numa situação excepcional.
Foi.
Como já
disse neste espaço há alguns meses, acredito que o tempo útil de Vieira ainda
não acabou. Não gosto do Vieira, nunca gostei, mas não confundo a estrada da
Beira com a beira da estrada. Escrevi que Vieira merecia ter dois anos com as
contas saneadas, o que aconteceria (em princípio) com a assinatura de um
contrato televisivo com números realistas. Apanhou a pior crise económica do
país nos últimos 90 anos. Continuo a achar que o tempo ideal para Vieira seria
mais um mandato. Mas há «mas».
Se Vieira
estiver à espera de se perpetuar no poder quer por si próprio quer por testas
de ferro, estará a cometer um erro de palmatória, que consiste, precisamente,
em não conseguir perceber que o Benfica não é o Sporting – em que os líderes,
por tradição, são escolhidos por uma clique de nobres (nas próximas eleições já
serão escolhidos por uma claque de grunhos…) – nem é o Porto – um clube sem
tradição pluralista, de implantação popular e muito territorial mas sem opinião
nem contraditório.
Para muitos benfiquistas,
esta propensão para a democracia é uma fraqueza. Para estes – com legirimidade
para pensarem assim, acrescente-se – a forma de ganhar é encontrar um Pinto da
Costa vermelho. Essa angústia por um Grande Líder explica-se com facilidade.
Não é uma discussão que tenha nascido com o futebol português, entenda-se.
Em política,
Nicolau Maquiavel escreveu O Príncipe, no século XVI, precisamente para tentar ensinar
ao futuro príncipe de Florença que a única forma realista de governar com
sucesso seria concentrando totalmente o poder na sua pessoa e assumindo uma
estratégia de terror, explícito e implícito. Conhecem a frase: «Os fins
justificam os meios»? É de Maquiavel.
Esta corrente
realista e totalitária fez escola. Nos últimos 500 anos houve inúmeros regimes
em que os seus líderes tentaram aplicar a fórmula maquiavélica, e, actualmente,
o realismo é uma escola tão praticada como a idealista. O Porto, por exemplo, é,
claramente, um regime maquiavélico – entenda-se que esta afirmação não tem a haver
com «bons e maus», com «certo ou errado»; tem a haver com a estratégia de poder
interno. O que existe no Porto, hoje, é o Príncipe, aclamado e aceite,
intocável e instalado, e em seu redor uma corte de funcionários especializados
e tarefas mas politicamente inúteis. Vieira tentou implantar o mesmo sistema no
Benfica, mas não conseguiu concretizar a concentração do poder numa única
pessoa em vitórias de guerra. De qualquer forma, como já disse, essa não é a
matriz do Benfica.
A matriz do
Benfica é a do idealismo. Sendo a única grande colectividade legal a funcionar num
sistema realmente democrático durante o Estado Novo, conseguiu, graças a isso,
não só sobreviver como exceder-se, forçando o próprio regime a aceitá-lo (ao
contrário do que se diz, Salazar não era esquisito: qualquer forma de
propaganda que servisse para consolidar o seu poder pessoal era válido).
A democracia
tem custos elevados. Não só degenera frequentemente em demagogia, perdendo o
sistema as virtudes decorrentes da democracia – renovação de valores, de
estratégias, legitimidade e autoridade reforçadas pelo consentimento popular,
sentimento de pertença e comprometimento com a causa reforçados, e outros –
como só faz sentido no longo prazo.
A grande
diferença entre a democracia e a monarquia é precisamente essa: o sucesso
alcançado pela via democrática é mais estável e longevo, porque não depende
tanto das pessoas mas mais do sistema, que vai renovando as pessoas (é um
sistema com crises, como todos, mas com uma capacidade de regeneração superior);
o sucesso alcançado pelo absolutismo é episódico, depende do carisma e da
capacidade de uma pessoa, ao qual o sistema não sobrevive.
Visto de
outra maneira, é como comparar um país em que a sociedade civil é forte e outro
em que o Estado é tudo. Ambos têm problemas para resolver, mas no primeiro há
maior diversidade de soluções quando as crises aparecem, enquanto no segundo se
instala o estaticismo por falta de criatividade.
Desde que a
democracia se instalou no Ocidente, sobretudo a partir do século XIX, os países
democráticos ganharam vantagem cultural sobre os regimes absolutistas e
autoritários. O realismo maquiavélico é, frequentemente, utilizado como forma de
ganhar no momento, mas revela-se, invariavelmente, ineficaz no longo prazo. O absolutismo
só tem presente, não tem futuro. O pluralismo parece não ter presente, mas só
ele tem futuro.
O mais
difícil, quando se tem o poder, é saber abdicar dele em favor de um bem maior.
Já aqui
escrevi que o melhor serviço que Vieira poderia prestar ao Benfica seria,
depois de ganhar as eleições, deixar montada uma estrutura técnica que
permitisse a qualquer novo presidente mandar apenas na parte estratégica, e que
permitisse manter um sistema de decisão técnica e gestão que sobrevivesse às
pessoas que, pontualmente, ocupassem os lugares. Depois disso, deveria alimentar
duas ou três correntes alternativas, permitindo que os sócios voltassem a ter um
poder real no momento em que ele libertasse o mando, e permitindo que a escolha
pudesse ser feita em pessoas minimamente preparadas e não em demagogos.
Com isto,
Vieira (de quem eu não gosto) ganharia, provavelmente, o lugar como um dos três
maiores presidentes na história do clube.
Mas eu sou
realista.
Não é isto
que vai acontecer.
O que vai
acontecer é que, no fim, em vez de saber sair, Vieira (que fez um trabalho
espantoso, de facto) vai ser apenas um bom presidente do Benfica forçado pelos
sócios a abandonar a cadeira.
O melhor que
o Benfica tem é precisamente que, quer ele queira quer não, é isto que vai
acontecer.
E é por isto
que o Benfica continuará a ter a vantagem funcional sobre os seus adversários à
medida que os níveis de competitividade destes vão oscilando.
Afinal, como
todos compreenderão, aprovar um prejuízo de 12,5 milhões de euros não é mais
que uma irresponsabilidade – uma irresponsabilidade que, em noventa por e oito
por cento dos casos no futebol português, passa, mas que um sistema democrático
tem muito mais facilidade em reconhecer e corrigir do que um Estado papal, em
que toda a autoridade está no papa, e em que ir forçar a demissão do papa
equivale a demolir a catedral.