A quem é que se ganha, quando se ganha ao Porto?
O
que é que se derrota?
Por
que é que ganhar ao Porto é tão importante antes do jogo começar e se torna tão
pouco importante depois do jogo acabar?
Dito
por outras palavras, por que é que se tem tanto a perder quando se joga com o
Porto e tão pouco a ganhar?
O
que é que o Porto representa? Quais são os valores que saem enaltecidos quando
a sua equipa triunfa em campo (quando é campeã, porque é isso que ser campeão
significa)?
Numa
primeira fase do pós-25 de Abril é relativamente fácil de compreender. Num país
atrasado, centralizado e provinciano, um clube em representação da província
quis provar que era capaz de fazer o que os outros – nomeadamente o Benfica,
que por essa altura já tinha extravasado a dimensão portuguesa – eram capazes
de fazer.
O
sucesso do Porto, nessa primeira era do anti-macrocefalismo, foi total. Não
apenas ganhou uma Taça dos Campeões Europeus a um adversário prestigiado como o
fez recorrendo a um conjunto de jogadores que representavam, na grande maioria,
a própria gente do Porto e da região circundante. À afirmação internacional do
Porto-clube correspondeu a afirmação internacional do Porto-cidade, uma ideia
que esteve na própria génese da ideologia pintista quando se apoderou do poder
no clube, em meados da década de 70.
Entretanto,
no início dos 80, a democracia foi instituída, de facto, com o advento do Tribunal
Constitucional (em 1983), o país aderiu à CEE, mudou e, no final dos anos 90 e
do cavaquismo, já pouco restava do Portugal salazarista. A subalternização do
Porto-cidade e do Norte em relação a Lisboa, em termos económicos e sociais,
sobrevivia apenas como um mito (um mito ainda hoje guardado com zelo por alguma
da sua gente, mas ainda assim só um mito, como se pode constatar pelo facto da
esmagadora maioria dos deputados à Assembleia da República e dos próprios
governantes não serem de Lisboa) e o Porto-clube, aproveitando a emancipação
política do Norte, a proliferação de clubes na região e a instrumentalização
das Associações do Porto, de Braga e de Aveiro, já se tinha apoderado das
instituições do futebol e secado pela raiz a concorrência, queimando, no
processo, tudo o que não podia aproveitar.
Depois
da afirmação, assistiu-se ao esplendor do portismo e, ao mesmo tempo, à
decadência do futebol português, da qual só se começaria a sair quando, por
acaso, um certo futebolista belga de pouca expressão, Jean-Marc Bosman, decidiu
levar o próprio futebol a tribunal e, ganhando, o lançou à força para o liberalismo
de mercado em que vive actualmente. Por causa disso os melhores jogadores
portugueses tiveram acesso ao mundo e trouxeram o mundo à periferia, através da
Selecção Nacional.
Durante
a década de 2000, recolhendo os frutos do regime totalitário que instaurou, o
Porto teve espaço para ganhar confortavelmente, incluindo na Europa, onde o
acaso histórico entre o «evento José Mourinho» e a própria lei das probabilidades
(«até um relógio parado está certo duas vezes ao dia», ou seja, se jogares
vinte vezes a Taça dos Campeões há de chegar um dia em que todos os outros também
a perdem) coincidiram e resultaram num segundo êxito cujo único efeito
estrutural foi o de permitir um encaixe financeiro, em prémios e vendas de
jogadores, que permitiu uma década de gastos excessivos para a dimensão
económica real do clube.
Foi
por essa altura, ainda com a hegemonia bem viva, que se começou a tornar clara
a futilidade da glória portista.
O
ressurgimento do Benfica, a partir de meados da primeira década do século XXI,
deu ao Porto uma segunda vida. Foi a fruta e café com leite dos novos dias – um
pequeno-almoço de campeões.
O
Porto de hoje é, obviamente, um projecto decadente. Vê-se nos resultados
desportivos, incomparavelmente piores do que há vinte anos, nos resultados
económicos, ao nível do pior que já existiu na história do clube, e nos
comportamentos, como se comprova pela inenarrável figura do seu Diretor de
Comunicação.
É
impossível não comparar os dois principais clubes portugueses e poder-se-ia
argumentar que a futilidade da glória é comum a todos. Talvez futilidade não
seja a palavra certa. Seria preferível inconsequência. Ganhar para quê?
O
Benfica partilha da simplicidade da maioria dos grandes clubes. O que o mantém
unido é o jogo em si mesmo – talvez por isso digira mal a promiscuidade, mesmo
quando essa é a lei moral da época e ele acaba por a seguir. Apesar de não
haver grandes jogadores sem grandes clubes, aos jogadores do Benfica é possível
tornarem-se maiores do que o clube, no clube. A história do Benfica é a
história da sua relação com o jogo, nas glórias e nos fracassos, e a sua maior
figura, sem contestação, é um jogador de futebol. De certa forma, o Benfica só
fez as pazes consigo próprio quando trouxe Eusébio de volta para junto de si. O
jogo não pretende representar realmente nada para além de si mesmo, e se isto
parece básico é porque é. O benfiquista não é um animal complexo.
Para
o Porto, o futebol não é um fim, mas um meio. Tem uma função – a de permitir a afirmação
política de qualquer coisa, que já não se percebe bem o que é. O que une o
clube é a subversão, ainda que o poder seja já seu e não haja nada para
subverter. Quando não há, inventa-se. Adequadamente, a maior figura da sua
história, também sem contestação, é um político – Pinto da Costa.
O
Benfica fez uma grande equipa europeia de futebol porque sim, e tornou-se um
clube do mundo, da dimensão do jogo. O Porto fez uma grande equipa europeia de
futebol para ganhar ao Benfica e, podendo chegar tão longe quanto chega o jogo,
nunca conseguiu sair da província que tem na cabeça.
O
Benfica fracassa quando o jogo lhe ganha. O Porto fracassa quando o Benfica lhe
ganha.
E
toda a gente se dá bem com essa realidade que, aparentemente, é uma vantagem
para o Porto. Permite-lhe sempre partir de baixo, sem ter nada a perder;
assumir a personagem do pobre diabo que joga contra a própria sorte. A figura
do coitadinho nasceu para enternecer. O Porto já explorou o desgraçado que tem
dentro de si até ao tutano. Mas qual é a alternativa senão continuar a
alimentá-lo para poder continuar às suas costas? O «contra tudo e contra todos,
dentro e fora do campo» de Sérgio Conceição, há dias, é apenas a versão actual
do absurdo, do qual toda a gente, incluindo os portistas, tem consciência, mas
que não pode ser abandonado, sob risco de niilismo existencial.
Dito
por outras palavras, refazendo as questões com que comecei, o que é que o Porto
ganha, quando ganha, se, depois de ganhar, não sai do mesmo sítio?